segunda-feira, dezembro 29, 2008

NÃO SE BRINCA COM COISAS SÉRIAS (E EU ESTOU A NARRAR, NÃO ESTOU PROPRIAMENTE A BRINCAR!)

A minha... a minha quê? Principiemos, pois, por aí. Que me é, exactamente, a mulher de um meu primo? Quase-cunhada? Cousin in law, atendendo a que ela é norte-americana?

Enfim, essa mulher optimista, numa noite em que eu os convidara para jantar, olhava-me há já algum tempo com uma fixidez lancinante, incómoda, perturbadora; como ela é americana e tendemos a esperar que os americanos sejam gente de costumes diferentes, já me preparava para o momento constrangedor em que, sob a mesa, ela fizesse deslizar o seu pé descalço ao encontro do meu, quando, bruscamente, percebi o que lhe atraía a atenção. Uma mancha que eu tenho na testa. Uma espécie de sinal em que, por sinal, muitas pessoas têm reparado ultimamente.

A teoria da minha mulher é simples: a mancha sempre cá esteve! O cabelo é que já não vai estando. Por esse motivo, mais descoberta, a dita mancha nota-se agora bem.

Devo dizer que uma tal teoria, que atribui a uma calvície galopante o facto de se começar a reparar
tanto na mancha, não me agrada. Salva-me dela a cousin in law, sempre optimista:
- Não, não é de carreca! Tens que verr isso. I met a guy of your age, and he had a spot exactly like that one. And he died!

Porque estas coisas não são para brincar - e não se deixem enganar pelo meu tom ligeiro -, resolvi levar o aviso muito a sério. Não dormi duas noites e, ao terceiro dia, zarpei para o médico, um senhor de bibe branco que, imediatamente antes de à saída me pedirem que pagasse noventa euros, demorara comigo doze-minutos-doze, nem um mais, para me dizer, com um ar trocista:
- Oh, meu caro! Mas nem sequer é um sinal. [E chamou-lhe outro nome!]. Isso não tem importância. [Mais um pouco, e acrescentava: «Já experimentou lavar com água e sabão?!»]. Se quiser, pode tirar, mas unicamente por razões estéticas. [Por um triz não disse: «Basta puxar, a ver se arranca...»]

Senti-me defraudado.
Foi como se, imaginem, ao entrar no gabinete do médico me tivesse acontecido tossir, e ele me dissesse: «Nem vale a pena sentar-se. O seu mal é tosse. Não se esqueça de pagar à saída...!»

Cá fora, chovia desalmadamente e eu, na escuridão, não sabia já onde diabo estacionara o carro.
Procurando-o, completamente ensopado, agasalhava-me melhor na gabardina, cruzando ambos os braços sobre o peito. («Cruzando ambos os braços» é uma judiciosa escolha de palavras, uma vez que não poderia ter cruzado um único braço).
Passei, nessa grotesca figura, por duas mulheres, uma das quais, a mais velha, explicava à outra, obviamente mais nova (acerca de mim):
- Desvia-te, Catarina, que esse é dos que abrem as gabardinas para mostrar o pirilau!

Topo subitamente o carro, enfio-me no interior e arranco, espirrando!

domingo, dezembro 28, 2008

HÔ-HÔ-HÔ

A prova de que os adultos pouco sabem acerca das crianças reside em que, para as divertir, tenham inventado nada menos do que o palhaço - uma espécie de monstro com o rosto fantasmagoricamente branco, uns lábios de jazzman e um nariz de bêbedo, isto é, redondo, vermelho e grande. Se acrescentarmos a tudo isto aquela sua típica maneira de falar à Luís Figo, percebemos que se trata de uma personagem para infundir terror, nunca para fazer rir.

Um casal de amigos muito meus amigos (contando que não venham a tropeçar neste «post») decidiu, há já alguns anos, comemorar o aniversário da filha com a seguinte surpresa: quando estivessem os meninos concentrados na sala, com as mãos untadas de bolo e alguma coca-cola por perto, eles se encarregariam, digamos, de estragar a alegria da petizada surgindo, mascarados de palhaços, de corneta na beiça e viola em punho. A intenção era boa! Eu estava lá e assisti a tudo. Não assisti propriamente à intenção, que não era visível, mas em cuja bondade deposito uma inquebrantável fé. Fui, todavia, espectador do efeito: crianças a berrar, lágrimas grossas espirrando e arruinando as fatias de bolo, coca-colas derramadas pela carpete do IKEA.

Lembro-me do pai da aniversariante parando, incrédulo, trágico no seu chapéu bicudo, a tristeza estampada no rosto enfarinhado, a virar-se para a mulher (essa de palhaço pobre vestida, com uma meia de cada cor) e perguntando-lhe:
- E agora...? Continuamos?
Não puderam continuar.
É verdade que esperavam risos, não aquele pavor. E não é que não houvesse risos. Houve, e muitos. Mas não houve os esperados: para ser sincero, o único que se ria era eu próprio, que não devia, claro e, até onde possível, tratei até de disfarçar, mas sempre tive um humor imperdoavelmente perverso.

Esta história serve para ilustrar o desconhecimento que os adultos têm acerca do que efectivamente uma criança pode considerar divertido ou engraçado. Por mim falo. Chego, pois, a outra historieta:

A minha filha recebeu, neste Natal, bonecas, peúgas e livrinhos.
Trouxe-as carinhosamente o Pai Natal (um Pai Natal da crise, evidentemente mas, ainda assim, um Pai Natal...), em que me esforcei denodadamente que ela acreditasse.
Falara-lhe tanto do bondoso velhinho das barbas brancas, e das renas, e dos presentes distribuídos pelos meninos bem-comportados (o que nunca pode ser literalmente entendido, porque «meninos bem-comportados» é aquilo a que se chama um paradoxo).

Pois bem: o resultado? Por estes dias, a minha filha não dorme.

E à noite, da sua caminha de grades, repete, com os olhos brilhando muito no escuro, como duas enormes bolas natalícias:
-Nã quéi domiri. Tem medo do Pai Natali!

domingo, dezembro 21, 2008

O FILHO PRÓDIGO

Devo confessar a todos os cristãos com cartão e lugar cativo (no céu), que a Justiça segundo a Bíblia me deixa sempre um tanto dubidativo.
Pegue-se, entre outros, no exemplo do Filho Pródigo.

Imagine-se o leitor, por um momento, no lugar do filho que ficou em casa; eu tento pôr-me muitas vezes nesse lugar. (Deve ser porque me apetece cada vez mais ficar por casa, em vez de andar a tropeçar em gente feia pelos centros comerciais). Ele vê o irmão pedir, ao pai, a percentagem da herança que lhe caberia. Vê-o sair de casa, indiferente às saudades que semeia. Vê o estado em que o pai fica. Acompanha o velho. Ajuda-o no dia-a-dia. Trabalha por dois. Ara a terra. O irmão não está lá para cumprir com a sua parte. Aliás, presumo que um rapaz desse calibre não fosse, mesmo enquanto estava em casa, um exemplo de amor ao trabalho. É de admitir que o próprio pai, por causa da tristeza em que caiu, tenha diminuído no seu rendimento. Em suma, o irmão quedante, quedou-se a trabalhar noite e dia para substituir o pouco que fariam o madraço e o velhote.

Gramou as queixas, Ai ai o teu irmão, que falta me faz, coitadinho, por onde andará ele?, gramou a tristeza que inundou o casarão (pois nunca mais foram capazes de lhe fazer uma festa, nem sequer pelo aniversário...), gramou a solidão. De pé firme.

E um dia, chega a casa (ironia suprema: chega do trabalho!!!) e repara que há luzes, repara que há música, tarã, tarã, tã tã tã tã! Pergunta, como quem não quer a coisa, O que se passa, O que se passa, pensando, no seu íntimo, Querem ver que eu faço anos e desta vez se lembraram...?, e que ouve ele? Que o seu irmão voltara!

Mas esperem, amigos. Há mais ironias nesta edificante história: voltara, porquê?
Resposta: porque gastara a parte da herança que o velho pai lhe havia adiantado. Não é bestial? Não é fabuloso? Não voltara pelas saudades. Não voltou pelos remorsos. Voltou... tenho de fazer uma pequena pausa para respirar fundo... porque tinha gasto o dinheiro.

É que, ao que parece, tiritando de frio, lambendo-se de fome às portas dos restaurantes, tentando alimentar-se do odor das iguarias, lembrara-se, melancolicamente, Em casa do meu pai é que era bom, em casa do meu pai nunca passei fome.
Como diria Freitas do Amaral: É preciso topete!

Ora o irmão quedante ainda teve tempo para ouvir a voz feliz do pai mandando matar um bácoro para festejar o regresso do filho pródigo.
«Mas espera lá! Eu fiquei, trabalhei, amparei tudo e todos e nunca ninguém se lembrou de festejar com um bácoro e vinho a minha contínua presença...! E este foi-se! E quando regressa, tarã tã tã, tarã tã tã...?»

Quando me falam em Justiça Divina, só posso responder, humildemente: Os caminhos do Senhor são insondáveis. A mim - e à minha limitada e terrena compreensão - escapam-me totalmente!

PARA UMA BREVÍSSIMA HISTÓRIA DAS INCURSÕES PORTUGUESAS NO NOBEL

Todos sabemos que um de nós recebeu o prestigiado prémio Nobel: trata-se do senhor Saramago, genuíno representante do português que há em cada um, quer por não ter descansado enquanto não fugiu do cantinho luso, quer porque se comporta, em relação à gramática portuguesa, como os portugueses em geral se comportam em relação ao fisco.

Mas, aos mais distraídos da História de Portugal (isto é, uma vez mais, aos portugueses), gostaria de lembrar que há um outro Nobel nosso. É verdade. Trata-se do Professor Egas Moniz, que se tornou conhecido pelo seu tratamento dos malucos que, à maluquice deles, permitiu adicionar uma espécie de estupidez. E só não falamos mais, hoje em dia, deste FAROL da ciência, porque, infelizmente, um anódino episódio acabou por ficar associado para sempre ao seu nome: decidiu ir de corda ao pescoço, mais a família inteira, apresentar-se ao seu rei.

Eu sei muito bem que as pessoas que já tinham lido este «post» hão-de estar a esfregar os olhos. Porque não era o que vêm de ler que eu tinha originalmente postado. O problema é que confundira o Egas com o Becas, perdão, o senhor Egas Moniz com um outro Moniz, estão lembrados? (E não ter metido no barulho o Moniz da TVI foi um bambúrrio da sorte...! Parece que pertenço ao saco dos «portugueses distraídos da História»... Não fosse a atenta Angel e ainda agora o miserável erro aqui estaria a reluzir...)

Acerca do outro Moniz - já se perderam? -, lembrava eu a morte bizarra, entalado numa porta ali ao Martim Moniz, entalão que, tragicamente, superaria qualquer feito que houvesse efectuado em vida. É triste. Consta que um magote de gente aproveitou a nesga assim aberta para entrar num tropel assassino. O homem a gritar «Ó, por favor, olhem que estou aqui eu, deixem-me sair» e o pessoal a enfiar-se pelo centro comercial que, àquelas horas, tentava fechar as portas. (Uma vez aconteceu-me isso num autocarro: palavra que não é fácil. Eu entalado e uma imensa e inumana mole de seres humanos a aproveitar para entrar, a despeito dos meus protestos...)

Mas todas estas confusões vêm a propósito da minha pretensão. Retornemos à vaca fria. Gostaria muito de propor, para próximo Prémio Nobel, não sei exactamente em que ciência, o meu Vizinho Mário, que inventou uma forma de não ter de se mudar a água na máquina de café de cada vez que se vai fazer outro café. Como a minha mulher já me tinha convencido de que «se-passada-meia-hora-eu-me-preparasse-para-fazer-um-novo-café», tinha por força de trocar a água que ficara no depósito, a operação tornara-se-me pesada e penosa. Já andava até a beber menos café! Ora, em casa do Vizinho Mário, não se procede a troca de água. Como lhe expusesse o problema, respondeu-me o bondoso velhinho: «Que disparate!»

Como a minha mulher tem sempre razão (e o vizinho Mário também) - na perspectiva de um e de outro, a mim é que a razão abandona frequentemente -, suponho que o senhor tenha inventado um sistema com filtros, qualquer coisa capaz de melhorar substancialmente a vida da humanidade.

Não me agradeçam a revelação. Dêem o Nobel ao homem e já me sentirei suficientemente recompensado.

terça-feira, dezembro 16, 2008

ALGUMAS LIÇÕES DE INFORMÁTICA (SIM, SIM, EU OUVI ESSE COMENTÁRIO! LIÇÕES DE INFORMÁTICA DADAS POR MIM, POIS, QUAL É O PROBLEMA?!)

Primeira Lição.

Quando temos dúvidas acerca do código de acesso, e hesitamos entre duas possibilidades, devemos experimentar ambas.

Não ao mesmo tempo, é claro, mas sucessivamente.

Regra geral, a primeira que tentamos está errada.

