sexta-feira, agosto 21, 2009

QUALQUER COISA COMO UM AFORISMO TRÁGICO

Pode suceder - e é até, talvez, mais frequente do que se pensaria - possuir-se talento para se ser excelente, mas não se ter vocação para isso.

Acredito que pareça terrível. É, contudo, certamente muito menos dramático do que:

ter-se vocação para se ser excelente

mas não ter talento para isso...

sábado, agosto 15, 2009

O FEITIÇO PELA CULATRA III: O «TWIST» FINAL

O homem não era um pedófilo, nem um louco, nem um assassino em série.
Era um cidadão pacato, um pouco nervoso, já careca no alto da cabeça. Era Delegado de Propaganda Médica, não tinha mais do que dois pares de sapatos, uns castanhos e outros negros. Detestava que o confundissem com uma Testemunha de Jeová. O que, regularmente, acontecia: já sucedera, ao todo, mais do que três vezes.
O homem era simplesmente isto. Enervara-se com a chamada. Primeiro, assustara-se: Quem será, e a querer falar-me nesta aflição, a pedir-me que pague o telefonema...? Depois, percebera que eram miúdos. A brincar. E pensou: Vou dar-lhes uma lição!
Só isto. Quando percebeu que o número em causa se mantinha permanentemente desligado, que já o não atendiam, sentiu a alma rejubilar. «Apanharam um susto!» Mas não resistiu - e continuou.

O homem era somente isto.
Como sei?
É que o homem sou eu. De voz cortês. Cidadão pacato.
Mas como prová-lo!? Como prová-lo, agora que me prenderam porque um jovem chamado Nuno se suicidou - por enforcamento, o que é pouco vulgar em jovens - e, investigando no seu telemóvel, deram com as minhas mensagens, dezenas, centenas para não dizer milhares..., perseguindo, ameaçando, terríveis, «Estou perto», «Hoje estaremos frente a frente...», «Apanhei-te»?

Como provar que sou unicamente um homem que não quer da vida senão, para já, um terceiro par de sapatos?

quinta-feira, agosto 13, 2009

O FEITIÇO PELA CULATRA - II

Mas, repentinamente, Mateus tinha de se ir embora. E a conversa de despedida entre os dois marcou-o profundamente.
- Cê tá frito! - disse-lhe o amigo, ao sair, como se o abandonasse. - Desta vez cê pôs a pata na poça.
«Cê está»!? «Cê Pôs!»? Onde raio estava então o «nós»?
-Cê sabe que agora eu tenho de ir -, rematou Mateus.

Nuno desligou o telemóvel, é claro. Mas, num certo sentido, nunca o telemóvel estivera tão ligado, tão presente, tão aceso como agora. É que ele não podia pensar em nada mais, nada mais. Seria possível que o seu número estivesse «sob vigilância»? De quem? Tinha um cartão vulgar, não associado a nenhum proprietário; quem o vigiaria, e como? Por outro lado, hoje, pensou, existem novos aparelhos, detectores sofisticados: sabia de mulheres que compravam dispositivos certeiros para saber onde se encontravam exactamente os maridos infiéis, ou vice-versa...

A mãe protestou:
- Nuno, estás com o móvel fechado? Sabes que isso me preocupa, quero saber sempre de ti...

Preocupava-se? Ai sim? Pois bem, agora tinha sérias razões para se preocupar. E ele nada lhe podia dizer: nada...

Quando tornou a ligar, no dia seguinte, a medo, viu o seu medo justificado: tinha a caixa cheia de mensagens - escritas e de voz, «Não me escapas», «Vou apanhar-te», «Estou perto, muito perto», «Esconde-te!», «Não adormeças de noite, estarei a ver-te!»

Um pedófilo? Um louco? Um assassino em série?

Chorou.

quarta-feira, agosto 12, 2009

O FEITIÇO PELA CULATRA - I

Chegou a ser divertido por um instante.

