quarta-feira, agosto 30, 2006

HISTÓRIA BREVE DOS VÍCIOS DE SIMÕES

O Simões, coitado, era, aos trinta anos de idade, o que se chama um virgem: mas virgem de corpo e alma, e virgem em relação a praticamente tudo o que prenuncie prazer. O Simões não tinha vícios: não fumava, não bebia, não praticava sexo; não tomava café, porque temia as palpitações e as insónias; não sabia conduzir nem sabia nadar; nunca andara de bicileta; de moto, muito menos; não amava, nunca se apaixonara; é certo que trabalhava muito: o trabalho equivalia, no Simões, a quase um vício. Era, talvez, o que disso mais se aproximava.

O ponto é que nem aos trinta, nem aos quarenta, talvez em idade nenhuma se tem a vida completamente fechada, inteiramente imune a surpresas.
E, como a prová-lo, um dia, o Simões apaixonou-se.
Ou seja: dera-lhe uma espécie de explosão epilética em face de uma mulher de cinquenta e três anos mas com aspecto de menina, aspecto esse mantido, aliás, pelo aparelho «teen-ager» que usava nos dentes e pelas camisolinhas que lhe revelavam um belo umbigo num estômago que ela se esforçava por encolher.
A mulher, Alda Bobone, tinha rugas no rosto - que o Simões, de resto, adorava: eram as rugas mais belas que ele já vira, em todos os pontos certos, num subtil jogo de ramificações, numa maravilhosa teia que lhe fazia lembrar relâmpagos riscando o céu numa noite de trovoada.

Como o Simões nunca estivera antes apaixonado, tornou-se demasiado óbvio: suspirava, revirava os olhos, palidejava quando a via. Punha um ar de sofrimento, como se estivesse com os sapatos apertados ou dor de dentes. Não dormia. O rosto ia-se-lhe escavando até se fixar nos contornos dramáticos da caveira. Não comia. As calças principiavam a cair-lhe, apertava o cinto, tornava-se de uma magreza neo-Gótica.

Alda Bobone percebeu rapidamente que aquele jovem com ar vagamente de poeta começara a desfazer-se por causa dela. E comportou-se como se lhe tivesse saído a taluda, e com razão: aos cinquenta e três anos, ainda despertava paixões...!
Nunca os seus requebros foram tão ostensivos, os seus decotes tão profundos, o aparelho nos dentes tão faiscante, nunca o seu modo de se sentar, cruzando a perna, destapando a coxa, fora tão sensual.
Ao fim de umas curtas semanas durante as quais ensaiou todos os passos da sua dança de sedução, e não querendo prolongar essa fase, não fosse o jovem, cada dia mais aflito, agonizar de vez, dona Alda passou ao ataque. Num só dia apanhou-o a sós, beijou-o como se lhe sugasse a alma, desencadeando-lhe um dos seus piores ataques de asma, e levou-o dali para a cama, ainda com a respiração descontrolada.

Nesse único dia, Simões somou, ao tenebroso vício da paixão, dois novos vícios: em primeiro lugar, o sexo. Não precisou de se esforçar, porque dona Alda fazia tudo praticamente sozinha: ela tratou dos preliminares, pôs-se-lhe debaixo, pôs-se-lhe por cima, comprimindo-o na sua celulite, gemeu, arfou, gritou. Ora bem. Em segundo lugar, o tabaco. Porque, inexperiente como era, virgem como fora sempre, não tendo do sexo senão as imagens e os clichês dos filmes, Simões julgava que fazia parte do próprio acto concluí-lo com umas passas num cigarro, o corpo nu enrolado num lençol, enquanto lançava, para o ar, sopros de fumo e algumas reflexões vagamente filosóficas.

Dona Alda era incansável. Queria mais, queria sempre, todos os dias, se não a todas as horas. E o Simões, que no início da paixão parecera rejubilar, ganhar novas cores e uma nova vitalidade, depressa retomou a marcha para a decadência física, para a magreza, para o ar tenebroso e neo-Gótico.

E, principalmente, fumava muito. Fumava de todas as vezes que fazia sexo. Entretanto, descobriu que dona Alda era casada com um certo engenheiro Bobone, que o procurava agora por todo o lado e lhe fazia esperas, com uma machadinha escondida no bolso. Simões deu, pois, em fugir. E em fumar cada vez mais. Fugia do marido dela, obviamente, mas também da mulher do marido. Já não fumava meramente como um ritual pós-coito, fumava, agora, para relembrar o sexo de que fugia, mas também para tentar esquecê-lo, ou simplesmente para se acalmar, ou fosse pelo que fosse.

