quarta-feira, junho 27, 2012

DE LENA EM LENA, ATÉ À DERROTA FINAL

A primeira vez em que, na minha fase de vida já adulto e já autónomo, fui viver para uma casa que não pertencia a um bairro camarário, decidi dar-me ao luxo de contratar uma mulher-a-dias.
A mulher-a-dias veio a uma reunião. Chamava-se Lena. Estava tão bem vestida e arranjada com tal bom gosto, que me perguntei qual de nós dois ia ao engano. Ou melhor: qual de nós dois não sabia o que era uma "mulher-a-dias". Não havia engano: aquela jovem de longos cabelos loiros, saia-casaco bege e salto alto, que parecia uma secretária bem paga, veio a ser por muitos anos a mulher-a-dias em que eu confiava plenamente, com quem houve necessidade de ajustes e discussões, mas me deixava sempre a casa num brinco. O que é dizer muito, porque existia então Dunga: o saudoso Dunga, que nunca primou pela higiene e não se esquecia de demarcar regularmente o território.

A Lena foi-se embora quando teve de ir. Quando a vida apertou, o dinheiro ia escasseando, alimentávamos duas crianças e eu já não acreditava que viesse a tornar-me um escritor famoso.

Passados estes anos - dez? quinze? - que mudou na minha vida?
Bem. Continuo a não crer que venha a ser um escritor famoso. [Quando às vezes me vem do fundo da alma uma espécie de fé no futuro, o psiquiatra pergunta-me há quanto tempo não tomo a medicação]. Portanto, não mudei nesse aspecto.
Curiosamente, um outro aspecto em que tudo voltou ao mesmo é que contratei uma mulher-a-dias. E que esta se chama Lena.

A actual Lena sofre de perturbações. Tem um marido que sofre de perturbações. É um homem grande e louro, com voz de trovão, que vem, com maus modos, despejá-la à minha porta, num daqueles carrinhos estranhos, de dois lugares, que não sei a que são movidos.
Esta não veste como uma secretária bem paga. Usa uma t-shirt com a imagem do Incrível Hulk, que me suscitou duas perguntas de mim para mim. A primeira: Mas quem lhe deu a minha camisola? A segunda: Que ser irónico percebeu que a do Incrível Hulk era a t-shirt indicada?

Esta Lena é muito baixa, muito grossa e tem pêlos, como arames, pelas pernas fora.
Sei que acabo de escrever um texto infame de preconceito e cinismo. Mas para quem tenha olhos para ver mais longe, é um estudo científico:
A mudança de uma Lena para outra Lena como mulher-a-dias do que já foi uma família de classe média, quiçá classe média alta, diz mais sobre esta crise do que várias páginas de uma exaustiva dissertação carregada de gráficos...

terça-feira, junho 19, 2012

DIGNIDADE

Percebi, um destes dias há algum tempo já, que a palavra "dignidade" pode ser usada de uma forma muito peculiar, associada a um nível simbólico, e significando: «convém-me ter isto, não só porque me convém mesmo e me apetece muito tê-lo, mas, há que percebê-lo bem, porque é um símbolo que levará a que me respeitem como mereço

Lembro-me de que, numa altura em que o país bradava contra a injusta prerrogativa, exclusiva dos deputados, de decidir os seus próprios aumentos de ordenado, Almeida Santos apareceu na televisão dizendo: «É uma questão de dignidade. Não faz sentido que os deputados não recebam condignamente, porque é a própria dignificação da política que exige esse ajustamento.»

Este argumento tem, em múltiplas versões, continuado na ordem do dia. Os professores de Educação Física andam muito enervados, por exemplo, porque a classificação da sua disciplina deixa de contar para a média dos alunos. Até tenderia a compreendê-los - e a irritar-me, quando penso que se trata de uma medida certamente fabricada para favorecer algum filho ou sobrinho, ou neto ou enteado de um ministro, ou de um secretário, ou da criada de algum líder político. Em síntese, de uma criança que quer entrar para medicina, está-se mesmo a ver, e a quem a nota de Educação Física escangalha a média. Mas não posso entender que se pense que a dignidade da disciplina depende de que a sua nota conte ou não conte. É verdade que existe um preconceito: mas esse preconceito não deixaria de existir pelo facto de  a nota desta disciplina pesar como as outras, tal como não desapareceu com a aparência científica de que os professores de Educação Física tentaram revestir o seu trabalho, entre papéis, planificações, grelhas, quantificações: tudo o que veio transformando as aulas de exercício físico numa espécie de burocracia de doutorados em luta contra o seu antigo complexo de inferioridade.