Frequentemente, a segunda também não era ainda a correcta.

segunda-feira, dezembro 15, 2008

CAÇADOR DO IMPOSSÍVEL

Chamam-me caçador.
Saio à noite, solitário e melancólico. Melancólico porque sinto que a minha tarefa me torna injusto.
A arma que possuo é o tempo.
E o tempo não é meu amigo, é meu inimigo. Devo ser o único caçador que transporta uma arma que o próprio caçador não ama, mas teme; que o próprio caçador não consegue sentir, cúmplice, no seu braço - antes fria e rancorosa, como se a qualquer momento pudesse virar-se (e vira, por vezes), contra ele: como um instrumento que se não adapta inteiramente à sua mão, que nunca chega a ser uno com esta, que está sempre a mais, sempre inorgânico, sempre incómodo, e de que, no entanto, o caçador inteiramente depende.
Saio. Mato. Com o tempo que desprezo. Me despreza.
E regresso. Eu mesmo mais velho, depois de cada nova morte.
Não renasço em cada morte inflingida. Não me alimento das sucessivas mortes. Suicido-me sem conseguir morrer.
Em cada morte, morro um pouco, sem morrer de uma vez.
E regresso.

quinta-feira, dezembro 11, 2008

MUNDO DE AVENTURAS

A minha vida, como oiço às vezes à senhora dona sogra, dava um filme. Não será tão espectacular e glamourosa como pode parecer à primeira vista (por exemplo à Sara T., que pergunta: «Mas é mesmo assim...???»), mas mantém uma permanente agitação; se não, vejamos: é verdade que me esqueço frequentemente da chave de casa e tenho de saltar o gradeamento e, a seguir, enfiar-me por uma janela que, do lado de fora, não abre senão o suficiente para me entalar; mas encolho a barriga e estreito-me de forma a fazer passar o meu corpo elástico, aterrando, ao fim de quinze penosos e doridos minutos, sobre os copos de vidro de uma casa de banho. E tudo sem qualquer vaidade; não é por isso que digo, ao apresentar-me: «My name is Duarte, Gil Duarte»...

Também é verdade que, no outro dia, andei fugindo, pelos telhados, de uns ucranianos que queriam eliminar-me: mas não foi nenhuma aventura de maior - não se tratava de agentes da ministra, nem de uma organização criminosa como a ASAE. Eram simplesmente ladrões. E, aliás, exagero um pouco: no fundo, estes ladrões não passavam de um casal honesto, que procurava devolver-me a carteira que eu esquecera sobre o balcão de um café. Eu é que me assustei desnecessariamente. Já agora, para ser rigoroso-rigoroso-rigoroso, também não se pode dizer que tenha chegado a subir exactamente aos telhados. Limitei-me a trepar a um muro. Um muro baixo. (Algumas pessoas chamam-lhe «passeio». Mas o ponto é que, para fugir aos honestos facínoras, fui obrigado a andar sempre pelo passeio...)

Há, portanto, que não desmerecer desta vida aventurosa. Era-o mais, é claro, quando eu tinha um cão. Reparem: o Dunga chegou a morder-me; e, atenção, houve aquele dia em que eu próprio estive vai não vai para morder-lhe. Mas mesmo agora, que ele se foi, existe uma certa agitação na minha vida. Dava um filme.

Nós, os vagabundos dos limbos, sem amarras nem laços, nós, os eternos navegadores do infinito, judeus errantes, temos sempre novas e sumarentas aventuras.

Não é que eu, na minha qualidade de «vagabundo sem amarras nem laços», não tenha de facto amarras. Tenho-as. Mas sempre recusei a obtusa opressão dos laços. Isso nunca. Jurei que nunca usaria laços nem gravata!!!

quarta-feira, dezembro 10, 2008

NOVA PROFISSÃO: AFIXADOR DE CARTAZES

Como a situação dos professores se encontra mais embrulhada do que nunca - e, mesmo no Natal, «embrulhos» nem sempre são bons... -, aceitei, com as previsíveis reticências do burguês acomodado que sou, o convite para me juntar a um grupo de um movimento em torno da aspiração a uma «escola moderna», a fim de colar uns quantos cartazes, à noite, anunciando um debate sobre o candente tema da avaliação do desempenho docente. (5ª-feira, na Escola de S. João do Estoril, pelas dezanove horas, com a presença de Ana Benavente).

Está frrrrrrio! Deve ser a noite mais fria do ano.
Levo um casaco por baixo de uma camisola de gola alta, e um sobretudo por cima disto tudo. Sou um embrulho.

Chego de carro.
O líder dá-nos indicações precisas. Infelizmente, somos poucos.
- O Camarada X, que é a alma por detrás da organização desta noite de colagens, infelizmente não pôde vir. Foi para a Serra da Estrela. Estão prontos, camaradas?

Seguimos. Vamos numa procissão de automóveis. Teria sido mais fácil reunirmo-nos todos numa carrinha. Ou num carrinho qualquer. Não. Seguem quatro automóveis, cada um dos quais não transporta senão um único condutor. Não sei bem porquê, aceitei levar o balde com a cola e com as trinchas. «Isto não entorna?», pergunto. «Não, camarada. Não vamos fazer gincanas.»
Seguimos. A cada solavanco, sinto que há mais um teste de mais um aluno, no banco de trás, que ganha alguma cola.

Primeira paragem. Saímos. Sobretudos, cachecóis, barretes. Tirito. Levo uma trincha a que não sei o que fazer. Sou um intelectual, que diabo, não estou muito habituado a lidar com trinchas! Os outros movem-se rápida e agilmente - não precisam, para colar uma meia dúzia de cartazes, mais do que o tempo que eu levo a tropeçar no balde e a derramar um pouco de cola nos sapatos.
«Então, camarada, então, há que não desperdiçar...»

Dão-se instruções sobre a próxima paragem. Reentramos nos carros. Conheço o destino, arranco, por uma vez durante a noite seguro de mim. O líder está furioso. Tenta ultrapassar-me: é ele que tem de ir à frente; começo por julgar que é uma brincadeira e acelero. O líder parece doido. Gesticula no interior do seu veículo prateado. Deixo-o passar.

Chegamos ao segundo ponto. Saímos. Colamos cartazes junto a uma escola. O Guarda-nocturno segue os nossos movimentos com uma viva curiosidade.
Encaminhamo-nos de novo para os carros. «Não podemos ir andando a pé?», ainda tento eu. Olham-me com ar de quem está perante um novato nestas andanças. A procissão automobilística reinicia-se, portanto.

Já com o veículo em marcha, observo, perplexo, que o Guarda-nocturno referido supra, se entretém a arrancar os cartazes que viéramos de colar. Calo o bico. Sou um novato, deve fazer parte do procedimento.

Nova paragem. Outra escola. O líder pára para fumar um cigarro que lhe provoca uma tosse de que nunca mais se libertará durante o resto da noite. Estou com o sobretudo manchado de cola. Sou mesmo novato!

Sempre que chegamos, o líder saca de um novo cigarro e de novos acessos de tosse.
Esgotámos os cartazes que, afinal, não eram muitos: três aqui, quatro ali, seis num outro ponto. Unindo sempre os pontos com linhas de carros em procissão.

Regresso a casa, pensativo. Andava a pensar em mudar de profissão. Percebo que, para mim, a de afixador de cartazes não constitui alternativa.

Andei a trabalhar por uma nova escola, ein? Estive ao frio, a dar o couro por vocês, professores e alunos. E corri riscos. Podia ter aparecido a polícia. Ou a ministra. Mas eu sou assim.

Até sempre, camaradas!

segunda-feira, dezembro 08, 2008

REGRESSO DO CÍRCULO GELADO

Às vezes, vale a pena sentirmo-nos mortos e enterrados.
Mortos, por exemplo, para alguém que nos é querido.
Apenas para podermos ter o prazer da ressurreição. Apenas para termos o prazer de descobrir que nos julgávamos mortos mas não estávamos, nos pensávamos esquecidos mas não nos haviam realmente esquecido.
O túmulo é frio. O inferno não tem chamas, é também frio, é gélido.
Acordar, porém, é sempre suave.
Sou Lázaro, venho do círculo mais gelado do inferno; estou vivo: sei do que falo.

sábado, dezembro 06, 2008

PIRIQUITO & BANANA

Chego à creche pisando já a hora-limite para os pais levarem dali os filhos: aquela hora tardia em que as educadoras, esgotadas, desgrenhadas, devolvem as crianças, com um sorriso de circunstância, pensando certamente para os seus botões «Vocês é que os fazem, nós é que os aturamos!», com a mente fixa na banheira de água quente que as espera no lar.

Vou nervoso: antecipo a forma como, entrando na sala, a Daisy, como de costume, fará ostensivamente questão de me desobedecer, fugindo-me enquanto a persigo para a enfiar num sobretudo castanho escuro, desarrumando os tabuleiros de jogos que as senhoras já haviam conseguido arrumar, exigindo bolachas...

É, de facto, o que sucede. Quero impor-me. Pelo menos ali, aos olhos delas. Inicio a minha perseguição. Uma jovem Auxiliar tenta intrometer-se duas, três vezes. Diz-me algo. Ignoro-a rudemente. Tento, com um sucesso mais do que duvidoso, mostrar-lhe que a Daisy não fará hoje de mim gato-sapato. (Interiormente, sopro «miau», sentindo-me, na minha dimensão de «sapato», com os nervos completamente desatados...)

Finalmente, percebo o que a Auxiliar, que não desarma, tem para me dizer, fingindo, retoricamente, que fala para a menina:
- Então, Daisy? Já disseste ao papá quem é que vai hoje para casa com vocês?
Por alguma razão, mesmo a um homem de cinquenta e um anos como eu, habituado a ter passado pelos episódios mais surrealistas do mundo, aquela pergunta soa horrorosamente bizarra, preocupantemente bizarra. Não consigo evitar que a imaginação dispare. Vai alguém connosco para casa?! Um psicólogo, para avaliar se somos os responsáveis pelo comportamento da criança? E se for um psicólogo - perturba-se a minha mente culpabilizada -, que deveremos fazer? Oferecer-lhe de jantar? Dormirá em nossa casa? Fica uma semana? Podemos recusar...?

Daisy explica:
- Os capaínhos, pai. Os capaínhos!
Os capaínhos vão, portanto, connosco hoje. Para nossa casa. Devo preocupar-me? É que não sei quem sejam os capaínhos. Uma família carenciada, por estarmos próximos do Natal?

Os capaínhos, claro, são os passarinhos. Como castigo por ter chegado hoje tão tarde? Ah, não! Toca a vez a cada um dos meninos: ali estão dois passarinhos azuis numa gaiola branca. É a vez da Daisy.

A minha filha insiste em levá-los. Não pode com a gaiola. Bate com ela ruidosamente no chão. Contra as paredes. Os piu-pius nem piam.
Tento impor-me:
- Eu levo, Daisy, eu levo. Olha que os matas!
- Nããããããããão! Nãããããããããão! A mim, a mim, a mim!
Bem, então levamo-los os dois, pode ser? A meias. Esforço-me por pôr em prática o meu plano. Mas a gaiola vai muito inclinada, e tem de ir, a não ser que eu marche de gatas ou completamente dobrado até ao carro.
Digo para a Auxiliar:
- Bem, boa noite. Até segunda!
Responde-me, triunfante:
- Feriado! Até terça, até terça!

Lá vamos, Daisy e eu, com os passarinhos aos trambolhões, tentando não falhar uma parede.
Pergunto:
- E como se chamam eles, Daisy?
- Piquitito e Banana!
Desconfio que não. Mas, pelo menos até terça-feira, a todos os seus tormentos terão de acrescentar este, ainda: chamar-lhes-emos Piriquito e Banana!

sexta-feira, dezembro 05, 2008

POR MIM, NÃO POSSO COM PESSOAS ENCANTADORAS!

Há pessoas assim: algo no seu olhar, no seu sorriso, no todo da sua disposição irradia uma luz permanente; é ao que se chama «encantamento». Elas são, inegavelmente, encantadoras.

Mas quando as conhecemos um poucochinho melhor que seja, percebemos que, precisamente porque se habituaram a encantar, porque se habituaram a que os outros reajam à sua simples presença tornando-se-lhes ilimitadamente prestáveis, porque se habituaram a que ninguém lhes resista - tendem a sentir como um privilégio que concedem aos demais, consentir que estes as sirvam.

E os outros babam-se quando os «encantadores» os usam.

Os encantadores são pessoas que perdem a noção e a medida do que pedem: tudo lhes parece natural. Que haja quem se esforce, quem os substitua, quem, em prejuízo próprio, faça por eles o que lhes competiria.

Não sentem o sacrifício dos outros. Consideram, tácitamente e com ligeireza, que, por elas, todo o sacrifício tem de ser tomado como uma espécie de prazer. Um sorriso pagará tudo. Como o sol que, por ser quem é, sem demasiado trabalho, ilumina o mundo.

Os não-encantadores, como a ministra da Educação e eu mesmo, têm alguma dor de cotovelo. A ministra, que exige arrogante e asperamente, sem olhar a meios, e se mostra perplexa com a saraivada de manifes, greves e ovos com os quais lhe respondem, e eu, que não tenho coragem de pedir, quer porque «pedir» me humilha, quer porque sinto que mereço pouco da vida - lá está o meu lado Kalimero - ficamos, no fundo, espantados por termos de trabalhar tanto (mesmo se trabalhando pessimamente, como no caso da Dona Lurdes Rodrigues) para conseguir o mínimo ou para desconseguir de todo o que ambicionávamos...

Os encantadores, por seu lado, fazem cursos sem precisar de trabalhar!

terça-feira, dezembro 02, 2008

TESTEMUNHA À CHUVA

Ia eu no meu veículo, durante uma noite gelada de Dezembro, sob uma chuva que os limpa para-brisas insistiam debalde em extrair do meu campo de visão, quando, por um breve lapso de tempo, me pareceu ver uma série de vultos, ao abrigo de uma paragem de autocarro, entretidos numa operação frenética e bizarra.

Como eu avançava devagar, muito devagar, à medida que o carro se aproximava pude reparar que eram dois indivíduos, talvez um homem e uma mulher, e que se debruçavam sobre o banco, como se o limpassem. Havia, aos pés deles, um outro vulto estendido, comprido.