A sua asma não melhorou. Pelo contrário. Quando não estava com um cigarro nos lábios, estava com uma bomba enfiada na boca, aspirando com um estertor moribundo.

Com trinta e dois anos, Simões morreu de complicações que eu, que não sou médico, não saberia descrever.

Várias hipóteses de moral seriam retiráveis deste conto, algumas talhadas para as campanhas anti-tabagistas.

A única que me apetece extrair, com a dor e a melancolia de quem tem de extrair um dente, é esta: Mais vale uma vida breve por causa de um vício, do que uma vida demorada sem vício nenhum.

terça-feira, agosto 22, 2006

O MITO DO OBSERVADOR INVISÍVEL

Nós, que nos ufanamos de ser do género «observador», gente perspicaz a quem nada falha, meticulosos sugadoiros do mundo em todos os seus aspectos, temos um pouco a noção (ou a mania) de que nunca somos observados: estamos do outro lado, como se fossemos de cristal; a nossa condição de pessoas que tudo vêem torna-nos, de certo modo, invisíveis.

Gosto de observar. Como aspirante a romancista (eterno e eternamente impublicado aspirante a romancista) tomo nota mental dos gestos e dos actos dos outros, sento-me numa mesa de café, meio encoberto por um jornal, oiço as conversas que me não dizem respeito, atento nas discussões, imagino histórias com que visto as pessoas que me passam ao lado, tornando-as personagens de futuros romances.

Observo, no comboio, os meninos prepotentes que fazem o que querem dos avós impotentes e indefesos: «Quero ir à janela! Com a janela aberta!», «Não, Quinzinho, não, não, é muito perigoso, olha lá, e se passa um comboio em sentido contrário...?», «Mas eu quero, eu quero, eu quero!!!», «Pronto, vá lá, só um bocadinho...»

Sei histórias dos carteiros, da porteira, da mulher-a-dias, do senhor que vende jornais no quiosque, dos vizinhos, dos bombeiros. De tentativas de suicídio ou de murros imprevistos, de cenas de ciúme e ódio; assisti por um triz à zanga da Elsa Raposo, à sua saída da casa do ex-namorado, cheia de malas, provocando um ajuntamento.

Tenho, na minha varanda, um posto privilegiado. Ao mínimo ruído de altercação, à noite, ao mínimo sinal de briga entre bêbedos, ao travar de uma ambulância que vem buscar alguém ao prédio da frente, assomo logo ao meu posto, seguro da minha invisibilidade, a coberto da escuridão.

Uma destas noites, precisamente, assomei atraído pelos gritos de uma velha prostituta que batia desapiedadamente num velho; partiu-lhe os óculos, partia-o todo, aos gritos de «Posso ser puta, mas pelo menos não sou tua mãe, que era pior!»

Na manhã seguinte, quando, por acaso, me cruzei com a mulher - eu a entrar para um café de onde ela saía -, rosnou-me, com uma agressividade que nunca lhe vira.
E já ela ia a dobrar a esquina, ainda lhe ouvi, obviamente para mim:
«E tu vais espreitar a tua prima lá da tua varanda, ó cabrão!»

Nunca me tinha falado antes. Fala-me, agora, sempre: e sempre com os mesmos modos desabridos, de quem me odeia, de quem me não perdoa o que eu vi nessa noite. Ela é que não perdoa o que eu vi, percebem? Porque ela sabe que a vi. Ela viu que eu vira tudo...

Foi, também, o fim de um mito: o do homem de cristal - o do observador invisível.

domingo, agosto 20, 2006

LITERATURA E MARKETING

Não me digam que a literatura não está tão sujeita ao marketing como todos os outros objectos compráveis. E não me digam que, no caso da literatura, não é isso que conta, não é isso o que mais importa...

E é realmente de literatura que falo, não simplesmente de livros, nem de escrita pimba, nem de escrita pop, nem de escrita light.

Se, por exemplo, não tivesse começado a ler «Em Busca do Tempo Perdido» já completamente rendido ao efeito mítico dessa obra imensa, escrita por um homossexual histérico e asmático (pode parecer insultuoso mas, se relerem, vão perceber que nenhum dos termos empregues tem necessariamente uma carga pejorativa), tocada por um halo que me impregnara antecipadamente, isto é, antes de o ter principiado a ler, se não me tivessem já criado essa espécie de fantasia em torno do autor, da personagem, da obra, da memória e do papel da memória, se o meu avô não me tivesse já descrito, abundante e deliciosamente, o célebre episódio da «madalena», eu teria ido ao encontro da obra, tê-la-ia deixado vir ao meu encontro, tê-la-ia deixado tornar-se, paulatinamente (e já tarde) a obra da minha vida?

