quarta-feira, agosto 29, 2007

FOCO SOBRE A VERDADE

A história é simples. E real.

Estou numa piscina paradisíaca, ainda que de pouco me preste, a mim que não sei nadar nem gosto de enfiar a cabeça debaixo da água. Contudo, já que a paguei, sinto-me no dever de usufruir. Estendido numa cadeira branca, sob um guarda-sol multi-colorido, a barba por fazer, as pernas estranhamente brancas no meio desta tribu de pessoas bronzeadas, vou-me entretendo com um livro policial, bocejo, dormito, o livro esquecido sobre o estômago. Isto é que é vida! (Mas a boa vida pode ser uma seca tão grande!)

Presto atenção à vida que decorre em redor de mim.

Há uma família, aliás, que me obriga a prestar atenção, porque tudo entre eles é tratado em altos gritos. O pai, judicioso e careca, impõe-se frequentemente. A mãe só pára de berrar com alguém, para seguir, numa revista cheia de fotografias dolorosas, as últimas notícias da tragédia da Maddie.
Os miúdos são insuportáveis: querem batatas fritas, molham as outras pessoas com autênticos mergulhos-de-golfinho, fazem exigências exorbitantes - insuportáveis, e sei bem do que falo, porque se parecem muito com o meu próprio filho!

Bruscamente, o escândalo.
Os garotos combinam que vão mergulhar juntos, sim, não, sim outra vez, comprometem-se um com o outro, correm, um trava, o mais velho salta.
Eis que o que saltou regressa, furioso. Têm uma discussão. Trocam-se agressões.
O mais novo, que não saltara, desata a chorar:
«O mano arranhou-me, o mano arranhou-me...»

Mas o pai, careca e judicioso, vira tudo.Intervém:
«Vai-te mas é tratar, ouvistes? Tu tens de ir mas é ó médico dos malucos. Tu não vistes, Susana? Tu não vistes? O gajo arranhou-se a ele próprio, que eu bem topei, o gajo arranhou-se a ele próprio para acusar o irmão... Eu topei! Já vistes? É tramado, hein? Vai-te tratar, pá, vai-te mas é tratar...»

A minha versão é outra. Sim, porque eu também assisti. E, de tudo, sobra-me a seguinte interpretação, da qual extrairia até uma lição, se me permitissem.

O irmão agressivo arranhara, efectivamente, o outro: mas, se se tratava, para este último, de fazer queixa, que provas poderia ele, a vítima, apresentar? Marcas de arranhão não são suficientemente nítidas. Experimento agora sobre mim mesmo. Cá está a confirmação das minhas palavras: nada, praticamente nada. Quando o miúdo se auto-arranhou, não foi, pois, para mentir, mas para sublinhar a verdade, para iluminá-la, para dar-lhe indícios mais notórios.

Às vezes, a verdade não se basta: precisa de ser iluminada. A luz não é algo que lhe acrescento. Simplesmente a expõe.

segunda-feira, agosto 27, 2007

DEUS

O ateismo é uma posição insustentável; considero-me perfeitamente insuspeito para fazer uma afirmação deste teor: na verdade, sou ateu.

O que mostra a existência de Deus não é, certamente, a retórica cartesiana, querendo fazer-se passar por uma pura «demonstração», assumindo como adquirido que um «ser perfeito mas inexistente» seria uma contradição nos termos. Descartes não tem razão: posso estabelecer, por exemplo, um conceito como o dos «mil euros que existem na minha carteira»; é evidente que o conceito de mil euros «existentes» na minha carteira «exige» que estes lá estejam (caso contrário, já não poderia ser o conceito dos «mil euros lá existentes»); mais: eu próprio bem gostaria de poder secundar essa exigência, de a fazer também, mas o facto é que não estão nem nunca lá estiveram, e não sei a que entidade possa endereçar a minha reclamação...

Também me não parece que por via de Pascal se encontre qualquer prova: apostar em Deus, é tudo o que o filósofo tem para aconselhar, numa espécie de piedoso truque - porque qualquer jogador sabe que se apostar em Deus e Ele não existir, paciência!, morro sem me aperceber sequer disso, enquanto que se, pelo contrário, não apostar e Ele existir, irei perder para toda a Eternidade...!
Isto pode fazer-me pensar duas vezes, mas não constitui realmente uma prova...