Foi pouco tempo; o meu carro, vagaroso ou não, prosseguiu o seu caminho.

Aquilo soava estranho, no entanto; de uma inquietante estranheza: estranho porque a chuva era tão intensa, que o banco da paragem estava obviamente molhado. Por que limpariam eles um banco encharcado, sob uma chuva que continuava caindo torrencialmente? Parecia ridículo. Não fazia sentido.

Depois, pensei melhor: só se estivessem tentando eliminar algum vestígio que a chuva não varresse por completo. Sangue...? Manchas de sangue já seco, incrustadas no banco metálico, que nenhum temporal poderia apagar?
Talvez então - continuei pensando enquanto, ridiculamente, a música dos Abba roufinhava no meu rádio -, aquele volume comprido, a seus pés, fosse um corpo? Ou (demasiado cilíndrico para ser um corpo humano), se tratasse de um tapete enrolado, no interior do qual tivessem enfiado o corpo de que se queriam livrar?

sexta-feira, novembro 28, 2008

ALGUNS ARGUMENTOS

Com as ineptas tentativas de simplificação de um modelo abstruso e inexequível, o ministério consegue, quanto mais não seja, que os Encarregados de Educação, alguns professores, até, e os portugueses em geral principiem a interrogar-se acerca da classe docente: «O quê?! Ainda não ficaram satisfeitos? Mas então que mais querem? Ora bem, esta cambada não se vai deixar mesmo é avaliar...!»

O problema, naturalmente, é que um modelo tem de ser visto como uma estrutura global, informada por determinados pressupostos e contendo uma filosofia subjacente. Quando é esse conjunto, com os seus supostos pedagógicos e éticos, que está sendo contestado, quaisquer ajustamentos, modificações, simplificaçãozinhas só poderão falhar o essencial, tornando o todo, ao mesmo tempo, um monstro híbrido e descaracterizado, um instrumento coxo e esvaziado.

Este paradigma, para falar à moda - que é já antiga, assombrando-nos desde, pelo menos, que Kuhn a lançou, mas enfim...! - este paradigma está errado na sua essência.
Por um lado, como é óbvio, é errado porque avaliar o trabalho docente segundo objectivos quantificáveis revela-se um disparate. E, como todos os disparates, de uma arbitrariedade absoluta. Estabeleço o «objectivo» de realizar «pelo menos» duas actividades ligadas ao cinema? E se conseguir realizar as duas previstas sou «Bom» - tenham sido elas, na prática, a cagada que forem...? Se tiver realizado três ou quatro - superei o objectivo, tornando-me «Muito Bom» ou «Excelente», ainda que hajam sido exercícios de puro folclore?

(Será que, por essa ordem de ideias, analogamente, do «número» de vezes que, numa sessão, eu retome o acto sexual, é que depende a avaliação da qualidade da minha prestação na cama? «Três? A sério?! És boooom! Quatro? Uau! Que fera!»)

Por outro lado, note-se o absurdo da forma como se prevê o que seja uma aula assistida. Não sou contra a ideia de que venham observar as minhas aulas. Terei muito gosto, se quiserem fazer-me uma visita. Mas porquê três? Que saberão sobre as minhas reais capacidades como professor vindo assistir a três aulas previamente marcadas, que eu hei-de seguramente preparar de um modo atípico, que não revela o que faço e como faço habitualmente?
Dir-me-ão: «Mas aí está precisamente algo de que a ministra precindiu».
Ora, em primeiro lugar não, não prescindiu - não, se eu estiver a apontar para o Muito Bom ou Excelente. Nesse caso, devo chegar-me à frente para que mas venham observar. E já viram as reacções dos meus colegas em face de um tal requerimento, de um tal pedido meu? «Olha, olha, olha aquele a querer fazer-se ao Excelente! Ehehehe! Eu sempre disse que o gajo tem a mania que é o máximo. (Mas olha, na cama, digo-te eu, não vai além de uma vez de cada vez. Coitado!...»). Por outro lado, afirmando «Quem se contente com o «Bom» não tem de se incomodar, deixe-se estar», no quadro deste modelo, ou seja, mantendo-se o paradigma, estamos a colocar-nos ao nível do Jardim, que manda todos os professores madeirenses para casa com uma espécie de «Bom» administrativo...

Finalmente, sempre disse (e, aí, sem qualquer originalidade, mas completamente em sintonia com o discurso dos sindicatos), que a divisão dos professores em Titulares e Meros Professores, e a consequente decisão de que de entre os titulares deverão, digamos, sair os avaliadores dos outros titulares e dos não-titulares, entre pares de profissionais que tomam café juntos, se cruzam todos os dias, formando simpatias e antipatias, amizades, cumplicidades, inimizades, é de uma tão elementar estupidez, que custa ver como não foi já compreendida... caramba... até por aquele senhor de permanente encaracolada, livra!, ou mesmo pelo outro que não pode fazer qualquer tipo de permanente... (Estou a descambar para uma argumentação ad hominem? Pois é. Mas deixem-me então refazer: Custa aceitar que esta estupidez não tenha sido compreendida até pela ministra, mesmo com as suas notórias limitações. Como ela não é um homem, julgo que já não se pode chamar a isto argumento ad hominem... ou sim?! Huuum...!)

terça-feira, novembro 25, 2008

UM ESPECTÁCULO PENOSO

Depois do pedaço que suportei do último Prós e Contras, sobre a avaliação do desempenho dos docentes, quedo-me a pensar, com alguma melancolia, sobre esta disjunção: ou, de facto, quando nos deparamos com programas destes, que juntam professores a falar, percebemos rapidamente como e quão, na generalidade, a nossa classe profissional é medíocre; ou, alternativamente, e por alguma razão que me escapa, devem convidar sempre os piores de entre nós, os mais atados e atabalhoados, os incorrigíveis senhores do dispararate.

E apetece perguntar: Então, realmente, não é justo submeter estes imbecis - e imbecis deste género - a uma qualquer avaliação?

Devo dizer - e com tristeza o digo, como professor de filosofia - que, nos últimos tempos, os ensinantes do Amor pelo Saber, esses, sobretudo, têm dado lições e espectáculos gratuitos de falta de senso (logo eles, que repetem, cartesianamente, que o «bom senso é a coisa mais bem distribuída neste mundo», numa ironia em que se procura deixar claro, pelo contrário, que só a eles coube a distinção de pensar bem). Mas é ver as embrulhadas, as falácias, os penosos exercícios de argumentação sem tom nem som, os erros formais e factuais que arrepiam os seus discursos (e arrepiam os tele-espectadores)...

Ponho-me no lugar de um Encarregado de Educação, de um cidadão anónimo, e grito para mim: Estes tipos não querem é mesmo ser avaliados!

Porque esta é a questão central, e não basta dizê-lo, nem repeti-lo: Nós queremos ser avaliados! - É preciso dar provas de que sim, e de como. É preciso desmontar as vozes que ecoam persistentemente nos nossos ouvidos e que, de Daniel Sampaio a Maria Filomena Mónica (já nem falo do Tavares e do Rangel, esses odiadores encartados dos docentes portugueses), insinuam que, no fundo, os professores constituem a mais fechada das corporações e que, no fundo, nunca verdadeiramente foram avaliados e que, no fundo, estão pouco desejosos de o serem.

Pensar pela própria cabeça é bom. Ser tutela de si mesmo é bom. Ser comité central do próprio espírito, liberta.
Saber o que se quer, procurar sempre saber o que realmente se quer e porquê, é indispensável.
E quando se não sabe, pensa-se melhor, antes de se aceitar o convite para ir ao Prós e Contras.

segunda-feira, novembro 24, 2008

A SORTE GRANDE DE SÓCRATES

Instado a confessar se a indignação e as manifestações dos professores o faziam temer que ficasse definitivamente ameaçada a possibilidade de uma nova maioria absoluta do PS, o primeiro-ministro, senhor José Sócrates, respondeu: «Nós não governamos a pensar em maiorias absolutas».
Ora a isso é que eu chamo não ter medo das palavras. Porque, bem vistas as coisas, José Sócrates disse tudo. Um pouco mais do que tudo, até. Para ser certeiro, bastar-lhe-ia ter explicado: «Nós não governamos a pensar». Ponto.

Mas eu compreendo que a ministra, por seu lado, não saiba para onde se voltar, para onde fugir, para onde recuar, por onde resolver o problema.
E não é por falta de trabalho. Na verdade, tem-se esforçado bastante, tem trabalhado como nunca. Tome-se um exemplo: a última entrevista que lhe foi feita na televisão; era bem notório o imenso, o intenso trabalho em que se empenhou para reformar, em pleno tempo de crise, era nítido o seu radical ímpeto reformador: por uma vez, não aparecia despenteada: é uma reforma no visual; nada de fios soltos na cabeça: uma grande reforma, bolas!; algum pó-de-arroz, uma cor nos lábios. Não se pode ignorar esse esforço reformista. Depois, a moderação na voz. O tom comedido, quase doce. Não conta?
Não digo, vamos lá ver as coisas, que tenha conseguido tornar-se bela. (Embora se, em Portugal, houvesse alguém tão irrazoável e delirante para considerar possível uma tal reforma, esse alguém seria, evidentemente, a ministra da Educação); mas digo que se realizou um esforço honesto, ingente e visível para que ela não estivesse, ali, muito mais feia do que Judite de Sousa.

O problema permanece delicado; mais do que nunca. Como salvar a face? Sim, há faces que não merece a pena salvar. Mas, enfim, como mudar o modelo de avaliação sem dar a entender que se mudou? Ou, pelo contrário, como não mudar dando a aparência de que se mudou? Mais: e como conseguir fazer que o senhor de bigode farto, do sindicato, aceite essas mudanças-que-o-não-são, ou essas não-mudanças-que-o-são-mas-não-interessam?

E, pensa Sócrates, como evitar, no meio disto, a sangria dos votantes? O esvaziamento da maioria absoluta? Resposta dada, portanto: evitando pensar nisso.
Alguém dizia - não foram os Gato Fedorento? -: Bem, Sócrates tem, no fundo, muita sorte. É que Queirós está à frente da selecção, com os resultados que se têm visto.
E, que diabo, num país em crise, não há ovos disponíveis para o Queirós & ministra da Educação.

terça-feira, novembro 04, 2008

A RECONVERSÃO IV (E FIM)

A ideia de uma invasão do planeta por hordas de criaturas de seis dedos com unhas por cortar em cada pé arrepiou-o vivamente. (Mas até algo tão simples como um arrepio era, agora, no seu corpo reconvertido, sentido de um modo novo, diferente, estranho, absurdo).

Subiu, atarantado, aos quartos: queria perceber o que acontecera à mulher e aos filhos; se também eram como ele, e haviam sofrido uma metamorfose idêntica, ou, não sendo, se o podiam de algum modo ouvir, entender, aconselhar, ajudar... (Nem lhe ocorreu que podiam afugentá-lo, expulsá-lo, matá-lo!)

À medida que galgava as escadas, sentia que se apossava cada vez mais do ser em que se reconvertia. Referências antigas, muito antigas, vinham à tona, como acordando de um sono velho. Memórias, imagens, ideias. Uma outra linguagem, de que se esquecera, de que se não lembrara nunca, mas recordava agora, tornava-se-lhe clara na mente, carregada de termos muito exactos, muito mais perfeitos do que as possibilidades oferecidas pelas línguas da terra. Ele era Kal-El. Uma célula adormecida durante anos. Pronta para a acção.

No quarto, a mulher e os gémeos viam-no entrar de sopetão. Olhavam-nos aterrorizados. Com olhos cheios de pavor. Abraçados uns aos outros. Tremendo. Temendo-o.

Foi a menina que o reconheceu. Sob a cor diferente, o aspecto inconcebível, os sextetos de dedos, as escamas em redor do pescoço.
E correu para ele - paradoxalmente, como se fosse proteger-se, nos seus próprios braços, dele mesmo.
- É o pai! É o pai! - repetia ela.

E nesse momento, todas as dúvidas encontraram uma solução.
Cabia-lhe protegê-los. Com seis dedos e escamas ou não. Fosse quem fosse. Ainda que se chamasse Kal-El.
Abraçou-a.

quinta-feira, outubro 30, 2008

A RECONVERSÃO III

Era uma voz desconhecida. E, no entanto, paradoxalmente, reconhecia-a. Mais complicado, ainda: reconhecia-a sem a reconhecer, como se lhe chegasse de um Além onde só estivera em sonho, ou mesmo mais recuada e longínquamente, num sonho de um sonho...

Olhou para o espelho; curiosamente, era dali que a voz familiar-desconhecida lhe soava.
E tornou a reparar no seu estranho rosto reflectido.
Mas não. Não era já o seu rosto. Nem o de sempre, nem aquele em que acabava de se metamorfoser. Via agora no espelho, como se o espelho fosse uma televisão ou um intercomunicador com imagem, o rosto de uma criatura estranha, que lhe falava serenamente. Havia ruído, um pouco de granulado, uma imagem não muito nítida, um pouco desfocada por vezes - e uma pessoa, um ser, um bicho, um monstro, que era aquilo?, que ele não conhecia mas, de algum modo, vagamente reconhecia.
E que lhe repetia:
- Não te assustes, Kal-El! A hora da reconversão chegou! Estás a readquirir o teu corpo, o teu ser. O ataque não tardará. Os humanos estão desesperados. A crise alastra. É agora ou nunca, Kal-El!

domingo, outubro 26, 2008

CONTOS INFANTIS REVISISTADOS: OS TRÊS PORQUINHOS

Era uma vez três porquinhos.