Com a disciplina de filosofia, aliás [de que sou professor], passa-se algo análogo. Sabiam que há uma Associação qualquer de filosofia (constituída, como é bom de ver, por gente de um elementaríssimo senso comum), a qual advoga, há anos, que a filosofia deveria ser sujeita a exame, por razões de "dignidade" da disciplina? Deus do céu! As coisas que se dizem. Os tratos a que submetem a palavra.  O grave que me parece professores de filosofia não captarem que esta disciplina, no seu exercício mais sério e mais nobre, tem de ser, por natureza, o contrário de uma "máquina de preparação de meninos para exame". O que se tem visto prova como tenho razão: basta consultar as sebentas de preparação para o exame de filosofia; basta consultar as provas-modelo. Está lá tudo o que mostra que um exame de filosofia serve para reduzir «o trabalho de reflexão crítica» a um conjunto de definições para decorar, frases feitas e chavões. A organogramas, até. Dudu, meu filho, preparando-se para o exame, pedia-me livros: o que ler de David Hume ou de Kant? E que tal aquele, sobre ética, da autoria de um professor norte-americano, e de que lhe falo tanto?
Fui eu que, depois de me ter confrontado com as sebentas e com as provas-modelo, acabei opor lhe dizer: «Não vale a pena, rapaz! Decora antes isto!»

quinta-feira, junho 14, 2012

QUANDO FUI HUMBERTO

A história que eu vou contar é absolutamente inverosímil, mas passou-se comigo (a quem sucedem aliás diversas improbabilidades) e é, pois, tão verídica como estar neste momento a narrá-la.

O local foi o Pão-de-Açúcar de Cascais. Passaram muitos anos. Eu era mais jovem, menos gordo, menos triste, certamente sem filhos. Folheava uma banda desenhada. Por detrás de mim, surdiu bruscamente um homem careca e de óculos, que me disse:
«Com que então a ver bonecada, com essa idade?»
Não sei bem como se responde a isto, mas tomei a observação por uma brincadeira, não por um insulto, de maneira que respondi:
«Pois é, pois é.»
«Então como vai a vida?»
O homem queria, portanto, conversa. Não seria particularmente estranho; o mundo está carregado de solitários em busca de companhia. Mantive o registo:
«O mesmo de sempre.»
«Chegou há pouco tempo, não foi?»
Interpretei que se referia à minha entrada no Pão-de-Açúcar. Retorqui:
«Há relativamente pouco tempo, sim.»
«E como está aquilo?»
Aqui, qualquer outra pessoa teria principiado a detectar o equívoco. Eu detectei, de resto, mas senti-me impotente para lutar contra ele ou, sequer, para o esclarecer. Deixara de vez o álbum de banda desenhada, e afirmei: «Está bem, está bem.»
«Aquilo é bestial. Foram os melhores anos da minha vida. Infelizmente, não creio que possa lá voltar. Você ainda regressa a Macau, Humberto?»
Nunca estive em Macau. Não me chamo Humberto. O velho careca e de óculos confundira-me com um certo Humberto que tinha estado em Macau. Era tempo de pôr cobro à confusão. Mas não fui capaz, porque tudo o que me vinha à cabeça era: o que ficaria ele a pensar - que eu tinha estado a divertir-me à sua custa? Como explicar-lhe que tivesse deixado a conversa arrastar-se, no seu tom vagamente surrealista, durante tanto tempo?
De modo que, creiam, lhe respondi:
«Sou bem capaz de voltar. Nunca se sabe.»
«E a mulher e os filhos, também vieram?»
Repentinamente, a angústia que eu vinha sentido tornou-se-me insuportável. Acabava de perceber que, como num romance de Kafka, esta conversa podia prolongar-se por toda a eternidade, expondo-me, em cada instante, à possibilidade de entrar em contradição, de alguma incongruência, de falhas várias. Não é possível manter-se indefinidamente uma personagem sobre quem se não sabia rigorosamente nada um instante antes de se abrir a boca.
E, nesta angústia, tomei uma decisão porventura ainda mais absurda. Rematei:
«Ah! Peço-lhe desculpa, mas deve haver uma confusão. É perfeitamente compreensível, porque conheço um senhor parecido consigo, que esteve em Macau. Além disso também me chamo Humberto! Mas não tenho mulher nem filhos. E o senhor não é quem eu pensava. Não se chama... aaaah... Erasmo, pois não? Logo vi. Olhe, muito boa noite, e desculpe o equívoco»

Voltei-lhe costas e desapareci. Sentindo-me muito, muito, muito esquisito.
 

terça-feira, junho 12, 2012

hoje é assim

Primeiro, os dentes.
São sempre os dentes os primeiros. Chama-se pedra, chama-se cáries, chama-se tártaro.
As rugas, como teias. Não, não como teias: como fissuras que se abrem num solo seco.
Ombros que decaem. Feições que decaem. O universo que decai a partir de um corpo.
Há um joelho que principia a estalar. Se ao menos não doesse, mas dói. Ou se se limitasse a doer, se unicamente doesse, mas não: desfaz-se. É o osso que se transforma em caspa, até que um dia não exista joelho, o corpo procure erguer-se de uma cama e as pernas desabem e se acumulem no chão como um monte de roupa velha.
Caem pêlos. Caem ilusões. Os olhos não têm pontaria.
Sente-se fome de momentos de alegria, mas têm de ser breves, não vá o coração insuportá-los. E a verdade é que a menor alegria se sente sobretudo como arritmia.
A gravidade torna-se um problema grave.

