quinta-feira, setembro 28, 2006

UMAS FÉRIAS NA PRAIA

Embora eu esteja muito, muito mas muito longe de consentir que me confundam com um fanático da praia, lembro-me de que me deixara convencer (arrastar, enfim) para uma semana de férias numa terreola de pescadores. Por causa, obviamente, da... praia!
Tinham-se unido vários grupos nessa grotesca excursão: a) eu e a minha esposa, casados de fresco e que insistíamos, vá-se lá perceber porquê, em fazer daquela semana uma segunda lua-de-mel; b) os Fonsecas, pais e filha - uma daquelas meninas irritantes, demasiado sérias e sábias, que, quando discutem com os adultos, o fazem esgrimindo argumentos imbatíveis, e que escrevem poesia - e, c) os Guimarães, um pai e uma mãe mais duas crianças - um menino gordo que era uma fonte permanente de agitação e ruído e um menino enfezado e triste, como se o primeiro se alimentasse da energia do outro...
Estvámos todos na mesma pensão, a «Pensão Alegria», repartidos por três quartos. Por que me deixara eu convencer (ou arrastar, enfim) para uma férias desta natureza surrealista, já não recordo (ou fiz por esquecer, para não me odiar). Devia estar apaixonado: tão apaixonado que, se calhar, nem ouvira bem o projecto quando a minha fresca esposa mo expusera. Aceitara sem perceber todos os pormenores ou todas as implicações!

O primeiro dia de praia, começou por ser um dia de chuva imensa. Imparável. Africana.
Tínhamos acordado cedíssimo (porventura para escapar aos Fonseca e aos Guimarães) e arrancado animadamente, ou quase animadamente, em direcção à praia - eu carregando guarda-sol, toalhas, cestos, chapéus e uma espécie de frigorífico portátil, de que, aliás, sempre troçara como o cúmulo da saloíce, quando o via à responsabilidade de outras pessoas... - mas, a meio caminho, a chuvada desabara, inclemente, pérfida, implacável. Africana.
Regressámos precipitadamente à pensão, evitando fazer barulho para não atrairmos a atenção dos Fonseca e dos Guimarães - apesar de os meus chinelos de praia, encharcadíssimos, emitirem um enervante «fuenc, fuenc» -, pousámos a tralha no quarto e preparámo-nos para o almoço, como uma espécie de compensação que nos oferecíamos, apesar de nem ainda onze horas serem...

Na pensão, porém, nesse dia o almoço resumia-se a um prato único: cozido!

Eu não sei se a minha leitora (ou as minhas duas leitoras, ao que parece!) nutrem pelo chamado cozido à portuguesa o mesmo asco que eu. Sim, na altura eu estaria completamente apaixonado - ou não iria passar uma semana na praia numa pensão com a família Fonseca e a família Guimarães em quartos próximos - mas, se podemos dizer que até as mais desenfreadas paixões têm um limite, o meu limite era o cozido à portuguesa.

Fomos, pois, enfrentando mais um pedaço de chuva, até ao restaurante manhoso ali da frente.
Mas ali à frente não era bem tão «ali à frente» como eu julgara. E, sobretudo à chuva, ainda de chinelos e de camiseta florida, o «ali à frente» tornara-se num caminho horrendo, imenso, desabrigado...

Para o restaurante, entrava-se, por um portão verde, para uma espécie de quintal com um alpendre confortável. Era engraçado! Romântico. Delicioso.
Ali estávamos, portanto, já no quintal, protegidos sob o abençoado alpendre, quando, que susto!, reparámos numa figurinha que transpunha, por sua vez, o portão da entrada.
Era a menina Fonseca. A sábia-junior. Lá vinha a chatinha, carregando duas enciclopédias, já muito molhadas, com o cartão das capas a desfazer-se. Vinha compenetrada, sem esboçar um sorriso de cumprimento como, aliás, nunca fazia.
- Os meus pais viram-vos vir em direcção ao restaurante. Querem que eu almoce convosco porque têm de fazer não sei quê...
Eu sei o que os Fonseca queriam fazer - no quarto, num dia de chuva, a sós, sem a menina sábia e chata a atrapalhar.
Conformava-me. Fiz-lhe até uma espécie de vaga e breve carícia nos cabelos molhados.
Nessa altura, do outro lado do portão, a senhora Guimarães, sem chegar a abri-lo, passava o menino gordo por cima e dava-lhe instruções no sentido de se dirigir a nós. O enfezadinho vinha depois.
- Mas quem é que esta gente pensa que nós somos? - sussurrei eu à minha mulher. - Os baby-sitters? Uma agência de dar almoços à criançada?
A Guimarães gritava-nos de lá qualquer coisa que não entendíamos. E ia-se embora.
- Estou pior que estragado! - vociferei.
- Deixa lá - sossegou-me a minha mulher. - O Paulinho e o Frederico (o gordo e o enfezado) já almoçaram, com certeza, comem sempre muito cedo. Vêm só para brincar com a Mariana. Ficam aqui a brincar enquanto nós vamos lá para dentro, não fiques assim...
- Não, não - intrometeu-se rapidamente o Paulinho gordo -, nós não almoçámos não, eu tou cheio de fome...!

sexta-feira, setembro 01, 2006

ANJO GORDO

Azael sentia-se infeliz - o que é um sentimento humano.
E com um princípio de ressentimento azul, que tenderia a provocar chispas de raiva avermelhada e, mais tarde, poderia abrir janelas a um ódio púrpura - tudo sentimentos humanos que, quando penentram em almas angélicas, as alimentam de uma força que nem os homens terão alguma vez experimentado.
Azael, o anjo, não podia compreender por que Deus o teria concebido como um «anjo gordo». Os anjos são puro espírito. Não têm carne. Os seus corpos espirituais, etéreos, são de uma elegância perfeita, luminosa, leve, no limiar da translucidez. Que sentido faz um anjo gordo!? Um anjo gordo para quê??? Que diabo pensava Deus - passe a expressão -, que tinha Deus na sua mente omnisciente quando o concebera e criara assim?

Por um estranho e perverso efeito, apesar de ser todo espírito, como os demais, essa sua espiritualidade gorda assumia algumas das características da gordura física: lentidão, cansaço, vergonha de si.
Sentou-se sobre uma pedra.
Gostaria de ver Deus. Não de o enfrentar - não teria coragem para se rebelar, bastava a trágica história de Lúcifer para o dissuadir. Mas perguntar-lhe. Porquê, Meu Deus? Que querias tu provar? Para que te sirvo assim?

Viu passar um menino gordo. E, por um instante, pareceu-lhe que compreendia a sua missão, a sua qualquer coisa. Não? Por um instante pensou que talvez se tratasse de o aproximar de um certo grupo de seres humanos - complexados, doentes, tristes - e de lhes mostrar que até entre os anjos pode haver gordos, que o aspecto não tem qualquer importância, que...
Em suma, talvez Deus o tivesse criado por uma intenção «politicamente correcta».

E pôs-se de pé. Diante do menino atónito. Em toda a extensão das suas asas e da sua gordura descomunal.
E sorriu ao menino. Luminosamente.
E a tristeza passava-lhe, agora que se imbuía da sua missão.
Afinal.

Até que o menino, o próprio menino, ele próprio gordo, exclamou, de dedo humilhantemente apontado:
- Ena pá! Um gordo com asas!

E, então, a irremediável tristeza de Azael regressou por inteiro.
E o anjo gordo sentou-se de novo sobre a pedra.
E suspirou.