A única que me parece aceitável, é a mais antiga e a mais simples de todas: não se trata, naturalmente, do facto de o mundo ser perfeito, que, como podemos, aliás, observar facilmente, não é - ou não haveria necessidade de se inventar e produzir milho transgénico -, mas de ser uma construção complexa e, como tal, inteligente. E o homem, como resultado complexo de uma evolução no sentido do cada vez mais complexo, não pode certamente ser o composto arbitrário e darwinista de uma sucessão de acasos guiada unicamente por leis de adaptação. É, com certeza, mais do que isso. Embora, às vezes, baste um bando de energúmenos a destruir convictamente uma plantação de milho, ou a existência de alguém como a Carolina Salgado, para me regressarem as dúvidas...

A única pergunta que me parece, pois, sensata, é: e que Deus seria esse? Um Ser eterno e infinito, separado do mundo, criador desse mundo, ou simplesmente o Deus do panteísmo, o Logos, a dinâmica coerente da própria natureza, a esta imanente, uma força imperfeita mas não inteiramente cega, amoral mas inteligente?

É a única pergunta sensata. Não que a mim, pessoalmente, ela me interesse.
Antes manter-me ateu.

TRAGICOMÉDIA

Dizia-se que era um homem tão ridículo, que todos os seus dramas, imensos e mesquinhos, com os quais queria recolher a compreensão e a solidariedade pesarosa dos outros, nunca fizeram senão arrancar as gargalhadas bem-dispostas de quem o ouvia.

Quando teve a sua única filha e viveu, depois de uma primeira, natural e breve euforia, o período talvez mais negro da sua vida, visto que a criança nunca o deixou dormir tranquilamente uma noite que fosse, contava isto para que o consolassem, muito olheirento, coitado, com um tom olivácio e, na verdade, este drama - comparável, nos efeitos, à tortura da privação do sono enfrentado por certos heróis -, nele, tinha qualquer coisa de cómico a que ninguém resistia.

Suicidou-se.

Infelizmente, até a sua trágica morte teve uma nota falsa: porque, para se enforcar, não arranjou outra corda que não fosse a corda de saltar da sua filha, com joaninhas vermelhas...

quarta-feira, agosto 22, 2007

CONSCIÊNCIA ECOLÓGICA

Se eu tivesse leitores, iriam certamente admirar-se de que escreva com tanta regularidade acerca da tarefa de separar o lixo, ou melhor, de ir despejar nos respectivos «ões» (o vidrão, o papelão, o pilhão etc.) os dejectos prévia e conscienciosamente separados.

Não é falta de assunto. Talvez porque a minha vida seja demasiado pacata, esta tarefa marca-me particularmente. É o meu grande contributo para a Causa ecológica.

Explico porquê:
Em primeiro lugar, sinto muitas saudades de um camião que passava todas as noites pela minha porta, à segunda levando o contentor amarelo, à terça o castanho, e por aí fora...
Como essa boa ideia morreu, eu deixo os contentores ficarem quase a transbordar e, um dia, levo-os até aos «ões», muitos quarteirões adiante.
Abrem-se-me dilemas, escolhas: levá-los de carro? Essa experiência foi traumatizante, porque estava calor, os plásticos têm sempre uns restos de substâncias viscosas que deixam cheiro e atraem moscas, de modo que o meu carro, que nunca foi um modelo de asseio, andou uns dias pior do que nunca. A ponto de, quando a polícia me mandou parar para me «autuar», o senhor agente do boné periclitante ter, após umas fungadelas, desconfiado que eu levaria um cadáver escondido na mala. Por que outra razão teria ele pedido que a abrisse?

A outra hipótese é carregá-los a pé. Arrastando-me, num penoso convívio com as moscas que não me abandonam e eu já não tenho mãos para enxotar, chego a um lugar sórdido, onde abundam restos de lixo que o desgraçado que eu sou tem de pisar enquanto enfia as coisas pelas ranhuras...

Em segundo lugar, dói-me a assistência. Há ali um banco onde uns velhinhos seguem atentamente o processo. Qualquer que seja a hora, os velhinhos estão lá.
Eu descrevi, um dia, esta cena à minha mulher.
«Os velhos fartam-se de gozar comigo! De cada vez que eu tropeço, ou que não consigo enfiar uma embalagem na ranhura, os tipos riem-se... devem pensar que eu me dou a trabalhos estúpidos, que sou um palhaço, uma criatura absurda...!»
E a minha mulher rebateu-me o pessimismo fácil e macambúzio:
«Pelo contrário! Tu és um exemplo! De cada vez que te vêem, os velhinhos só podem admirar-te por perceber que há pessoas que se dão a tanto trabalho para manter o planeta melhor. Tu comove-los, é o que é...»
«Hummmm...», desconfiei eu, lembrando-me dos rostos enrugados e trocistas, onde nunca li nada que me fizesse crer que os comovia.