Preferia coleccionar neste ecrã tudo o que ainda me faz feliz. Mas receio que os dedos não consigam... chegar... às teclas..........

segunda-feira, junho 11, 2012

WAYNE, MIRÓ, BARNEY

Sou um amigo dos animais. Sempre fui um grato servo de sucessivos cães, o último dos quais, saudoso Dunga, me fugia regularmente, como se me desafiasse para que eu passasse noites, ao frio, procurando reencontrá-lo.

A partir de certa altura, os cães foram proscritos no reino da Dinamarca. Uma casa grande mas confusa, horários desajustados, miúdos em diferentes fases de rebeldia. Encontrei um cão, tentei trazê-lo comigo, mas não foi aceite. Ficou bem, graças a Deus, mas noutro lado. O meu filho achou um gatinho, queríamos adoptá-lo, mas não tivemos sorte - o gato ficaria muito tempo só, no quintal fugia, dentro de casa, rasgando cortinados ou toalhas, nem pensar. Também ficou bem, graças a Deus, mas noutro lado.

Certo dia, apareceu-me um cachorro em casa. Literalmente. No quintal, para onde algum monstro, ansioso por dele se libertar, o lançou estupidamente. Acordei, saía de casa, ouvi ganir, não liguei, pisei cocó. E, olhando para o canto, apercebi-me daquele piratinha, branco com manchas castanhas, uma pala castanha em redor do olho esquerdo. É um animal lindíssimo, que já teve três nomes e suscitou acesas discussões. Começou por ser Wayne. Propus Miró - o meu filho vetou. Concordámos com Barney.

E todos o aceitam bem. Ninguém tem coragem de o mandar embora. Ocupou a garagem. Assinala o seu território com urina e cocós particularmente mal-cheirosos. Rói, estraga e crava o dente fininho como uma agulha, ou uma fieira de agulhas, na carne tenra. Daisy chora. Dudu enerva-se. Enervamo-nos todos - ou seja, está perfeitamente integrado. É um de nós.

sábado, junho 09, 2012

DEGRADAÇÃO DA ESPÉCIE

Numa conferência, lembro-me de ter ouvido o extraodinário João Lemos dizer, uma vez, que uma das razões essenciais para o salto na espécie humana, para além das mais divulgadas - erecção [salvo seja!], polegar oponível, ou seja, na formulação simplória e medíocre, «dialéctica pé-mão-cérebro» - se deveu à alimentação. Os primeiros hominídeos comiam ameijoas. Comiam certo tipo de peixe. Ómega: ómega é uma substância sobre a qual não me apetece (e não sou capaz) de dar informação acrescida, porque não estou para pesquisar. Mas a maioria do peixe possui "ómega", e isso terá sido decisivo no desenvolvimento cerebral, no desenvolvimento da inteligência, na evolução da espécie.

Algo de assustador me tem ameaçado nesta hipótese.
Preciso de dizer tudo?
Se a dieta foi essencial para o progresso da humanidade, não será a actual "dieta" dos adolescentes decisiva para a regressão da espécie? Para a decadência da humanidade? Em direcção ao fim da inteligência?
Fim do peixe. Fim de qualquer refeição sofisticada. MacDonald's, ou seja, fim de talheres - e, portanto, também uma interrupção física no desenvolvimento da dialéctica "mão-cérebro"? Muita carne? Demasiada gordura e ausência de ómega?

Pensem nisso. Alguém tem de pensar nisso. Eu prefiro não pensar nisso...
 

terça-feira, junho 05, 2012

A SELECÇÃO DE TODOS OS PORTUGUESES O RAIO QUE OS PARTA

Eu gosto de Portugal e dos portugueses. Sinceramente. Muita vez. Mas, por outro lado, os portugueses irritam-me. Sempre ou quase sempre.
Na derrota, mostram-se frequentemente admiráveis. É na esperança que os considero mais insuportáveis. Entendam-me: nada tenho de pessoal contra a Esperança, cunhada de um amigo meu. Nem contra a esperança como forma de expectativa positiva em relação ao futuro. É a esperança como forma de histeria e de patriotismo que me incomoda. A esperança como rasgo colectivo, em torno de uma «aposta no futuro» [para empregar as medíocres palavras do Presidente da República], a esperança como apoio patriótico à selecção portuguesa; a esperança na forma de um menino que deve ser um aluno exemplar, lendo, aos jogadores, aquele texto sobre o seu desejo de vir a «ser médico», mas só ficar em Portugal se «Portugal valer a pena», e patati patatá, porque cabe aos jogadores mostrar que Portugal vale a pena, somos um país de gente honesta e trabalhadora. Patati patatá.

É por isso que me encanta uma fotografia que recentemente vi.
Entre varandas onde se exibe a bandeira portuguesa, no exuberante apoio à divina selecção «de todos nós», está uma camisola dependurada de uma janela. Com estes dizeres:
«Quero que se foda a selecção. Eu estou desempregado!»

É isto.