O mais novinho era uma porquinha pequenina e com pouca experiência da vida, chamada Daisy.
O do meio, seu mano, era um porquinho astucioso e adolescente, a quem tratavam por Dudu.
O mais velho e mais experiente, cinquentão, pai dos outros dois, era o Prático.

Os três porquinhos foram, então, construir as respectivas casinhas.

A mais novinha, coitadita, não vos faz pena?, sem experiência de vida, sem consciência das agruras possíveis, previsíveis até, limitou-se a fabricar uma casita de palha.

O outro, ligeiramente mais sabido mas ainda pouco rodado, levantou, não muito longe, uma casa de madeira.

E o Pai Prático, todo lampeiro e esperto, construiu uma moradia de pedra, com dois andares, quintal e até uma piscina com vedação para impedir que os lobos a frequentassem.

Acontece que o Lobão desta história, o Banco, fez, primeiramente, uma visita à Daisy. Bem queria soprar, mas a Daisy, no seu linguajar infantil, limitou-se a dizer:

«Empéstimo?! Qual empéstimo?! Não, eu apagnei uma páglia e fije a cágnia xojinha, xem ajuda nenhuma!» (Tradução: apanhei umas palhas e tratei de fazer a casa sozinha, sem pedir nada a ninguém...)

Em face de Dudu, o Lobão fez também inúmeras tentativas de o encostar à parede. Mas o adolescente, com palavrões típicos de todos os adolescentes, espreitando pela janela, mandou-os passear:

«Qual @3£# de empréstimo qual carapuça! Vão mas é %&/! Tão a brincar??? Não me ?»=}§£$ o juizo!!!»

Quando chegou a vez do Pai Prático, o Lobão vingou-se ferozmente das anteriores frustrações. Soprou desalmadamente. Vimos a casa subir pelos ares, tijolo após tijolo. Desaparecer no firmamento. E o Banco a rir, Agora é que é! Huá Huá Huá! Querias casa? Com o Euribor neste descontrole? Eu dou-te a casa!!!

De modo que o porquinho Prático teve de fugir para casa dos filhos, onde vive hoje muito triste e temeroso, espreitando à janela, paranóico e infeliz.

Aguenta seis meses na casa de palha - e descansa da Daisy, durante outros seis meses, na casa do porquinho Dudu.

segunda-feira, outubro 20, 2008

A RECONVERSÃO II

Naquele princípio de histeria que se apossou dele, lançou um berro. Esperava, talvez, que a família acordasse sobressaltada. Que descessem. Que o ajudassem. Que povoassem novamente o seu mundo de cenas e situações, vozes e gestos familiares e reconhecíveis. Mas ninguém respondeu ao apelo: e, no silêncio, o eco do seu berro, ou a memória do seu berro, assustou-o e obrigou-o a conter-se.
Aproximou-se do espelho, à espera de que fosse este a devolver-lhe, no reflexo do seu próprio rosto, um rasto e um resto de normalidade.
Mas o seu rosto, que o olhava do espelho, era diferente. Ele não era ele: aquela testa demasiado longa nunca fora a sua testa; nem aquela cabeça completamente calva (prenúncios de calvície, sim, fariam parte do reflexo esperado, mas não aquele crânio desértico que via agora); sobretudo aqueles olhos com que se olhava, desesperado, não eram os seus olhos.
Lembrou-se da «Metamorfose». Tranformara-se em quê? Transformava-se em quê? E com que direito se apoderava assim a ficção da sua própria vida?
Ouviu, então, uma voz:
- Calma, Kal-El! Chegou o momento! Não te assustes: chegou o momento!

(CONTINUA)

sexta-feira, outubro 17, 2008

A RECONVERSÃO

A vida não lhe corria bem: os efeitos da crise económica abriam rachas nas menores porções do seu dia-a-dia familiar e profissional. Tudo eram ralhos, dramas, nervos; tudo eram crises e choro; tudo eram contas que rabiscava obssessivamente em folhas reaproveitadas de papel (um talão do multibanco, uma conta da EDP), com um lápis muito comido, muito velhinho.

A casa, então, era um sorvedouro: bonita e grande por fora, com um quintalinho onde plantava couves que faziam as invejas dos vizinhos mas, por dentro, quem diria?, como numa brutal metáfora do estado da sua vida, tudo eram manchas de humidade avançando, alastrando, formando formas trocistas, enormes bocas escancaradas, ou rindo ou para o devorar...

Entrou na casa de banho, madrugada fria, pensando, ou melhor, chorando-se no pensamento. Tomou um duche rápido. Com água fria. E preparou-se para cortar as unhas dos pés - aí estava um aspecto da higiene, pelo menos, que não lhe saía caro...

E, com o pé direito assente sobre o tampo da sanita, atacava já com o corta-unhas quando...
Contou seis dedos. Seis!
Não podia ser. Duas explicações possíveis, uma de duas hipóteses: ou estava a sonhar - era um sonho, e então talvez tudo fosse um sonho, talvez a crise económica fizesse também parte do mesmo horroroso pesadelo...
Ou, mais simplesmente, enganara-se. Contara mal, atabalhoada e nervosamente.
Tornou a contar: seis dedos. Indiscutível: seis, seis, seis. Contou ainda: seis. Seis.
Pousou, nervosamente, o pé direito no chão, assentou o esquerdo sobre o tampo da sanita. Seis dedos, igualmente.
(CONTINUA)

terça-feira, outubro 14, 2008

COISAS MINÚSCULAS À MARGEM DA SUFOCAÇÃO

Como é evidente, o tenebroso processo de avaliação entre pares em que me encontro submerso não conseguiu acabar comigo. Aperta, sufoca, desvitaliza - como, em certos filmes, quando a personagem se encontra num quarto estreito, e descobre que as paredes são móveis, e que deslizam de modo a vir a esmagá-lo se não descobrir uma solução até lá... -; cansa, entristece, deprime. Mas, por isso mesmo, a mínima coisa que se descobre à margem desse processo ganha uma importância e um significado quase resplandecentes.

Nessa medida, tenho vindo a tropeçar em pequenas maravilhas que gozo silenciosamente. Pequenas descobertas que adquirem proporções e significados inesperados; pausas minúsculas, tempos para respirar fundo diante de uma chávena de café, redescobertas constantes.

O café é uma dessas maravilhas. Aderi de uma vez por todas ao abatanado, rodeio-o de rituais e de fórmulas. Gosto dele muito quente e cheio.

Outra, é a leitura. É verdade que o tempo me tem vindo a ser roubado de uma forma inadmissível, mas dez minutos que me sobrem para passar mais uma página de «Detectives Selvagens» - que é grande e não terminarei tão cedo - é um tempo bem empregue. Um humor imprevisível, surrealista e frequentemente obsceno, uma escrita seca e sem floreados mas, paradoxalmente, de uma imensa criatividade, personagens carregadas de defeitos enternecedores de tão humanos, são os nós deste enorme texto.

Em matéria de banda desenhada, tenho a recomendar um blogue - chamemos-lhe assim: gráfico, cuja referência me foi indicada pelo filho de uma amiga minha, de Belas Artes. Fosse eu Janota ou Angel e punha-vos a clicar para voarem até lá. Assim, ponho-vos a escrever: http://imaginarte-imazine.blogspot.com - Olhem! Que espanto! Mal o escrevi, o endereço apareceu em azul; bruscamente, sem eu fazer nada, pronto para que cliquem. Estou a progredir, ein? Por acaso, mas estou, ein?

E assim vou resistindo.

terça-feira, outubro 07, 2008

OLIMPÍADAS DA MALHA

Parece que o nascimento de uma criança deve saudar-se com a mesma alegria devida à doce chegada da Primavera. E eu compreendo: há-de ser porque esse momento, uns dias após o parto, é certamente o único em que o bebé, que já massacrou a mãe para vir ao mundo, ainda, no entanto, não descobriu novas estratégias para continuar a massacrar a mãe e, já agora que está cá fora, também o pai.
Esse curto tempo em que tudo parece agradável e sorridente tem, por isso mesmo, de ser pretexto para festejos e danças. Nos próximos dez anos, pelo menos para os pais, acabaram-se os festejos e a dança é outra!

Nesta base - festejar a pausa que nunca mais voltará - fomos no fim-de-semana a Alverca distribuir uns beijos por um recém-nascido e respectiva família.

Chegados, vimos a menina a dormir docemente. Olhámo-la, enternecidos, trocámos ideias tontas sobre as semelhanças com outros parentes, escondendo caridosamente algumas semelhanças perturbadoras que por acaso pudéssemos ter também detectado.

E, depois, na confusão, fui arrebatado pelo jovem pai e pelo jovem avô para uma taberna de Alverca, onde - a mim, que vinha mal refeito de uma inclemente gripe que atacara com medicação feroz - para uma taberna de Alverca onde, dizia eu, me obrigaram a comer ovos cozidos e a beber uma série de «mines».
«Mas não haverá, não sei, hum, por exemplo uma sanduíche?, apetecia-me uma sanduíche, ou então...», insinuava-me eu a medo, com as pernas ainda doloridas da doença.
Não. Uma taberna não é o Ritz, lembrou-me alguém certeiramente. Ovos e mines.

Sequentemente, tornaram a pegar em mim (que pouca resistência estava capaz de oferecer), e enfiaram-me numa espécie de campeonato de malha, jogo de que não sei absolutamente coisa alguma. Avesso a que me considerem «snob», ciente de que nenhum lema é tão adequado como «Em Roma sê romano», aceitei pôr-me a jogar àquele jogo, com a mesma imprudência e a mesma irresponsabilidade com que uma criança chamada ao quadro, numa aula de matemática, em vez de confessar que não pesca absolutamente nada do assunto, optasse por «resolver» o problema escrevendo por ali uns quaisquer números, absurda e aleatória, mas convictamente. (O que também já me aconteceu!)

Formavam-se equipas renhidas, com tipos de nomes como o Chico Damas, o Preto e o Coxo. E, bruscamente, começou tudo: vi-me apanhado num coro de gritos, num entusiasmo ensurdecedor, com palavras que não percebia, relativamente àquele desporto que, afinal, tinha mais regras do que me parecera. «Truco», dizia um. Acho que era isso. Mas aquilo tinha um significado pré-determinado e, com base nesse grito, fazia-se uma operação demasiado rápida para mim, a partir da qual, de repente, ele me vencia.
Discordava-se. Media-se com um cigarro qual das malhas se encontrava mais próxima de um prego que nunca cheguei a perceber onde estava, que nunca vi. Insultavam-me. O Zé Rabo estava possesso comigo, enervava-se...

Tive de me raspar assim que pude. Deixaram-me ir. Pudera! Devem ter ficado tão aliviados como eu...

Preferi voltar ao círculo feminino, arrulhando, terno, em torno do recém-nascido. Que, por um breve lapso de tempo, até bonito me pareceu!

terça-feira, setembro 30, 2008

Dante's Inferno Test - Impurity, Sin... and Damnation

Este post tem duas virtualidades. Primeira, a de vos exibir a minha nova veia de utilizador das modernas tecnologias! E tomem lá!!!
Segunda, a de permitir que saibam, mediante a realização de um testezito, qual o terrível círculo do inferno que vos espera...
(clique na imagem)

sexta-feira, setembro 26, 2008

POR QUE NÃO VOLTO ÀS HISTÓRIAS!? DEIXEM-ME RIR

Sento-me diante do écrã cinzento, do mesmo modo que os escritores em crise de inspiração falavam, no século XIX, do drama da folha em branco.

Gostava de prosseguir o blogue. Recheá-lo de histórias, narrar episódios diversos, comentar filmes. Sobretudo, gostava de vos oferecer palavras onde clicar para voarem para outras paragens...

Mas, que fazer?, sento-me aqui e não tenho na cabeça senão o que vou ter de fazer para avaliar os meus colegas. Documentos, fichas, estatísticas. Grelhas, registos, objectivos. Listas de verificação. Legislação. Mais legislação. Afundo-me. Escorrego em papelada. Perco material importante. Uso a pen. Não sei da pen. Reencontro-a.

(Tive de pedir a alguém que me ensinasse a tirá-la, em segurança, do computador).

Alguém pensa que tudo vai melhorar. Que as coisas começarão finalmente a funcionar. Que as estatísticas terão um ar bonito, positivo, apresentável. Nada sabem do clima que se vive nos locais; da tensão, dos medos, dos olhos que já se não enfrentam nos corredores. E do que se rouba em energia e criatividade, do que se perde em motivação. Que perversão! Que pobreza! Que estreiteza! Que perfídia! Ou, se não é perfídia, então simplesmente que incompetência, que ignorância, que falta de lucidez...

Estou nisto. Fecho para obras. Oiço, todos os dias, novos jovens que fazem contas para a reforma. Estou nisto, porque não tenho tempo para mais.

Perdoai-lhes, Pai!