Da última vez, hoje, mais precisamente, lá estavam eles.
E eu, orgulhoso, imbuído da minha superioridade sobre estes gajos que atiram papéis para o chão e sacos de lixo em qualquer lado, cheio do meu estatuto de exemplo.

Mas, na verdade, as coisas correram mal. Nada entrava onde devia, o vento trazia-me gargalhadas que me feriam a superioridade, a faziam ceder, o lixo escorregava-me pelo corpo.
Furioso, berrei, para ser ouvido:
- Que se f... a m... da reciclagem!

Depois voltei para casa, cabisbaixo, não me atrevendo a olhar para ninguém, embaraçado, envergonhado.
Até que o meu grito desesperado foi ganhando um significado. Era um elemento de rebelião contra as dificuldades da luta ecológica. Por que não há-de haver um papelão mais próximo? Um plasticão mais limpo? Com ranhuras mais largas???

O meu grito era um grito de luta. O elemento de violência que, ao que parece, deve ser incorporado na luta ecológica em busca de mediatismo.

A continuar assim, qualquer dia estou pronto para ir massacrar umas maçarocas transgénicas.

terça-feira, agosto 21, 2007

UMA VITÓRIA NÍTIDA PARA A ECOLOGIA

E põe-se, de uma vez, termo às hesitações e às incertezas científicas: fica finalmente estabelecido que os alimentos transgénicos são altamente prejudiciais à saúde. Agora, há provas; há uma prova: a primeira vítima notória do milho geneticamente transformado foi o proprietário da plantação que, após o assalto dos jovens ecologistas que lhe massacraram heroicamente uma série de maçarocas, acabou tendo um enfarte.

Há por aí vozes que se erguem, discordantes, contra os bravos ecologistas. Há mesmo quem pretenda que eles erraram o alvo. Que deviam ter atacado empresas multinacionais, ao invés de um velhinho que se dedica à plantação de maçarocas. Erraram o alvo?! Isso foi o que pensaram quando um carro embateu no meu veículo e eu, furioso, tendo de bater forçosamente em alguém, dei um murro num senhor cego que se aproximara para assistir ao espectáculo. Não errei, não: acertei-lhe em cheio! E, vamos lá, quem queriam que agredisse? O homem de quase dois metros e tatuagens nos braços hercúleos que vinha a conduzir o carro que não parou num «stop» e partiu o meu em dois? Está bem, está!

Alguém, cujo nome e cuja importância eu não fixei, argumentou que não concordava com os métodos mas compreendia as razões - e sempre acrescentou que, bem vistas as coisas, a verdade é que, «apesar de tudo», nunca esta questão fora tão mediatizada. Portanto... até os métodos parecem ter qualquer coisa de bom. Se o episódio passa na televisão já quase mais vezes do que o desaparecimento da Maddie e os dislates do Berardo, então é certamente uma vitória.

O senhor Mendes e o senhor Louçã é que estão muito zangados com o governo a propósito do acontecimento. Mas o senhor Mendes e o senhor Louçã estão sempre muito zangados. Devem andar a comer milho estragado!

