domingo, fevereiro 25, 2007

O SAGRADO MOMENTO EM QUE.

Os passarinhos giravam incansavelmente em torno da árvore, pipilando numa autêntica histeria, e eu lembro-me de não ter levado mais do que um minuto a compreender: «Estão a jogar à versão, em pássaro, do jogo das cadeiras. A um sinal, poisam todos nos ramos, e há sempre um que fica de fora...!»

Quando compreendi finalmente o objectivo, atravessei o parque, afastando-me depressa dali. Espirrei. Mau sinal! Ergui a gola do casaco. Não podia apanhar um resfriado neste momento. Não no momento em que entendera o fito dos pássaros, o jogo dos pássaros e, portanto, o sentido do universo.

Entrei na casa velha, de degraus carcomidos, ouvindo uma espécie de eco macabro sob os meus passos incertos. No terceiro andar, sentei-me no chão, exausto, respirando com força, diante da porta esquerda; abracei os meus joelhos, com o queixo fincado neles. Tinha frio. Muito, muito, muito frio. Tremia. Nunca antes, em nenhum outro momento da minha vida, tremera assim. Se eu conseguisse parar o sismo de todo o meu corpo doente e fatigado, se conseguisse pôr-me de pé, se conseguisse bater à porta, tum tum tum, o velho viria abrir-ma, eu contar-lhe-ia o que tinha para lhe contar e talvez (não de certeza mas provavelmente), iria a tempo de salvar o que restava do universo. Caso contrário, seria tarde. Abrir-se-ia, dali a pouco, a outra porta do andar, os vampiros viriam buscar-me, o segredo perder-se-ia.

Levantei-me. Tinha de ser já. Mas, no momento em que, tremente, me preparava para bater à porta, fui acometido por uma derradeira dúvida: «E se me enganei!? E se não era nada disso que os pássaros estavam a fazer...?»

Percebi que se abria uma porta. Era um ruído distinto. Poderia ser a do lado esquerdo, a do velho, que me tivesse ouvido arfar, ou espirrar, ou pensar alto. Ou não. Poderia ser já tarde. Talvez fossem já os vampiros.

Fosse como fosse, fosse quem fosse, lembro-me de ter estabelecido esta regra - talvez última -, naquele momento de indecisão, naquele terrível e pesadíssimo momento em que tudo era ainda possível, ou em que nada era já possível mas eu ainda o não sabia:

REGRA: «Quando se trata de salvar o universo, não devo ter dúvidas, não posso hesitar!»

sábado, fevereiro 10, 2007

UM RESMUNGO A PROPÓSITO DA EXTINÇÃO DE UM PROJECTO PROMISSOR

Repentinamente, descobrimos que a magnífica iniciativa que tanto nos motivava para separar o lixo - que não é propriamente a mais agradável das tarefas, pese embora a sua importância - era uma experiência de curta duração, um teste, um projecto piloto. Chegou ao fim. Não se percebe bem por que razão, já não faz sentido dividirmos a porcaria pelos caixotes que nos tinham oferecido, o amarelo para os plásticos, o azul para o papel, etc etc, e não faz, sobretudo, sentido fixarmos os dias da semana em que devemos pôr cada um dos caixotes à porta para o camião da «Tratolixo» o despejar. Não faz sentido, porque o camião da «Tratolixo» deixará de passar.

Hoje, pela primeira vez em meses, tive de voltar a arcar com um caixote e caminhar com ele, protestando muito, seguido por uma quantidade de cães e de moscas, até ao eco-ponto mais próximo que, tal como as farmácias de serviço quando delas precisamos, nunca é suficientemente perto; e tive de, aí parado, entre dejectos que enchiam o chão em redor do local, pegar no lixo com as mãos para o enfiar, aos poucos, por uma ranhura estreita, como quem coloca sobrescritos num marco de correio. Todo este espectáculo, como se imagina, atentamente observado por um bando de mirones: dois idosos de boina, um deles de bengala, o outro com um palito entre os dentes, e quatro fedelhos encimados por bonés de pala virada para trás. Um dos dos idosos rouquejava qualquer coisa: talvez me desse conselhos. Sobre como pôr melhor os pedaços do lixo? Ao que eu desci...!

O problema não é este. O problema é que, por qualquer razão e com uma explicação que nada explica, se matou, praticamente à nascença, um projecto promissor. Vai regressar? Melhorado, tecnicamente aperfeiçoado? Ousou, no fundo, esperar que sim. Mas ouso, à superfície, duvidar.

Porque a questão portuguesa, a grande questão portuguesa, não é a falta de inteligência: o aparecimento desse projecto mostra-o bem. A questão portuguesa, a grande questão portuguesa, é a estupidez ser menos tímida, estar mais enraizada e esmagar muito cedo o que quer que valha a pena: a extinção desse projecto mostra-o bem