Pensando melhor: não, Pai, não lhes perdoes...

quarta-feira, setembro 10, 2008

O NOME DA AVOZINHA

Já devo ter aqui escrito que a minha mãe é uma deliciosa velhinha de oitenta e cinco anos de idade. (Devia evitar espalhar estas informações pela net, bem sei: assim como há pedófilos à espreita, deve haver a correspondente tara por idosos. Ainda por cima usei a expressão «deliciosa» a propósito da senhora, mas enfim, calo-me já).
Chama-se Emília.
A minha filha, no seu linguajar arrevesado, trata-a por Vó Pia.
Sou idiota por não gostar, uma vez que «Pia» até é um nome bonito: existia a rainha Maria Pia, por exemplo, fundadora da Casa Pia (oh Diabo; isto está hoje a correr-me mal...); mas o caso é que aquele «Pia» evocava sempre, para mim, outro género de pias.
Tentei que a minha querida Daisy desse um passo, e começasse a tratar a avó por Mila. Vó Mila, em vez de Vó Pia.
Ensinei. Exaustivamente. Consecutivamente. Incansavelmente.
A Daisy deu, efectivamente, um passo:
Começou a tratá-la por Vó Pila!
Podem imaginar o susto, a tristeza, o horror, a vergonha, a angústia com que, pela primeira vez, a deliciosa velhinha escutou o bem-intencionado tratamente por parte da deliciosa criança: Olá, Vó Pila!
Tenho procurado emendar o erro. Insisto em que ela volte a chamá-la simplesmente Vó Pia. Não é possível. Na vida, nunca se volta atrás.
São diálogos alucinantes:
- Bamos à Vó Pila?
- Vó Pia! Pia! Pia! Vó Pia!!!
- Pila! Vó Pila!
- Não, Daisy. Ouve. Vó Pi-a. Pii-aaa!
- Vó Piii-laaa!

Como andam as coisas, está visto, eu é que vou acabar na prisão...

quinta-feira, setembro 04, 2008

POUCOCHINHO DE CADA VEZ

Regressado ao serviço, mergulho alegremente nos primeiros dias de trabalho, na esperança de descansar das férias!

Na minha derradeira sessão de praia (e, com o que eu aprecio «praia», espero que seja «derradeira» no mais amplo sentido da palavra!) aconteceu que, à semelhança de um dos alarves a que a bondosa e ecológica Janota se refere - clicar aqui, eheheh! - também eu pisei um ser marinho, um jovial e querido... peixe-aranha. Cum caneco! Um oceano tão imenso, tão duramente feito das lágrimas de tantos portugueses (por mim, aliás, contribuí com muitas das minhas próprias lágrimas ali mesmo naquele momento), e logo teria de haver a pavorosa coincidência de nos cruzarmos, eu e peixe-aranha, naquele inesperado cantinho...!

Saí da água com um sorriso amargo, coxeando da minha dor. Família e amigos recebiam-me, na areia, com aquela boa-disposição própria de quem assiste aos acidentes dos outros. Por fim, perceberam que aquilo talvez fosse a sério, porque o meu sorriso estava como que congelado e suponho que cheguei a desmaiar.

Lá tive de subir por um íngreme e pedregoso caminho em direcção ao posto médico, o qual se situava numa espécie de ninho de águias.
Como não podia levar o meu próprio calçado, que me mordia francamente sobre a mordidela do peixe-aranha, optei por umas ridículas havaianas emprestadas. Muito pequeninas e coloridas, deixando-me os calcanhares de fora...! E assim subi, escarranchado sobre o ombro do meu amigo M., que por sinal é asmático e, num dado ponto do percurso, começou a respirar com uma espécie de estertor preocupante.

Foi neste estado e nesta figura que chegámos a uma cabana, com uma cruz vermelha estampada na porta, de onde desalojámos um menino espanhol que se havia cortado, de forma a que os enfermeiros se concentrassem no meu pé.

O meu amigo, completamente exausto, fumava um cigarro à porta para se reanimar do ataque de asma.

Férias? Sim, mas pouco, pouco. Pouco, pouco de cada vez...

terça-feira, agosto 19, 2008

BOTA, LEITE, PONTAL

Os meus quatro leitores (vá, cinco nas horas de ponta!) já se aperceberam da minha admiração por Mendes Bota. Confesso que o considero perfeitamente ao nível dos Gato Fedorento. Tem a piada que tem, e sempre com o ar de estar a falar a sério ou a fazer política, o que o torna verdadeiramente hilariante.

Numa destas entrevistas de Verão, que suponho que é o único tipo de entrevista que um jornalista se lembraria de fazer a Mendes Bota, nota-se que ele intui, no fundo, a inveja que muitos comediantes frustrados e sem graça revelam relativamente à sua arte. Daí que principie por dizer que aquilo de que tem mais medo é «a inveja humana».

Mas logo a seguir, abre a veia. Não chega a suicidar-se, limita-se a abrir a veia humorística: afirma, por exemplo, que a sua bebida de eleição é «água, colheita de 2005», e que a sua personagem de ficção preferida é... o Pato Donald!

Como todo o político que se preza, Bota também gosta de fazer promessas. Se pensa cumpri-las, é outro assunto. Mas não deixa de acenar com o sonho de um mundo melhor, ao garantir que já passou «a fase das cantorias» e, agora, nem no duche!

Mais à frente, à banalíssima pergunta «as aparências iludem?», Bota responde com um originalíssimo: «As iludências aparudem.»

Sobre os casamentos gay, confessa que não se encontra preparado psicologicamente para isso: deve ter pensado que o entrevistador já estava a fazer-lhe uma proposta.

E este homem, correndo riscos, quase a transgredir os limites, dedica-se a organizar a célebre Festa do Pontal, e a senhora dona Manuela Ferreira Leite não quer ir?
Que se passa com esta mulher, não aprecia stand-up comedy?
Não gosta de se rir???

sábado, agosto 16, 2008

MAS DAQUI A UNS ANOS HÁ MAIS...!

Tenho pena de me ver obrigado a ser cruel. Mas, perante esta frustração, como não sê-lo!? Um bocadinho, ao menos...?

Em momentos de competição desportiva internacional, como agora nos Jogos Olímpicos, o povo português deixa-se imbuir de uma inexplicável esperança e de uma tensa expectativa. Sopra sempre um vento em cujas interstícios se ouve: «Desta é que é!»

Devo dizer que o único atleta olímpico que, este ano, conseguiu efectivamente surpreender-nos foi Francis Obykwelu (peço desculpa no caso de não estar a escrever correctamente este nosso tão típico nome!): surpreendeu-nos porque, apesar de ter ficado em sexto lugar nos 100 m., ou seja, num lugar fraquinho, que não lhe permitiu o apuramento, afirmou em Conferência de Imprensa que vinha já embora, nem ficava para correr os 200 m., mais, acabava ali a sua carreira de competições, pedia desculpa, obrigado e adeus! Foi a grande surpresa lusa destes polémicos jogos.

No tiro ao arco, ouvi, na rádio, um rapaz que se mostrava muito contente com um lugar igualmente fracote, porque achava que estas coisas mudam de um momento para o outro. Queixava-se, coitado, e com razão, do vento que o enganara, fazendo-me perceber até que ponto podem ir as manhas e os truques dos chineses..! Vê-se mesmo que a China não é uma democracia, porque se o fosse, o mínimo que se esperaria é que todos os concorrentes estivessem sujeitos aos mesmos ventos, não só o jovem português.

Houve ainda, no meio de tudo isto, uns remadores: foram repescados para a semi-final, e estavam francamente satisfeitos pela «repescagem» que os salvava. Bolas! «Repescados»!? Não é constrangedor??? Julgariam que estavam numa competição de pesca??? Afinal, depois de tudo isto, acabaram - penso - em oitavo lugar. Nada mau; parece que nunca Portugal, que no entanto tantos mundos deu ao mundo, tinha chegado tão longe. Navegámos por toda a parte, é certo, mas na modalidade de barquinho a remos o máximo a que chegámos foi ao oitavo lugar.

Vale a pena falar do Judo? Talvez seja melhor não, hein? Tínhamos ali outra jovem esperança mas... apanhou não sei que golpe, não sei de que adversária, que a fez cair para o tapete - e para o nono lugar, ou coisa que o valha!

Resta-nos esperar pelos para-olímpicos. Em cadeiras de rodas, sem ver coisa alguma, surdos e tudo, esses é que nos trazem sempre oiro, incenso e mirra!

sexta-feira, agosto 08, 2008

UMA NOITE, EM FÉRIAS, COM MÚSICA DE FUNDO

Interrompo as minhas férias bloguianas para vos contar um episódio, não porque receie esquecê-lo depois - Ah, estou seguro de que nunca o esquecerei... -, mas para me não engasgar com ele.

Nestas férias complicadas, em que minha mulher continua trabalhando e, portanto, me cabe tomar conta dos meus filhos, multiplicando programas que, ao mesmo tempo, sejam baratos e os sosseguem por uns minutos, chego à sexta-feira em bastante mau estado. Cabelo em pé, barba por fazer, olhos encovados. Moscas gravitando.

A minha mulher vê-me, nesta sexta, em condições tão impróprias, que me convida a ir com ela arejar, jantar fora.
«Onde deixamos os miudos?», pergunto imediatamente.
Os olhos faiscam-lhe de raiva. Temos a nossa primeira discussão da noite. Os miudos vêm. É claro.

Seguimos no automóvel, eu ao volante mas cumprindo indicações precisas. Surge a ideia que nos reconcilia a todos: vamos à marina de Oeiras. Espaço, ar fresco, distracções...

Pomos o carro no parque. Seguimos a pé sobre o passadiço de madeira. Brincamos. Estamos todos mais leves. Dirigimo-nos para um restaurante com música ao vivo, quer dizer, onde, cá fora, sobre uma banqueta, um retornado de cabelo penteado em estilo afro, como o Pacman, e também de calções aliás, entoa umas brasileiradas ao som da sua viola.

A Daisy está, entretanto, eufórica. Sentamo-nos a uma mesa da esplanada. Ela não quer. O meu filho repara, discretamente - e pela primeira vez, pelos vistos - que traz as unhas compridas e debruadas a negro. Exige, de repente, um corta-unhas.
Os demais clientes, que gozavam a música brasileira, principiam a olhar para nós. Um casal que degusta vinho verde olha-nos fixamente.
O cantor continua:
«Veja que coisa mais linda, mais cheia de vida, lalala, lalala...»
Daisy salta rapidamente da cadeira onde liricamente a quiséramos sentar, empurra pernas e pés, pisa sandálias, aproxima-se lestamente do cantor, «Gosto muito dji você, leãozinho, parari pararará», que, com um olhar nervoso, não tira os olhos dela, enganando-se numa nota.
Corro a buscar Daisy. Pego-a ao colo. Inicia um espeneanço fantástico, berrando mais alto do que o Pacman brasileiro, que esganiça para tentar fazer-se ouvir, «Lhe dourando a peli...»
«Não tens um corta-unhas, mãe?», pergunta o outro.
Conferenciamos rapidamente. Ali não é possível. E se fôssemos para dentro do restaurante? Escuro, sorumbático, tem, no entanto, a vantagem de apresentar todas as mesas completa e convidativamente vazias...

Entramos. Ao longe, a voz do clone brasileiro do Pacman chega-me aos ouvidos, com uma nítida nota de alívio: «É um barrquinho a navegá, no macio azul do má...»
Lá dentro, tentando segurar a doce Daisy, embato num estranho sistema de floreados de vidro, borboletas e pássaros pendentes do tecto, até à altura precisa da minha cabeça. Queixo-me. Daisy aproveita-se da distracção e zarpa lá para fora: oiço a voz estrangulada do Pacmanzinho. Chega-me um «ai!» que não sei se faz parte da música...
Dirijo-me para fora, furando, meio atordoado, pelo emaranhado de mobiles frágeis e coloridos, ruidosos e aguçados. A minha mulher pergunta-me: «O que é que queres comer!?» - e eu respondo, com um esgar sarcástico: «Veneno!»
Saio, no preciso instante em que vejo uma rapariga de longos cabelos encher a mesa de entradas, azeitonas, carnes frias, queijos...
A minha mulher recebe nas mãos uma ementa enorme - perceberei mais tarde que é o tamanho necessário para lá caberem os preços que apresenta.

Pego, um pouco brutalmente, é verdade, em Daisy que, sentadinha no chão, coitada, se limitava a aplaudir o Pacmanzinho.

Reentro, com Daisy esperneando, no momento exacto em que posso ouvir minha mulher, pegando na mala, para a rapariga que se afadiga a preencher-nos a mesa com acepipes:
- Não, deixe estar, nós vamos embora; ela está muito agitada - e, ao dizer «ela», aponta, com o queixo, Daisy, a qual, esperneando-me entre os braços, me faz acompanhar a música do Pacmanzinho com uns quantos «tlins» produzidos pela cabeça contra uma sucessão de borboletas e flores cor-de-rosa que me esperam, ameaçadoras, do tecto. - Vamos embora, não se preocupe. Era afugentar o resto da clentela...
Percebo que, no fundo, com esta desculpa, a minha mulher, que estivera examinando os preços incomportáveis, encontra o pretexto adequado para desaparecermos dali.
Dirigimo-nos, cabisbaixos, para o carro. O miudo, porque ninguém lhe forneceu um corta-unhas. Ou, alternativamente, uma prancha de surf, porque parece que havia uma loja aberta...
Sentamo-nos.
- Ainda há massa em casa, não há?
Vamos jantar a casa...

AFORISMO KAOSTICO

Não peço, à vida e ao destino, nada mais, absolutamente mais nada para além de tudo quanto possuo.

Não lhe chamemos gratidão: é que se esta merda é o melhor que a vida consegue fazer, então não peço nada - prefiro não correr mais riscos...

CURSO RÁPIDO DE AUTOMOBILISMO (LIÇÃO DOIS)

O PISCA-PISCA

Nesta sociedade socrática, em que nos vigiam cada vez de mais perto, cruzando vários dados para saberem sempre em que ponto nos encontramos, já se prevê um chip para o nosso automóvel.

Pois eu, quando vou no meu carro, faço questão de não deixar que saibam para onde me dirijo. Era o que faltava!
Para isso, aliás, me serve o pisca-pisca.
Pisco sempre para a esquerda quando vou virar para a direita. E vice-versa.

sexta-feira, julho 25, 2008

CRÍTICA DA CRIAÇÃO DIVINA

Deus-Pai estava arrasado. «Ah», dir-me-ão, «não pode ser, e tal, Deus não fica arrasado, e tal, que é feito da Omnipotência, e coiso...?»!