O HOMEM PERFEITO

- H., anda para a cama, querido - chamava ela com uma nota de ansiedade na voz.
- Já vou, Dulce - respondeu H.
Não podia deitar-se sem lavar a loiça, logo naquele dia em que a máquina pifara.
Pegou nos pratos, foi-os deixando apanhar água sob a torneira que também teria de consertar, esfregou-os minuciosamente com a esponja embebida em detergente, mais água, limpou-os; fez o mesmo com os copos, com os talheres.
- Demoras muito, querido?
- Já não, já não. Vou já já, é já já!
Faltava, porém, engomar a roupa para o dia seguinte; não tanto a dele, que preferia as suas calças de ganga «au naturel», mas a dela: a saia que tinha de se passar com cem mil e cem cuidados, a camisa delicada, com rendas por todo o lado...
Abriu a tábua, colocou as peças sobre esta, aspergiu água, passou a roupa de Dulce, colocou-a, cuidadosamente, sobre uma cadeira.
A voz da mulher impacientava-se:
- Vais inventar mais alguma coisa para não vires para a cama...?
Ela não deixava de ter razão, pensou. Algumas das tarefas que se lhe acumulavam agora poderiam muito bem ter sido despachadas ao longo da tarde, desde que saíra do serviço. Mas tivera de passar por casa da mãe de Dulce para ver se, como habitualmente, não faltava nada a Dona Auzenda que, com oitenta anos, vivia sozinha num estúdio de um típico bairro J. Pimenta.
Subiu, deitou-se-lhe ao lado.
Dulce estava ansiosa por ele, pela sua pele, pelo seu corpo. Beijaram-se. Lançaram-se um ao outro, ou um no outro, numa espécie de luta animal, a que o prolongado grito de satisfação de Dulce pôs termo, ao fim de quase uma hora.
- Outra vez? - perguntou, solícito.
- Não, agora não, obrigada. Estou bem. E fatigada. Boa noite, querido.
Ela voltou-se-lhe de costas, com o habitual ranger de molas do colchão. Desligou o candeeiro da mesinha de cabeceira.
Por falar em «desligar»: H. precisava de carregar a bateria. Literalmente. Para isso, tinha simplesmente de se desligar a si próprio, premindo o minúsculo botão a que o professor Schultz, seu Deus, seu criador, dera a forma de mamilo, o seu mamilo esquerdo. (Nos homens, os mamilos não têm qualquer utilidade. Em H., pelo menos o esquerdo...)
E isso, conseguia fazer: desligar-se.
Mas, e depois? De manhã? Não seria capaz de se ligar a si mesmo, se estava desligado.
Ela seria capaz de o fazer? Fá-lo-ia?
Desligou-se, sem saber se alguma vez voltaria a acordar...

segunda-feira, agosto 20, 2007

A GLORIOSA REUNIÃO DE LÍDERES AFRICANOS

O núcleo duro de tudo aquilo que forma ideológica e simbolicamente a esquerda e, até, une de algum modo as diferentes esquerdas, reflecte-se com alguma segurança na ideia e na prática da descolonização.

Num tempo de repensamento, em que foram sendo sistematicamente postos em causa, por teóricos de esquerda,as chaves da própria esquerda (desde o papel do proletariado à possibilidade da revolução, desde a noção de igualdade à necessidade de liquidar a instituição burguesa que seria «a família»), num derradeiro dogma não vi ainda tocar: a bondade da descolonização, como forma de libertação de povos oprimidos e garantia de progresso para todos.

Uma vez que, à falta de melhor, me considero eventualmente (ainda) de esquerda, até quando a detesto, e mesmo, por vezes, marxista (tendência Groucho Marx), e porque, por outro lado, sou um desenraizado, ou seja, alguém que nasceu e viveu (até aos dezoito anos) em Moçambique,interessa-me profundamente a questão da descolonização.

Olhando para a glamourosa reunião de líderes africanos que Portugal orgulhosamente prepara, não posso deixar de sentir um ligeiro calafrio ante essa mirambolante colecção de ditadores que conseguimos juntar. Desde o senhor José Eduardo dos Santos ao senhor Mugabe, a quem não fomos capazes de negar assento, o espectáculo a que assistimos é, afinal, o dos nossos erros ou o da falência do grande ideal da esquerda: pegou-se em grandes e ricos territórios cujas fronteiras eram, já de si, uma ficção colonial, fazendo tábua rasa de rivalidades e lutas antiquíssimas entre diferentes etnias, esqueceram-se completamente os colonos que, mal ou bem, com direito ou sem ele, tinham investido nessas terras tudo o que eram e tudo o que possuíam, entregou-se o poder a elites formadas unicamente no combate e na guerrilha, esperando que estivessem preparadas para assumir os modelos políticos europeus, como se, por sua vez, estes fossem os únicos possíveis, e os mais indicados, e lavámos daí as nossas mãos.
Em face das insanidades e devaneios dos ditadores que entretanto emergiam, limitávamo-nos a assobiar para o lado, já demasiado assolados pelos nossos próprios complexos de culpa para arcarmos ainda com novas culpas...

