domingo, abril 24, 2011

digestão

o menino gostava da areia da praia. era pequenino e tinha medo de se perder. não queria entrar na água nem verdadeiramente mover-se demasiado, porque a mãe lhe dissera que estava a fazer a digestão. e, portanto, observava. que mal podia fazer à digestão obervar, desde que os olhos não se agitassem de mais? era um mundo de meninas gordas em bikini, abanando a celulite; de homens que mostravam músculos descaídos; de barrigas flácidas, mergulhos que salpicavam, risos. era um mundo maravilhoso que, por vezes, se tornava assustador, quando (por exemplo) um grupo, perseguindo uma bola, se aproximava muito do seu espaço da digestão.

quando começou a temer as senhoras velhas que se sentaram a seu lado, conversando e esmagando-o, decidiu escavar um buraco na areia. o menino era pequenino, não tinha força. além disso, fazia a digestão. mas lentamente, lentamente, para fugir ao riso das duas velhas, foi escavando e refugiando-se no buraco: mas o buraco, estranhamente, grão de areia atrás de grão de areia, crescia, isto é, aprofundava-se. e no momento em que deixou de ouvir as vozes das mulheres, os gritos, as bolas batendo nas raquetes, as ondas, invadiu-o uma paz que nunca ouvira antes em sítio algum em nenhum momento.

a areia começava a estar húmida. agora não podia parar. olhou para cima e já não viu nada senão um buraquinho minúsculo, de longe. ali não o encontrariam. talvez nunca mais. mas não teve medo, pelo contrário. descobriu que o seu desejo secreto era precisamente esse. devia continuar: desde que não perturbasse o processo da digestão.

sábado, abril 23, 2011

a pergunta à TROIKA

Os observadores do fmi («a troika», como lhes chama a imprensa portuguesa, que adora estas palavras que se colam ao ouvido como pastilha elástica) acham que a tolerância de ponto dá mau aspecto. Os portugueses deviam arregaçar as mangas e atirar-se ao trabalho.

Os senhores estão instalados, entretanto, no hotel ritz. O que, aparentemente, não dá mau aspecto.

Mas eu tenho uma pergunta. É uma estúpida de uma besoura que me anda a azucrinar o ouvido:

Quem paga a vossa estada no hotel?!

quarta-feira, abril 20, 2011

GOVERNO NO BANCO DOS RÉUS

Os médicos podem ser processados por negligência. Podem não ter feito por mal, ou deliberadamente, que interessa isso ao homem que cegou ou à mulher que nunca mais poderá caminhar? Basta que se prove que o médico não fez tudo o que estava na sua mão para evitar o acidente. Lixa-se a vida a uma pessoa? Presta-se contas.
Mesmo um professor pode ser alvo de procedimento disciplinar. Os alunos queixam-se aos pais, os pais à direcção ou ao ministério. E até um juiz: já viram a ironia? A justiça poética? O juiz poderá ter de prestar contas por uma decisão que arruinou uma vida, se se prova que não foi isento ou imparcial.

Assim, de repente, e com excepção da de árbitro de futebol, a única profissão em que não se é julgado pelos erros que foram cometidos, é a de primeiro-ministro. Lixa-se um povo inteiro, milhares de mulheres e de homens, crianças, idosos, hipoetaca-se um país com séculos de história, e não tem de se responder criminalmente. Um primeiro-ministro e respectivos ministros dão-se ao luxo de destruir uma nação, e não têm de responder em tribunal.

Diz-se: serão julgados nas urnas. Pois!

sábado, abril 16, 2011

A VELHA ATACA DE NOVO

Tenho a velha de novo em casa, mais o seu crochê. Vemos e ouvimos, na televisão, que desta vez, nas comemorações do dia de portugal (as minúsculas são deliberadas: uma crise é uma crise) não haverá aviões nem carros militares. E eu, que, na verdade, nunca gostei de comemorações nem de aviões nem de carros militares, não resisto, contudo, a exclamar: «Ao que chegámos!» Ao que a velha, pousando o seu trabalho no colo, responde: «Agora é que era atacarem e invadirem a gente. Nem dinheiro temos para pôr gasolina nos tanques e na aviação!»

sexta-feira, abril 15, 2011

zangado com o facebook

Confesso que, efectivamente, não sou amigo pessoal de todas as pessoas que tenho convidado para serem «amigos» no facebook. Um amigo é um amigo. Já um «amigo» é um «amigo». Não os confundo. Obviamente, não desbarato pedidos de amizade. Verifico se as pessoas em causa têm «amigos» comuns - quantos e, já agora, quais. Parece-me bem. Como as minhas intenções não são más, considero-o um comportamento justificado. Já tinha reparado que, em certos convites, apanhava tampa - geralmente, pessoas que se consideram vips. Havia uma nota que me perguntava se estava absolutamente certo de os conhecer pessoalmente, e se não, por favor não insistisse, etc. Mas não liguei. Finalmente, recebo uma admoestação do próprio senhor facebook. Em pessoa. Já me viram isto? Ralha-me: que não posso estar a convidar quem não conheço; que bloqueará durante dois dias os meus pedidos de amizade; e, ao fim desses dois dias, que eu trate de ser prudente e de certificar-me de que conheço efectivamente quem convido. (Se não, temos o caldo entornado!) E ainda me pergunta se compreendo. A minha resposta ao senhor facebook é esta: Tem a certeza de me conhecer pessoalmente? Olhe que eu não o conheço de lado nenhum. Pois, em retaliação, não vou fazer pedidos de amizade: decido bloquear qualquer gesto para pedir amizade durante dois dias - os mesmos, de resto, durante os quais ele me bloqueia -, e vamos lá a ver se lhe serve de lição. Compreende? Para o que eu estava guardado.

O COCÓ

Considero no mínimo curioso que se refira o socialismo e o comunismo como sendo relíquias teóricas do passado, ideários delirantes e obsoletos. A questão é que essas teorias - por muito que tenham falhado na prática - representam a busca de uma alternativa a um sistema, esse sim, sem qualquer vestígio de ética ou solidariedade, injusto, cruel e ineficaz: rompe por muitos lados mas não cai, alimenta-se de crises que sugam e definham tudo e todos em redor - menos a minoria que enriquece - mas sobrevive-lhes, aplaina pelo nível mais baixo, e chama a essa igualdade sem aspirações «democracia». É um dinossauro tétrico, uma planta carnívora sem sequer graciosidade, é a invasão dos telemóveis, das pipocas e das coca-colas no cinema. É a falta de respeito. É o Obama, a Merkl, o Sócrates e o ex-marido de uma Doce. É - desculpem - esta merda! E ainda se atrevem a dizer, acerca do sonho da mudança: Isso é coisa do passado! Isso é caquético.