Estava, sim. Estava. Precisavam de conhecer a Deusa-Mestra, que há uma Eternidade vinha pondo em causa a Obra divina. Acrescentava sempre, com a delicadeza conveniente, que, do ponto de vista estético, é claro, a Criação de Deus estava perfeita. Per-fei-ta - nem outra coisa se esperaria dEle.

«Acontece», acrescentava a Deusa-Mestra, «que a estética não pode ser pensada a não ser de acordo com a função das coisas. A funcionalidade é a palavra de ordem. Os seres podem ser bonitos, sim senhor, e nisso, Ó Deus, és Deus Único. Mas, e a funcionalidade...???»

Dava exemplos de «ligeiras» alterações que fora fazendo. Que lhe não levasse nada a mal, hã? Não era na substância, nem na estética - era na «funcionalidade», e só, que se deveriam introduzir emendas.

«Vejamos o homem», dizia. «Olha para os dedos; olha para a língua. Não vês o que está errado aqui? Eu explico. Já percebeste que, para provar, o homem vai ter de pôr em contacto, digamos, comida estragada, com a língua, no interior da boca, já dentro do corpo? E se quiser cuspir, não é verdade que certamente uma pequena parte já se escapou pelo sistema abaixo e começou a envenenar-lhe os estômago? Não. O paladar tem de estar na ponta dos dedos. O homem prova com os dedos, percebes? Saboreia com os dedos. Se não gostar, deita fora...»

Deus-Pai estava esgotado...

«E o rabo lá atrás? Olha que lindo. Para que lhe serve o rabo, com aquela forma almofadada, não é para o proteger? Não tem de ser assim uma espécie de pára-choques? Então tem de estar à frente, não é verdade? À frente é que se encontram os órgãos mais importantes, se ele cai de fronte é que se trata de uma queda fatal... o rabo tem de ficar, ou no peito, ou a proteger o sexo...»

Era inútil contra-argumentar.

«E o nariz ao pé da boca??? Em pleno rosto??? Que diacho de ideia. Assim cheira algo de mau cheiro e vomita, parece tudo um órgão único, nariz e boca, uma máquina para cheirar e vomitar, cheirar e vomitar. É disparate, Deus! Se tiramos o rabo lá de trás, passamos para lá o nariz...»

E, considerando, por um fragmento da longa Eternidade que iriam ter de passar juntos, que Deus-Pai pudesse estar a sentir-se ofendido, concluiu:

«É claro que, à parte estes pormenores, a tua Obra está bonita. Ah, muito bonita mesmo. Bonita a valer! Quanto a isso, nada a assinalar: és um espectáculo!»

terça-feira, julho 22, 2008

UM CONTO SIMPLESMENTE HOR-RO-RO-SO!

O filho chamou-o, uma vez mais, do quarto pejado de posters de lutadores de wrestling.
Eram cinco horas da manhã. Cinco da matina, porra!
Entrou furibundo, com o seu daïmon, uma espécie de Daniel Sampaio pessoal, segredando-lhe no interior do cérebro: «Calma, calma, calma! Olha que te vais arrepender, vê lá como é que lidas com o miudo, olha, eh, calma, calma, calma!»
Como de costume, sabendo que realmente se arrependeria, apertou, contraindo as paredes do cérebro, o pequeno daïmon até lhe ouvir um estertor, e, diante do filho, berrou-lhe com toda a força:

- Que foi agora, pá!? Que é agora!?
- Não consigo dormir, pai! Vem-me sempre à cabeça a imagem de um menino sem olhos...
- Tou lixado com este gajo. Vais-te voltar para o lado, que são cinco horas da matina, hã?, e eu trabalho, eu tenho de me levantar daqui a pouco, e não tenho paciência, eu já não tenho paciência. Ala!

E regressou à cama.
Pouco tempo depois, ou muito tempo depois, porque tudo se passava naquela indefinição da noite em que o «pouco» e o «muito» perdem o sentido, um menino sem olhos despertou-o. Pensou, inicialmente, que se tratasse de um sonho, mas não. Era real: um menino sem olhos, sentado aos pés da sua cama: apresentou-se-lhe tranquilamente como um feiticeiro, e disse que tinha uma surpresa para ele. Uma terrível surpresa!

- Olha, venho só prevenir-te de que vou lançar um feitiço. O teu filho irá desaparecer...
- Como!? Para sempre...?
- Não, para sempre não. Na verdade, todos os dias o verás durante algum tempo...
- Mas...
- ... À noite... à hora de dormir... cheio de medo, chamando por ti, durante uma hora inteira, a partir das cinco da manhã... todos os dias, todos os dias, todos os dias...

E assim foi.

Podem não acreditar, mas esse tornou-se o momento mais feliz de cada um dos seus dias. Aquele fragmento de tempo que aguarda mais ansiosamente. O Génio não lhe mentira: todas as noites, a partir das cinco da manhã, ouve o apelo do seu filho.
E entra no seu quarto para o apaziguar. Abraça-o, consola-o. Com lágrimas nos olhos. Sabendo que, de manhã, pouco depois do instante em que o miudo, esgotado, por fim acalma e adormece, ele adormecerá também - porque não consegue não adormecer, por mais que lute contra a invasão sorrateira do sono -, e então, de alguma obscura e mágica forma, o menino volatilizar-se-á; e que quando ele acordar, já o não verá; e não tornará a vê-lo senão à noite, à hora dos pavores.

O seu daïmon, mal refeito da tentativa de assassínio que sobre ele perpetrara, segreda-lhe:
- Eu avisei-te!
E ele responde-lhe:
- Cala-te!

E todos os dias anseia pelo pedido de ajuda do seu filho.

domingo, julho 20, 2008

CURSO RÁPIDO DE AUTOMOBILISMO

O TRAÇO CONTÍNUO

Não se devem fazer ultrapassagens pouco firmes quando há um traço contínuo. Este deve servir como uma régua: é precisamente para se fazerem ultrapassagens direitinhas, sem desvios, nem guinadas, nem zigue-zagues - é só seguir a linha!

quarta-feira, julho 16, 2008

O REGRESSO DE J. C.

Jesus Cristo regressou à terra no dia 6 de Julho.

Esteve, aliás, em Lisboa. Ao que consta, por volta das quinze horas desse mesmo dia mostrava algum espanto pelo facto de não ter conseguido encontrar pescadores dispostos a segui-lo. (Mas os pescadores preparavam precisamente uma onda de protestos contra a «intransigente política da União Europeia»).

As únicas pessoas que viu capazes de o acompanhar por todo o lado, eram os membros de um casal, mas essa possível colaboração depressa veio a revelar-se um equívoco: tratava-se de Testemunhas de Jeová; queriam acompanhá-lo por todo o lado, sim, mas no sentido aborrecido e irritante da palavra, empenhados em convertê-lo. «Eu estou convertido! Eu sou o filho! Pertenço à Santíssima Trindade», insistia...

Teve de lhes fugir.

Mais tarde, foi inquirido por uns senhores das Finanças que alegavam ter recebido uma denúncia de um tal Fernando Pessoa, que dizia que ele, Jesus Cristo, não pereceberia nada de finanças. E que, portanto - deduziam eles -, não se tinha declarado como mágico, nem pagava imposto sobre milagres.Descobriram até que ponto Pessoa estava certo. Preparavam-se já para lhe confiscar tudo o que possuía. Umas sandálias e, ao que parece, a sua Omnipotência - a qual, contudo, em Portugal esbarra com diversos entraves! E julgo que não pode ser exercida sem a devida autorização e documento comprovativo de divindade, isto na versão simplex...

À noite, quando se orientava de modo a retornar à Pensão Florinda, onde se albergara, foi detido por dois senhores vestidos de negro, com viseira e escudo.
Eram agentes da ASAE: acusavam-no de não ter respeitado as medidas mínimas de higiene e segurança na forma como transformara uma série de pedras e de calhaus, sujíssimos, em sardinhas para uma multidão. Ainda por cima, as referidas sardinhas teriam sido grelhadas em grelhadores de zinco, que também não obedeciam a quaisquer normas.

As últimas pessoas que o viram, relatam estas palavras, que teria pronunciado:

- Pai! Agora é que vais ter de afastar de mim este cálice, que isto está mais bera do que no tempo dos Romanos!

Não tornou a ser visto.

terça-feira, julho 15, 2008

VAMOS A VER O QUE ISTO DÁ [IV]

Era verdade.
Os Glauss atacavam em massa.
Eram muitos, com aquela particularidade irritante de atacarem do ponto onde não podíamos prever.
A minha nave abanava ronceiramente.
Cruzavam-se raios por todos os lados. Havia explosões e tudo sacudia, como numa sucessão de sismos.
E de um momento para o outro, por frestas e rupturas que se alargavam e multiplicavam, os Glauss entravam, horrendos.

Curiosamente, a rainha e as suas súbditas, que tanto se enraiveciam contra as ordens de Mäix, desapareciam agora em gritos estridentes, cobardes, aflitos e, mais do que aflitos, aflitivos.

Voltei-me para o professor Karamba, enervado:

- Os teus poderes não foram capazes de prever este ataque? Que raio de...?

Não havia qualquer professor Karamba.
Regressado à sua verdadeira forma, já sem antenas minúsculas, encarando-me com uma fixidez sardónica, o Imperador dos Glauss sorria-me.
E falou:

- Não te assustes! Nós viemos simplesmente raptar a rainha e suas fêmeas. Não ofereçam resistência e nós vamos em paz. O nosso povo carece de fêmeas. Estas fêmeas carecem de macho. É tudo.

Sorri, mal crendo na felicidade que me ofereciam.
Quando sairam, levando consigo as Antoneqas da minha nave, mandei gravar, à entrada da cabine, esta frase histórica:

«Às vezes, os inimigos podem ser uma benção!»

FIM

sábado, julho 12, 2008

GUTERRES E OS OUTROS

Devo uma explicação. Tenho muito prazer.
Num anterior «post» associava, entre parêntesis e sem mais comentários, Ana Drago a Guterres, como exemplo do que é excepcional, pela positiva, no quadro da mediocridade em que se afunda a paisagem partidária portuguesa.
Se, em relação a Ana Drago, não me chegaram ecos de espanto, já em relação a Guterres tive inúmeros sinais da mais profunda estupefacção.

Guterres cometeu, de facto, um tenebroso erro político. Procurou ser um Gentleman, no mais nobre sentido da palavra, num país da treta. Os países da treta não lidam bem com Gentlemen. Não os entendem e, portanto, acabam por não os merecer. E, como dizia Talleyrand: um erro, em política, pode ser pior do que um crime.

Guterres é um homem cultivadíssimo. É engenheiro, o que só lhe fica evidentemente bem, sem que, no seu caso, isso signifique o desenvolvimento de um único hemisfério e o total bloqueio de outro. Ou seja: em Guterres os dois hemisférios cerebrais funcionam em pleno, revelando-nos um homem que sabe de números E de poesia, planeia pontes MAS ouve ópera, raciocina científica MAS TAMBÉM artisticamente, fala línguas e argumenta com uma invulgar agilidade. Basta fazermos a comparação com praticamente qualquer outro líder partidário português para termos a noção de que estamos perante pessoas que jogam em campeonatos diferentes. Pois bem: o que lhe valeu o seu engenho argumentativo foi, entre os portugueses, a imagem de verborreico e o nome de «picareta falante», que lhe inventou o rei da maledicência, do ataque gratuito e dos copos, que é Vasco Pulido Valente!

O grande desígnio de Guterres, se bem se lembram, era o diálogo. Entre todos os sectores e em todas as áreas, esforçou-se denodadamente por incentivar o diálogo. Não é estranho que essa tentativa, porventura ingénua, tenha tão facilmente passado por fraqueza, por falta de convicção ou de firmeza? Não sei se o diálogo terá sido sempre bem conduzido por ele. Se não terá errado. Pôr portugueses a dialogar com seriedade é obra. Mas daí à firmeza a raiar a intolerância com que o seu Delfim de então, José Sócrates, acabou por conquistar o Poder e governar Portugal vai uma diferença que nos permite pôr os dois lado a lado... e chorar de saudades!

Finalmente, e isto é o pior, Guterres ficará na História como o exemplo extremo de cobardia, como se tivesse abandonado o lugar que principiava a tornar-se pantanoso, no momento em que mais se esperaria que tivesse coragem de cumprir a sua missão até ao fim. E considero isso, essa imagem de indignidade, a maior das injustiças que o povo comete em face de um gesto, invulgaríssimo, é certo, entre os políticos portugueses, de verdadeiro desapego pelo Poder. Guetteres deixou o governo para outros, porque «tirou as devidas ilações» do voto dos portugueses, quando o PS perdeu a maioria das Câmaras do país.
Aproveitou a porta aberta? Pois sim. Estava cansado de governar? Talvez. Quem não estaria de um país destes?

VAI TRABALHAR, Ó!

Nuno Lopes é um jovem inteligente e talentoso.
Não é um cómico, no sentido redutor que a palavra tem. Sendo que, em si mesmo, não há mal nenhum em ser-se um cómico: Ricardo Araújo Pereira é-o assumidamente e repete à exaustão que não quer que nele vejam outra coisa; fez, todavia, da comédia em Portugal (e não sejamos injustos: fê-lo na peugada de um Raul Solnado e de um Herman José) uma Arte maior, provocadora, crítica, pensante. Mas RAP é RAP: um caso excepcional no panorama português.

