segunda-feira, dezembro 22, 2014

JÁ NADA É COMO ERA NO NATAL


     Atrás de um balcão quadrado, que o cercava por todos os lados, o homem que embrulhava os objectos trazidos pelos clientes das inúmeras lojas do centro comercial era um tipo de certa idade, mãos levemente trementes, movimentos vagarosos, como se estivesse a provocar-nos; o seu bigode branco, amarelecido pela nicotina, sugeria uma severidade a que a sua simpatia e timidez não correspondiam. No momento havia poucas pessoas. Mas era época de Natal. A afluência de multidões encantadas por cânticos não tardaria. Talvez o homem pudesse apressar-se, pensei; talvez estivesse a fruir o facto de sermos por enquanto poucos, para se dedicar com tempo a nós: mais atenção e carinho a cada um. Mas os seus dedos não tinham virtuosismo, nem habilidade, o papel dobrava-se hirtamente sobre os pacotes que lhe entregávamos, a fita demorava infinidades a cruzar-se num laço final. Pressentia-se mais surpresa do que impaciência entre os que esperavam. Cruzavam-se olhares de espanto, sem qualquer ironia. Eu trazia uma garrafa de vinho do porto. Uma angústia principiou a concentrar-se. Mas uma angústia que não eliminava de todo certa curiosidade: O gajo vai conseguir embrulhar uma garrafa? Quando chegou a minha vez, perguntei, precisamente:

     «Diria que uma garrafa é embrulhável?»

     E ele respondeu, como perante um desafio infantil,

     «Vamos lá a ver o que se pode fazer», rindo-se pelo nariz.

     Observei, numa aflição que o homem não partilhava, o papel vermelho sendo mal rasgado no suporte, a garrafa – a minha garrafa, ou melhor, a prenda que eu escolhera para o meu primo – tombar com um ruído de vidro sobre a mesa, os dedos inábeis reiniciar sucessivas tentativas de a cobrir com um papel que, nas suas mãos, se tornava demasiado duro, como uma lâmina colorida. A operação demorou muito tempo. Pediu-me que pressionasse a fita com um dedo de forma a poder executar um laço. E ao fim de uns vinte a trinta minutos fui-me embora, remoendo o meu espanto, com um embrulho pouco uniforme, com aberturas imorais, como uma mulher que, entre os botões da camisa oferece ostensivos convites para se olhar (na verdade, sejamos justos: mais com a imaginação do que com os olhos…)   
     Feliz Natal.
 

quinta-feira, dezembro 11, 2014

e afinal o que é o tempo?



só tenho dúvidas em relação ao presente: como o passado não existe e o futuro ainda não existe, posso reinventá-los como bem entender. Mas reinventar o presente é mais complicado: a realidade resiste-me muito.

terça-feira, dezembro 09, 2014

PARADOXO, QUEM SABE?



O detective iniciava sempre a manhã de cada dia lendo uma página de um livro, que abria ao acaso, sobre pensamentos que nos aproximam de Deus. Era um livro estreito, de capa azul - e tinha na contracapa a inesperada fotografia da autora, uma velhinha com óculos de massa e carrapito. Lia em voz alta, atento, imbuía-se da mensagem do dia, e só depois partia para as suas investigações.
Nestas, como em tudo o mais na vida, permanecia o mais racional dos homens. Era um detective, que diabo!

terça-feira, novembro 25, 2014

SÓ ARES


Leio que, num artigo extenso, Mário Soares se insurge contra o aparato promovido para a detenção de Sócrates e contra a comunicação social. Afirma que os «democratas estão muito preocupados». Imagino o calibre dos democratas que andam preocupados. Seria a altura de se fazer uma averiguação às contas de outros pretéritos primeiros-ministros?

domingo, novembro 23, 2014

O SENTIMENTO ANTI-POLÍTICO


Ora muito bem.
Uma civilização incorpora certos benefícios de que se não pode abrir mão.
A higiene é um deles. A democracia, dir-se-á, outro.
A democracia tem uma base ideológica mínima. Assentes nessa base, divergimos, discutimos, argumentamos, optamos, votamos. Mas a base, avisam-nos eles, não se discute.

Dessa base mínima faz parte o respeito pela política e pelos políticos.
Quando grassa um generalizado «sentimento anti-político», devemos combatê-lo. Insistem eles. O «sentimento anti-político» é uma espécie de pecado capital da democracia. Aí principiam todos os populismos; aí se entronca a pior demagogia: a História mostra-nos consequências possíveis e quem sabe se cada vez mais prováveis.

Os Lellos e os Coutos dos Santos desta vida propuseram a reposição da malfadada subvenção vitalícia dos senhores que hajam passado pelo parlamento.
Os PS e os PSD deste mundo preparavam-se para se unir neste ultraje aos portugueses.
Entretanto, o Sr. José Sócrates acaba detido para averiguações. Assumo a presunção de inocência: mas não posso ignorar que alguma coisa há-de estar, no mínimo, embrulhada no passado deste homem.