Não sejamos lineares: houve, na luta anti-colonial, verdadeiros heróis, homens e mulheres exemplares, de uma força e de uma dignidade extraordinárias? Samora Machel ou Nelson Mandela são símbolos maiores de tudo aquilo em que a África livre poderia ter-se tornado? Sem dúvida.
As condições tiveram excessivo peso? Os países colonizadores não podiam, após anos e anos de dura luta, senão acatar, e nos termos em que o fizeram, a emancipação dos povos colonizados? Essas condições pareciam soprar, fortemente, todas num mesmo sentido, como se não houvesse escolha, como se algo de moira fatal imbuísse o vento da História? Sem dúvida.
Porque, afinal, a História não é uma constante entrada em novos patamares de escolhas. Frequentemente, mesmo o que nos soa como «escolhas» feitas (pelos reis, pelos governantes, por Mário Soares na altura...) são a expressão de teias de condicionalismos demasiado poderosos, que empurram fatidicamente para um ponto determinado.

Mas a conclusão é, então, que o movimento da História está muito longe de se poder representar como um «progresso». (Ah, sim! Essa outra grande e optimista convicção de todas as esquerdas).

Penso nisto, enquanto imagino Robert Mugabe sentando-se no seu lugar, sorrindo à esquerda e à direita, ao mesmo tempo que coloca nas orelhas os fones de tradução simultânea a que, certamente, há-de, também ele, ter direito... (como se compreendesse a tradução de quaisquer ideias que não sejam as suas próprias)...

terça-feira, agosto 07, 2007

COLECÇÃO JOE BERARDO NO CCB: UM PROJECTO SUICIDA

Deixem-me principiar por explicar o título deste meu «post».
O que, em relação à colecção Joe Berardo, se revelou um projecto suicida, foi a peregrina ideia de a visitar em família, ou seja, com uma mulher esgotada pelo facto de terem começado as suas férias, um adolescente de doze anos, misto de homem-aranha e de incrível Hulk, todo ele energia duendia à solta (quer dizer, uma energia de duende, instável, desequilibrada, magnífica) e uma criança de vinte e dois ou vinte e três meses...

Num episódio destes radica todo o surrealismo, a génese do próprio surrealismo, tão caro a Berardo: um pai de óculos, barba por fazer, calções e pernas muito brancas, norteado pela bizarra ideia de interessar a família em pintura, fotografia e escultura; uma mãe que se arrasta, ansiosa por que as recém-iniciadas férias acabem e ela possa regressar depressa à paz do seu serviço; um garoto que, de toda a colecção, se fixou para todo o sempre na escultura de um homem e uma mulher nus, no chão, deitados um sobre o outro; uma bebé gritando, não querendo sair de um rectângulo mais saliente do chão (que foi a única peça que, aliás, interessou a esta exigente crítica de Arte), insistindo em mexer nas obras - nomeadamente numa corda estendida no chão entre dois caixotes... que devo confessar que já não se encontra exactamente na mesma posição em que a vimos quando chegámos: será ainda uma obra de Arte? Uma instalação? Com o mesmo sentido, o mesmo significado, o mesmo desígnio, depois das ligeiras alterações promovidas por uma bebé irrequieta...?

O meu filho fazia, entretanto, cenas de ciumes porque a irmã não o abraçava; a irmã berrava almadamente (ou seja, com toda a sua alma, e não, como se diz, «desalmadamente»); depois, o Duarte aproximava-se de mim, segredava-me, excitadíssimo, lembrando-se do casal nu: «Mas ele não estava com a pila dentro dela, porquê? Não era para estar?» - e queria voltar atrás, e zangava-se com a irmã, e a irmã com ele.
Os seguranças seguiam-nos, num cordão apertado, atento, como se fossemos os ladrões do «Grito», detectados ali. Um deles, muito alto, muito negro, ria-se de tudo aquilo, com uns dentes a brilhar, enormes, alvíssimos. Os outros não riam. Preocupavam-se. Eu sentia que incomodávamos os demais casais, os velhinhos, os visitantes, a todos menos ao segurança negro de dentes brancos, que se divertia com o espectáculo...

O surrealismo, de que a nossa família nasceu, e que nasceu certamente, enquanto corrente artística, de um episódio como esta nossa visita, misturando o quotidiano com o onírico, o normal com o anormal, o bizarro e o impossível, nunca perece. Já nas salas de cima, desculpem-me, a pop-Art cansa, com as suas colagens, a sua confusão entre realismo e banda desenhada...
É a análise possível. Porque, mais à frente, a minha filha se prepara para subir a uma instalação.
Enquanto o meu filho volta à carga, de mãos nos bolsos:
«Mas ela tinha pêlos no pipi?»