Nuno Lopes não quer ser, ao contrário, um cómico: trata-se de um actor pleno e completo. Na verdade, de um excelente actor e, na minha opinião, um magnífico «gestor» (derrapamos sempre nestes lugares comuns, mas que fazer?) da sua carreira.
Fez telenovela no Brasil, onde outros portugueses, também convidados para outras tantas telenovelas, andaram a desgraçar a imagem de Portugal. Fez um papel discreto, de um jovem português apaixonado e, mesmo para quem não seja apreciador do género, os momentos em que ele surgia eram momentos brilhantes, que davam luz à novela. Valia bem a pena tirar os olhos do jornal ou do livro que estávamos lendo para nos fixarmos nessas suas aparições.

Nuno Lopes faz, sobretudo, teatro.
Nos momentos em que envereda pelo registo humorístico, evita sabiamente tiros no pé, como o «Levanta-te e Ri» ou os «Malucos do Riso».
Ele era impagável no papel de primo de uma personagem representada por Maria Rueff, integrados no que seria um grupo de teatro de uma associação recreativa de um lugarejo; era impagável no programa da Maria, imitando com génio e um invulgar poder de observação o Marco do Big Brother.
A sua última personagem, nos Contemporâneos, que não tem nome e repete incessantemente «Vai mas é trabalhar, ó!» é igualmente impagável.

Pelo que tenho visto por aí, em comentários dispersos, este boneco é um incompreendido e um mal-amado: as pessoas, que às vezes confundem as coisas, sentem-se incomodadas com um indivíduo cheio de tiques e deficiências que, num sarcasmo cortante e delirante, diz mal dos anões ou das velhinhas.

Acontece que a situação cómica pode ter diversas leituras: na minha perspectiva, não se trata de ridicularizar anões ou velhinhas, mas de parodiar uma mentalidade mesquinha e cruel, pretensiosa e invejosa.
A personagem, aliás, é profundamente democrática na sua maledicência: ele, que, por seu lado, não trabalha, canalizando todo o seu tempo e energia para a crítica dos outros, tanto se sente enraivecido com os portugueses bem-sucedidos (Vanessa Fernandes, Pacman: «Vai mas é trabalhar, ó! O que tu queres é aparecer!») como com os deficientes e os miseráveis. E trata-se, neste último caso, de levar ao extremo esta ideia bem portuguesa de que os males dos outros também podem ser matéria de inveja, porque convidam a uma invejável piedade ou a demais benefícios. «Ai eu sou anãozinho, sou tão querido, não sou?, vejam lá, só os anões é que são queridos, os outros não são queridos...» ou «Sou uma velhinha, ai ai, sou uma velhinha, não tenho pensão, o marido morreu-me, os filhos não querem saber de mim - o que tu queres é que tenham pena de ti, vai mas é trabalhar ó».

E mais não digo, porque não vale a pena estragar com excesso de reflexão aquilo que vale pelo seu efeito quando visto.
No blogue da Janota encontram alguns filmezinhos imperdíveis.
No youtube têm uma longa série. São uma vintena ou uma trintena de sketches.

Não gostas, pois não? Claro que não. (Ai, eu sou muito politicamente correcto, sou muito certinho, não é?, não aprecio ver gozar com anõezinhos, as pessoas gostam todas muito de mim, não tenho graça nenhuma, chamo-me Boaventura Sousa Santos ou assim). Tu queres é aparecer, mas é. Se não tens graça devias ir trabalhar para a agência funerária «Agnus Dei», ou então ter a função de fazer «shiiiu» no cinema quando os espectadores parvos se põem a comentar alto ou a rir despropositadamente, sempre eras mais útil à sociedade. Vai mas é trabalhar, ó!

sexta-feira, julho 11, 2008

O QUE FAZ UMA POLÍTICA DE ENSINO-PARA-OS-POBREZINHOS

O senhor Paulo Rangel não me interessa menormente.
O seu discurso gongórico, retoricamente aplainado, ensaiado certamente muitas vezes ao espelho e «dito» (no sentido em que se fala de «dizer» poesia), na Assembleia da República, num falsete anasalado, revela, em geral, pouco interesse. Prestou-se bem aos apartes jocosos e aos sarcasmos das raposas velhas do PS. É bem feito. Que se entredevorem!

Refiro-me aqui ao discurso, «en passant», porque no meio de uma profusão de figuras de estilo, tinha o mérito de, quase por acaso, chamar a atenção para um pormenor frequentemente esquecido:
Pensa-se, dizia Paulo Rangel, que o «facilitismo» é a melhor forma de ajudar os alunos pobres, os meninos das classes mais desfavorecidas - e isso, concluía ele, é um erro crasso!

O «facilitismo» significa, a médio ou a longo prazo, retirar aos estudantes economicamente mais debilitados a única verdadeira oportunidade de se formarem com qualidade e de se tornarem, do ponto de vista cultural, pessoas de excelência: onde, e com quem, teriam oportunidade de aprender o melhor da melhor forma? De conviver com a Poesia e com a Arte, de preferir bom teatro e bom cinema? Onde mais - e com quem - aprenderiam a argumentar e a debater? De que outra maneira apurariam o gosto, conheceriam a delicadeza de não atender o telemóvel numa conferência, durante um filme ou numa sessão seja do que for? Que outras oportunidades teriam e terão, alguma vez, de ganhar bolsas de estudo que lhes permitam ser aceites nas melhores universidades do estrangeiro, em competição com os mais qualificados e promissores jovens do mundo inteiro? Onde e com quem aprenderão a não dizer «sêjamos», «vistes» ou «tem a haver com»...?

Basta olharmos para a qualidade média dos políticos portugueses para nos inteirarmos. Com poucas e honrosas excepções (ocorre-me Ana Drago e Guterres: e, depois, há uma espécie de neblina selectiva na minha memória que me não deixa ser capaz de associar mais ninguém a esse campeonato), da Esquerda à Direita, a «classe» política é um exemplo feroz do mal que o facilitismo escolar pode provocar.

Um Ministério da Educação a sério, bem preparado, de gente culta, veria isto. Mas o Ministério, coitado, é, ele próprio, um exemplo daquilo que o eduquês pode produzir; e tem, é verdade, preocupações mais urgentes: criar uma galeria com as fotografias de todos os ministros que passaram pela 5 de Outubro desde 1962.

domingo, julho 06, 2008

VAMOS A VER O QUE ISTO DÁ [III]

Havia pior do que aquelas. A rainha, que sentia as entranhas devoradas de inveja e ciúme pelo facto de ser eu, tão mais novo, o líder daquela delirante expedição, e fazia menção de nunca pronunciar o meu nome, chamando-me, quando precisava, do alto da sua realeza, com um mero estalar de dedos carregado de superioridade e desprezo.
A discussão de que vos falo só acalmou quando a rainha me estalou, uma vez mais, dois dedos e eu lhe voltei ostensivamente as costas.
O silêncio caiu com uma força quase esmagadora no interior da sala habituada ao ruído...
E no momento seguinte, pareciam todas mais calmas, mais leves, mais suaves, quase doces: era um paradoxo igualmente insuportável, o espectáculo de fêmeas tão feias emitindo aqueles arrulhos, aquelas vozes de veludo, como se lhes escorresse ternura das bocas preparadas para gritar e cuspir.
Soube depois, muito mais tarde, que a rainha passara o resto do dia a chorar. Não vi - estivera fechado no meu próprio cubículo privado a chorar: no meu caso, de raiva por não poder bater-lhes!
O Professor Karamba alertava-me, agora, para os problemas que se abatiam sucessivamente sobre a «nave ronceira», como a designavam os velozes Angelius.
- Acha que são elas? - perguntei. - Tentativas de vingança?
- Se não conscientemente, inconscientemente... mas...
A rainha estalava-me, entretanto, os dedos ossudos. Calámo-nos. Estalou com mais força. Espirrou um humilhante «pssssiu».
Pus-me de pé, enervado.
Aproximei-me dela:
- Oiça! Se... - principiei.
Não tive tempo de acrescentar uma única palavra. Porque a rainha falou, começando imediatamente a chorar:
- Os Glauss! Vão atacar-nos. Estão em todo o lado!

[CONTINUA]

domingo, junho 29, 2008

VAMOS A VER O QUE ISTO DÁ [II]

Lembrava-me bem do início da nossa imensa viagem, e daquela impressionante discussão com Antuneqa e o seu grupo, em que cheguei a perguntar-me se não se trataria de uma revolta para se apoderarem da nave.
Havia ordens claras de Sir Mäix. Eu falara com ele, vendo a sua imagem virtual mesmo diante de mim.
Ninguém gostava de Sir Mäix, e com razão, até com razões inúmeras mas, dessa vez, as suas ordens, algo com a simplicidade de:«Evitem as naves dos Glauss; eles estão em pé de guerra, andam a armar-se furiosamente e vocês têm um armamento muito reduzido e em péssimas condições...», pareciam de uma sensatez indiscutível. No resto, Mäix podia continuar a não ter razão, e eu a opor-me a ele na medida das minhas possibilidades. Podia continuar a ser um líder sem escrúpulos e odiado. Mas teria eu de o contestar, lá porque era Sir Mäix, se, um dia, me dissesse por exemplo: «A Antuneqa é muito feia!»? - E se eu concordasse, faria isso de mim um lambe-botas, um fiel de Sir Mäix???

Tive dificuldade em entender aquele levantamento do grupo de Antuneqa: todas fêmeas do mesmo planeta de onde os machos haviam sido extintos, todas feias - na minha perspectiva, claro, segundo valores e critérios terráqueos -, numas vozes estridentes e contundentes, que optavam pela intensidade em vez de argumentos...
Gyllia, talvez pior do que Antuneqa, berrava:
- Se eu vir uma nave Glauss, garanto que disparo. Desato a disparar, eu. Não me escondo, eu. Nunca me escondi, eu. De nada, de ninguém. Disparo nem que seja com um revólver de luz.
Tive de gritar mais alto, a minha voz possante e treinada quebrando o nevoeiro sonoro.
- Está a dizer, Gyllia, que vai desobedecer às ordens?
- Não... sim... eu... não é bem isso, mas eu... eu...
- Porque se assim for, diga-me já, que tomarei as devidas medidas!
- Não. Mas. Eu. Sim. Não, não, não, não. Mas quero deixar expresso o... o... o meu protesto. A ordem de Sir Mäix não faz sentido.
E redigia já um texto confuso, que riscava e retomava, numa folha já com diversos cortes e rasgões, muito feia, muito triste, muito como o beco sem saída por onde enveredara.

[CONTINUA]

sábado, junho 28, 2008

VAMOS A VER O QUE ISTO DÁ (I)

Na Via Láctea, entre «Cagnia» e «Ugnia», vemos seres que navegam solitariamente, com uma antena, se a têm, ou um tentáculo, ou o correspondente ao dedo polegar, indicando um certo sentido, na expectativa de uma boleia.
Nós raramente damos boleia a estas criaturas em órbita lenta, porque nunca sabemos com que contar. Alguns são assaltantes, há entre estes viajantes de ar inocente verdadeiros «serial killers» que se replicam rapidamente em centenas de militares, capazes de tomar, em poucos segundos, um veículo que os acolhesse.
Nesse dia, porém, aceitámos a bordo aquele viajante solitário: era o Professor Karamba, de Ugnia; não trazia malas, apenas uma mochila rudimentar. Um turbante brilhante cobria-lhe o crânio calvo, as orelhas ponteagudas e as pequenas antenas.
À noite, já refrescado, sentado comigo à mesa, disse-me, com a sua voz pausada, típica de Ugnia:
- Têm-vos acontecido constantes acidentes, não é verdade? Desastres, problemas vários, como se estivessem amaldiçoados...!
Ah, «como se estivéssemos amaldiçoados», como se nos houvessem rogado uma praga, era bem verdade: estas eram as palavras que, ainda há pouco tempo, ouvira da voz gaguejante e arquejante do imediato. Assenti.
- Percebi-o, logo que entrei. Detecto uma energia terrível; julgo que haja mesmo rotundas integalácticas em que a nave chega a perder velocidade, como se forças ocultas se apoderassem dela...
Eu estava boquiaberto. No ponto de Rana, por exemplo, a força parecia esavair-se-nos da nave, deixando-nos praticamente parados.
Professor prosseguiu:
- Só tenho uma coisa para lhe aconselhar. Faço-o gratuitamente, para lhe agradecer a boleia que acaba de me oferecer. Que preste muita atenção àquela criatura. Não sei dizer-lhe o que percebo nela, que mal, que intenso negrume, que luz invertida... mas há qualquer coisa de pouco limpo na sua aura. Preste-lhe muita atenção....
E, com a antena curtinha, como que cortada por uma lâmina, indicava Antuneqa, baixa, feia, corcunda, como todas as fêmeas de Yaúte. («Feia» do meu ponto de vista; em Yaúte, Antuneqa sempre fora muito apreciada...)
Olhei-a.
Antuneqa olhou-me.
Desviei os meus olhos, com um arrepio...

(CONTINUA)

quinta-feira, junho 26, 2008

O MEU EXTRA-TERRESTRE

Para que se perceba, realmente, que a animação segue dentro de momentos, quero advertir-vos que ando a pensar numa saga à maneira de J.R.R. Tolkien.
Na verdade, a saga está atrasada, porque tenho demorado demasiado tempo - exactamente como Tolkien - a engendrar uma língua falada pelos nativos de um certo planeta de um sistema longínquo numa galáxia a anos-luz do ponto em que nos encontramos. Acreditem: se queremos conceber uma linguagem em que até a gramática tenha uma realidade, acabamos perdendo algum tempo...