Eu sei que o «sentimento anti-político» é injusto. Eu sei que a democracia é um bem precioso. Eu sei que as pessoas que se dedicam à causa da política não são todas iguais. Mas, caramba, então não sejam todos tão iguais. Caramba, criem mecanismos para que se não confundam todos. Bolas, afastem-se dos arrivistas, não tomem chá com eles, nem imperiais; sobretudo não lhes aprovem as propostas, não vão atrás de gente ruim: antes sós que mal acompanhados. Façam-nos sentirem-se mal no meio de vós.

A minha mãezinha dizia: «Se queres que te respeitem, tens de dar-te ao respeito.»

E nos limites da minha indignação, este é o texto mais justo que consigo.

segunda-feira, novembro 17, 2014

PSSST, OLHA EU AQUI À ESPERA





     Dizem-me que os blogues não estão na ordem do dia; que já se não usam; ora. Porquê?
     Por mim e para mim, o blogue é a ferramenta certa. Escrevo sobre o que quero. Vejo em ecrã o que estou a escrever. Actualizo-me rapidamente, publico em cima dos acontecimentos. E tenho leitores, que ainda por cima podem comunicar comigo.


     É verdade que algumas dessas qualidades são potenciais. De facto, já não tinha muitos leitores no "Kaostico". [De kaos e caústico: brilhante, não? Não sei se original, mas muito bom...]; como entrei por uma longa interrupção, suponho que acabei por perder os 2 ou 3 que me assistiam. Uma possibilidade é chamá-los através do "facebook", mas bolas! O meu amigo Carlos vem confidenciar-me que o "facebook" também já teve o seu boom: há dois ou três anos, diz-me ele. Agora são pessoas fechadas nos seus círculos.


     Eu vou-me afoitando nas novas tecnologias. Infelizmente, ao que parece, descobrindo-as quando já deixaram de ser novas.


     Se vierem espreitar o blogue, não deixem de prestar atenção às etiquetas. Perco muito tempo a inventá-las.

sexta-feira, novembro 14, 2014

MARISA & PIRES DE LIMA


     Há consensos no país. São tão raros, porém, que tendem a tornar-se absolutos e indiscutíveis.
     Um deles é Marisa. A fadista de quem, ao que ouvi, a própria Amália terá dito um dia: «Já tenho continuadora. Posso morrer descansada.»
     Amália lá morreu. Marisa foi, entretanto, agraciada fora. E diz-se que os portugueses amam de tal forma o que vem «do estrangeiro», que até os produtos nacionais são mais valorizados por nós quando fazem um desvio pelo «estrangeiro», para que os recebamos entre aplausos. Todos gostam de Marisa. Do seu fado, da sua voz rica e cheia. (Há adjectivos, próprios para a voz dos fadistas, estranhamente semelhantes aos que se empregam para o vinho.) Pois a voz de Marisa, envelhecida em casca de carvalho, nunca me entusiasmou. A personagem, muito menos.
     Não quero desmistificar - não tenho a menor razão para explicar o meu ruído, a dificuldade na adesão. Não tenho argumentos.
     Certas inexplicáveis antipatias são mais fortes do que as antipatias razoáveis e sensatas.

     Já agora, o contrário.
     A prestação de Pires de Lima gerou outro consenso: estou agora a ouvir, lá do fundo, uma colega que sublinha o descrédito em que o ministro caiu. Todos concordam no ridículo. No despropósito. A assembleia é uma igreja. [Ahahaha.] Um lugar de reverência. [Ahahahaha.] Discordo. Não sei argumentar: Pires de Lima tornou-se-me simpático e apreciável.

quarta-feira, novembro 12, 2014

RESSURREIÇÃO





     Entre o momento em que escrevi aqui o meu último "post" e o dia de hoje, em que escrevo, anos volvidos, um novo "último post", a vida veio sendo multiplamente vivida. Oh, sim, se foi: como um salmão meio doido lutei contra a corrente; como uma tartaruga tímida e temente esperei, sob a carapaça, manter-me intacto contra umas aves predadoras que lançavam, lá do alto, pedras para me romper; como um aguçado ouriço, deixei-me estar de modo a que o movimento dos outros sobre mim os aleijasse - a eles; como uma raposa matreira andei farejando odores de alegria e de felicidade; perdi coisas e agarrei-me, com unhas e dentes, ao que sempre me valeu a pena. Converti-me a isto ou àquilo, voltei costas a manias e obsessões. Depois de tudo, tudo, tudo, não só sobrevivi - o que já seria muito -, mas renasci. Ao longo da travessia mantive incólume o sonho. Trouxe-o sempre comigo. Protegido sob uma disparatada fé na possibilidade de o vir a realizar. «Disparatada»!? Man! Me aguardem!