Estavam os dois, ele e Mateus. A ideia poderia ter sido dele ou de Mateus, seu amigo brasileiro: era indiferente; na verdade, as ideias de um e de outro misturavam-se numa confusão de rios onde se perdia a origem e o proprietário.
Inventaram um número de telemóvel (vodafone), partindo do princípio de que pertenceria certamente a alguém, e recorreram ao serviço vodafone para pedir que o dono do telemóvel aceitasse pagar a chamada.

O homem do número em causa aceitou.
Tinha uma voz máscula, pausada, cortês.
- Sim? - perguntou de lá, másculo, pausado, cortês.
- Como é que o senhor se chama? - inquiriu Nuno.
- Eu!? Essa agora! Diga-me você quem é, por favor. E depressa, que eu estou a pagar...
- Como é que o senhor se chama? - insistiu Nuno, enquanto o amigo Mateus escondia a cabeça sob a almofada para que o não ouvissem rir.
-Oiça - respondeu o homem. - Não me macem. Deve ser engano. Com licença.
E desligou.

Também se tornava difícil recordar quem decidira que deveriam continuar a brincadeira.
Mas, vez após vez, o homem aceitava sempre a chamada e, quando a operadora procedia à ligação, Nuno e Mateus não atendiam.
Uma vez. Duas, três vezes.
Depois, perceberam que o senhor lhes telefonava já por sua própria inciativa.
Não atendiam.
O homem insistia. Tornava à carga.
Quando atenderam, por fim, preparados para responder com vozes de monstro e guinchos, ouviram simplesmente isto:
- Sabe que o seu telefone está sob vigilância?
- Desliga essa porcaria, desliga essa porcaria! - gritou Mateus.
Ainda lhes chegou a voz, menos pausada, mais máscula, absolutamente descortês:
- Eu vou chegar aí. Juro que chego!

domingo, agosto 02, 2009

BLOGUES & BLOGUES


É qualquer coisa assim:
Gaston pede a um amigo que lhe tome conta do ratinho. Mas, explica, tomar conta do ratinho implica não perder de vista o gato, que vigia, atento e esfomeado, o inocente roedor. Por outro lado, há que fazer atenção à gaivota, que inveja o mesmo rato, podendo, ainda por cima, entrar em luta com o gato de quem tem ciúmes. Em todo o caso, a gaivota tem uma alternativa: o peixinho vermelho; se ela se cansar de vigiar o rato, poderá interessar-se perigosamente pelo peixinho vermelho, chamando, aliás, para este, a atenção do gato. «Percebeste? Tudo bem? Ficas então a tomar conta do meu ratinho, como prometeste?»

Às vezes, a rede de blogues em que me teci recorda-me esta história. Por um lado, porque está aqui o Kaostico. Va bene! Mas, entretanto, dei em participar com grande empenho e prazer no blogue do clube de cinema. Agrada-me que os leitores do kaostico, se ainda os há, espreitem o Gostos Discutem-se, mas não o inverso: afinal, é enquanto professor civilizado e sério que me dedico ao cinema, e não me parece bem que os alunos com quem partilho a feitura do Gostos Discutem-se descubram as minhas facetas kaosticas. Não contente com isso, iniciei o Profissão: Leitor, sobre livros. Que os meus alunos do Clube de Cinema tenham, deste, um link para o Profissão: Leitor, parece-me aceitável. Mas, uma vez mais, não pode haver deste nenhum link para o Kaostico. E quem quero eu que me visite ao blogue de poesia? Bem, não certamente todos os leitores do Kaostico, porque me tem parecido que os há pouco dados a poetices, porque os não quero incomodar e porque me sinto demasiado exposto nos meus poemas. Do Kaostico, gostaria que quem quisesse fosse ao Cara Danjo. Mas, evidentemente, não do Clube de Cinema, não do Profissão: Leitor, não...

Enfim, acaba por se tornar exasperante possuir todas estas facetas que se envergonham umas das outras.

Bem me prevenia o psiquiatra!