Neste momento, posso transcrever-vos uma passagem de um tenebroso discurso de certa criatura. Reparem:

«TiLela Kelyaúte. A Cágnia. A Cágnia. Kelyaúte. Tai, tai, pai, tai, pai nom, pai nom. TiLela dá, pai nom, pai nom. A úgnia? A úgnia pai? Cacá? Ontá úgnia? Kelúgnia, kelúgnia! Uhaaam, kelúgnia, ontá úgnia? Kelyaúte!»

Estava a reinar. Não há saga. E esta fala existe, não é uma invenção minha. Na verdade, é a linguagem de uma espécie de criatura tenebrosa, um absoluto extra-terrestre. Apresento-vos a minha filha Margarida, eheheh!

E este discurso tem tradução. Às vezes, torna-se uma tradução arriscada porque, por exemplo, «Cágnia» significa, em geral, «Casa», mas também pode significar «Caixa» ou «Calça», quer no sentido de vestimenta, quer como imperativo do verbo calçar. (Este extra-terrestre é extremamente imperativo...)

Posso arriscar uma tradução desta algaraviada que ela nos berrava no carro, quando vínhamos das compras, com sacos carregados de iogurtes.

«Tia Lela, quero iogurte. Em casa. Em casa. Quero iogurte. Sai, sai, pai, sai, o pai não. A tia Lela é que dá, o pai não, o pai não. A chucha? A chucha, pai? Não está cá? Onde está a chucha? Quero a chucha, quero a chucha, uhaaam, quero a chucha, onde está a chucha? Quero iogurte!»

Há tradutores que traem. Como vêem, não é o meu caso: eu quando traduzo, traduzo mesmo!

O CORPULANTEX HYBRIDUS DE CAVALETE AZUL DA ZONA NORTE DE ALGUEIRÃO SUL

Há períodos assim, em que me apetece tão-só tecer considerações, ensaiar argumentos acerca seja lá do que for, em vez de «historiar», ou melhor (quer dizer: pior, mas mais preciso), «estoriar». Sei que me torno maçudo quando me dá para aí. Avalio-o facilmente: se as minhas «estórias» merecem poucos comentários (os de um gato, os de uma janota e, agora nem isso, os de uma «anja»), os meus «posts» sérios, sobre filosofia, política ou literatura (Prousssst!) não são comentados. De todo.
Tenho este problema de viver em permanente esforço para parecer um tipo leve e divertido aos olhos dos outros, sem conseguir evitar completamente que o meu lado «seca» e pesadão venha por vezes ao de cima, como um dedicado especialista em «corpulantex hybrudus» de cavalete azul da zona norte de Algueirão Sul que, tendo percebido, ao longo de anos, que o seu interesse não é partilhado por ninguém, e quando o menciona provoca de imediato bocejos, distracção e fuga, acaba por aprender a preferir, em público, dizer graças, se possível na Feira Popular, entre copos, amigos e montanhas russas, MAS que... em certos momentos... nem que seja por um instante... por uma fracção de segundo... numa árdua batalha psicológica contra si mesmo, de antemão perdida... não pode... não é capaz de calar uma ou outra frase que lhe saem como um arroto... «Sabes que o corpulantex hybridus tem...?»... - gerando o inevitável silêncio constrangido e compungido, e um olhar desesperado do interlocutor, que só pode interpretar-se como: «Oh, não! Lá começa o maluquinho...!»
Mas, por agora, com o Proussst, já me aliviei.
Não se preocupem. A animação segue dentro de momentos...

quarta-feira, junho 25, 2008

EM BUSCA DO TEMPO PERDIDO

Interrogo-me com alguma frequência acerca da margem de snobismo e vaidade que haverá nesta minha paixão pela obra de Proust; interrogo-me sobre até que ponto será ele sincero, este deslumbramento em face de sete volumes de uma exasperante minúcia na descrição de pormenores dos pormenores provenientes da precisa memória visual e olfactiva, auditiva, gustativa e, sem dúvida, até táctil, de Marcel (a personagem) e de Marcel (o autor), ou, pelo contrário, até que ponto não servirá principalmente para me exibir, como se eu andasse por aí a dizer: «Adoro Proust! Ai, adoro Proust!»

A resposta a tal interrogação surge em dois pontos.
Numa ordem perfeitamente arbitrária, primeiro, o carácter discreto, se não secreto, do modo como vivo esta paixão, a qual trato como se fosse uma tara de que me não covém falar demasiado. Devo dizer que essa é, aliás, uma das razões que me mais me levam a hesitar em escrever um «post» sobre Proust.
Em seguida, o prazer genuíno, indiscutível, com que releio a obra.
O que julgo ver nela e tanto me entusiasma é, por um lado, uma capacidade (uma «competência», como se diz por aí...) de que sou inteiramente destituído: a facilidade na síntese entre o analítico e o sensitivo. Eu sou capaz de descrever e, obviamente, capaz de sentir. Mas descrever as sensações, as características deste ruído rápido do matraquear sobre as teclas, ou deste zumbido, ou decompor o sabor deste gole de uísque com que faço uma pausa para pensar na frase que se segue, é-me quase doloroso. E, por falar em dor: recordo-me bem da dificuldade que constituía, para mim, quando ia ao médico, descrever «exactamente» o tipo de dor que estava a sentir. «É uma dor fininha?», propunha-me ele. Que significa isso? O que será, por oposição, uma «dor grossa»? Devo dizer que um dos grandes terrores que me perturbavam na antevisão de uma ida ao médico não residia no receio do momento em que o senhor doutor forçaria a abertura da minha boca, puxando a língua para baixo sob a pressão da malfadada espatulazinha e, com isso, quase me fazendo vomitar (sim, tal seria o meu segundo pavor), mas no momento em que ele me perguntaria: «Diz-me lá exactamente o que estás a sentir». Tinha pesadelos, imaginando que a doença poderia ser mal diagnosticada por defeito das minhas descrições, ou por um «sim» leviano, precipitado, à simples questão: «É uma dor fininha?». Ou: «É uma dor que aperta?»

Mas, sobretudo, delicia-me aquela atenção de Proust ao evanescente, ao que está disperso no tempo, ao que passa, ao que não dura, ao que não ficará, ao que já cá não se encontra no preciso momento em que acabo de o apontar; delicia-me aquela atenção ao superficial que é, curiosamente,uma das marcas da profundidade; a subtileza do que muitos vezes não captamos na sua essência à primeira leitura e, portanto, a que teremos de retornar. Extasio-me (como diz o próprio Proust de uma personagem, o escritor Bergotte) com o seu poder de pegar numa percepção por um ângulo tão pouco usual que parece um ângulo errado, produzindo, a partir dele, um sentido originalíssimo, paradoxal, de uma invulgaridade arrepiante.
Entrego-me à sua observação de contradições nos sentimentos, sempre complexos e carregados de cambiantes, em todas as personagens, na evidência reiterada de que nada é simples, de que palavras como «amo» ou «detesto» são meras etiquetas, porque há no amor sensações que se digladiam e chocam, como há no «detestamento» estranhos e inesperados elementos de atracção.

Saio de uma página de Proust completamente rendido e plenamente satisfeito, como se tivesse atingido um cume.

Não é uma experiência de que me ouvirão falar muito. Não por egoísmo, não por pouca vontade de partilha. Mas porque o próprio nome, Mar-cel Proussst, soa a clássico, a pesado.

Saboreiem só, quanto mais não seja, todas as reverbarações deste título. «Em - Busca - do - Tempo - Perdido».
Não é maravilhoso?

terça-feira, junho 24, 2008

NO CONFORTO FAMILIAR

Sento-me ao computador como quem tenta respirar, erguendo a cabeça acima da linha da água que principia a envolver-me, a puxar-me convictamente para baixo, para o fundo.
A água em que me vou enraizando é, sobretudo, uma água sonora: toda feita de ruídos que me povoam a casa invadida por familiares. Oiço o meu sobrinho de pernas peludas que gargalha alentejanamente, lá para baixo. (Sem desprimor, que o gargalhar alentejano não é pior do que os outros...); não lhe oiço a mulher, nortenha discreta, tímida, pálida e loira. Mas, em contrapartida, oiço a minha cunhada, mãe do marmanjão das pernas peludas, que barafusta com ele! «Tira-me já isso daqui! Faz outra dessas e volto já para o Alentejo...» - Sinto-me indeciso: pedir ao dos pêlos que repita seja lá qual for a gracinha, a ver se ela desanda, se desandam todos?
Mas estou sendo injusto! Vieram para me ajudar na vigilância da minha filha, atacada de varicela; vieram para tomar conta dela, uma vez que não posso deixar de ir trabalhar, agora que, na escola, me desabam em cima os exames e as reuniões de notas, nem a Adelaide, que se falha, não vende, se não vende, não ganha!
Estou-lhes, portanto, grato. Claro, podiam não ter trazido o gato e o cão. Mas com quem os deixariam?
A irmãzinha do rapazola, ela já também de pernas peludas, grita. Aliás, grita sempre. Pergunto-me por que raio uma criança falará sempre a gritar, a não ser que seja surda ou que viva entre surdos. (O que, por aqui, em breve será certamente o caso!)
Afundo-me literalmente - na verdade, chamam-me para jantar e, portanto, lá terei de afundar estes dois andares que ainda me separam...
Preparo-me para acabar este post, com um misto de triunfo e de culpabilidade. Sinto-me, realmente, mau como as cobras. Absolutamente maldoso. Vejam: as pessoas que acorrem para me apoiar neste momento conturbado da minha vida, e eu que me escondo no blogue a dizer mal...!
Se ao menos dizer mal não me fizesse tão bem à saúde...
Ou se a criança não falasse tão sempre a gritar...
Ou se não tivessem trazido o gato e o cão...!

quarta-feira, junho 18, 2008

ROBOCOPZINHOS

Como o mundo evolui vertiginosamente e os jovens já não são como éramos, a psicologia trata de os compreender em função de motivações e carências completamente novas.
Acontece que esta ciência é um pouco de tudo o que se quiser. Não sou adversário da psicologia em si. Sou somente muito céptico em relação aos psicólogos. É diferente.

A última teoria que ouvi foi exposta, com uma convicção e uma seriedade perfeitas, por uma senhora de óculos e fita nos cabelos. Era acerca dos adolescentes e dos telemóveis e ecoava ainda, vaga e longinquamente, o triste caso do combate entre uma aluna e uma professora, por causa de um telemóvel, que povoou semanas e semanas de telejornais.
Explicava a psicóloga da fita que os adolescentes criaram uma dependência do aparelho que o torna literalmente uma parte deles, configuradora da sua intimidade e dos seus laços; «têm necessidade de se sentir em rede», em permanente comunicação com o mundo. Cortar essa possibilidades é feri-los num elemento tornado vital enquanto jovens. E, portanto, arrancar-lhes o telemóvel (como a tenebrosa professora teria tentado) seria como arrancar-lhes uma parte de si: «como uma prótese», exemplicava...

Não quero ir declaradamente contra a maré. Vejo-me na contingência, pois, de assumir e digerir estas novas teorias. E portanto, no próximo ano lectivo, terei de ser muito específico:

«Nas minhas aulas», direi a estes novos robocops, rapazes com tecnologia incorporada, «o único tipo de prótese que pode permanecer ligado é o sonotone!»

domingo, junho 15, 2008

SE AMANHÃ LEVAMOS DA ALEMANHA, LÁ NOS CAI A CRUEZA DO PORTUGAL SOCRÁTICO EM CIMA!

Ninguém pergunta: «Está tudo numa boa?»; perdão, minto: há um grupo de pessoas que usa esta expressão. Não são os jovens, são os cotas que anseiam, se não por parecer jovens, pelo menos por mostrar que os entendem muito bem e falam a mesma linguagem, numa espécie de piscadela-de-olho cúmplice. Qualquer jovem identifica imediatamente um, digamos assim, «utente desta expressão», como sendo um não-jovem armado ao pingarelho.
Há uma espécie de película permanente de equívoco nesta angústia «politicamente correcta» de nos entrosarmos, de também falarmos à maneira de.
De certo modo, eu próprio sou uma vítima dessa ansiedade. Enquanto homem que, durante anos, não percebia patavina de futebol, assumindo um irrelevante e inconvicto «sportinguismo», tinha, por vezes, entre machos lusos, necessidade de falar futebolês, dizer que a equipa estava pouco/muito «entrosada». Servia-me de guia o senhor A., contínuo na minha escola que, quando eu entrava, era o primeiro a fazer os comentários que, ao longo do dia, eu tratava de seguir religiosamente - aliás, com pouco sucesso porque a opinião do senhor A., como acabei por descobrir com o tempo, estava longe de constituir uma luz do Além. Era uma opinião do Além, sim, mas num sentido menos lisonjeiro!
Com o tempo, tornei-me um fervoroso adepto e um atento seguidor de alguns jogos. Devo essa reviravaolta, mais do que ao senhor A., à selecção - pense o que pensar do histerismo patrioteiro que a rodeia e, para ser franco, este não me desagrada muito porque há, em mim, um óbvio lado histérico - e, mais do que aos homens, a duas ou três amigas com quem aprendi a entusiasmar-me com um certo futebol.

Neste momento, tenho vindo a discutir com elas se a trapalhada de pés que o Quaresma utilizou no jogo contra a Suíça é, ou não é, a famosa «trivela». Uma das minhas amigas, que sim. Outra, que não. Já não tenho o senhor A. para me tirar dúvidas. Sorte minha. E assim me entroso no entusiasmo pelo euro. Está tudo numa boa!