Faço estas considerações a propósito de um conto longo (uma novela, no fundo) que Vasco Graça Moura escreveu propositadamente para ser comprado em conjunto com um certo número da revista «Visão» (por mais três euros e tal).

Pensam que se não se tratasse de Vasco Graça Moura, para já, esse intelectual encartado do nosso país, esse tradutor reconhecido e premiado, esse poeta cantado e recantado (e requintado... e, já agora, requentado...!), de quem apreciei anteriores escritos, o livro me teria sorrido?
Pensam que se não fosse aquela capa - em que, numa fotografia, Vasco Graça Moura, com um polo Lacoste azul celeste, nos sorri, diante da sua magnífica biblioteca, repousando o cotovelo sobre o degrau superior de um escadote para alcançar os livros das prateleiras superiores - eu me teria detido sobre o objecto? Pensam que uma fotografia do Vasco Graça Moura a lamber um sorvete, ou a acenar-nos, ou a passear um cão, ou a correr para um autocarro, teriam surtido o mesmo efeito, esse efeito quase sagrado da proximidade dos livros, do seu escritório (que imaginamos mais do que realmente vemos), do seu trabalho intelectual (que invejamos mais do que realmente admiramos)?

Finalmente, pensam que se o título não fosse «Duas mulheres em Novembro», evocando de imediato um romance do narrador com duas senhoras, em pleno Inverno, um pouco à maneira de David Mourão-Ferreira, eu teria tido tanta pressa de o comprar?

Mas o marketing é sempre ilusório.
Para que conste, não há qualquer triângulo amoroso: as «duas mulheres» do título são, simplesmente, duas mulheres que se encontram (em Novembro, obviamente) no consultório de um médico que não há modo de as atender, e conversam ao longo das páginas mais chatas que já li em dias de minha vida.
O Graça Moura é uma seca. É um pim pam pum.
E a biblioteca da fotografia, se calhar, é um logro. Como este livro. Pft!

sábado, agosto 19, 2006

DIÁLOGOS IMPRESSIONANTES

MINHA MÃE - Estás maluco? Já estou arrependida de te ter contado esta história.
EU (amuado) - E porquê?
MINHA MÃE - Porque dizes que vais pôr isso no teu blogue! Com nomes e tudo!
EU (digníssimo) - E vou! E vou mesmo! O meu blogue é um lugar de denúncia das falsas virtudes, etc. etc. Ninguém me cala...
MINHA MÃE - Pelo amor de Deus, não faças isso, ao menos generaliza, diz que «há pessoas que fazem isto e fazem aquilo...» Não digas que «Fulano faz»...
EU (cada vez mais emocionado com o poder do meu blogue) - Ná, ná, ná! Não estou à venda. Vai tudo escarrapachado para lá. E é já. O meu blogue é um lugar livre e independente... (Depois de uma hesitação)... até porque ninguém o lê...!

sexta-feira, agosto 11, 2006

PAIS, FILHOS & PSICÓLOGOS

Educar uma criança é difícil, mas mais fácil do que parece.
A primeira coisa a fazer, é não ligar aos psicólogos. Sobretudo, em Portugal, a pessoas como o Daniel Sampaio ou o Eduardo Sá. Ou o Pedro Strecht - em suma, aqueles que pontificam um pouco por toda a parte. Não é que nos enganem, coitados: eles não enganam ninguém. Basta ouvi-los durante cinco pacientes minutos para se perceber de imediato que não percebem nada destas coisas, que estão para ali a alinhar os mesmos chavões em que se revelam os perigos de uma teoria sem prática.

O que a prática me tem revelado, a mim que não sou psicólogo, é que não existem pais nem famílias que não sejam neuróticos; mais: que, na maior parte dos casos, quanto mais «politicamente correctos», quanto mais «consciencializados», quanto mais atentos e preocupados em agir by the book, isto é, de acordo com os manuais que ensinam os pais a ser pais, mais neuróticos são. (É preciso ser-se valentemente neurótico para se achar, por exemplo, que é possível viver a paternidade segundo os conselhos do senhor Daniel Sampaio).

Não quero que pensem que tenho a mania, ou que julgo saber do assunto mais do quem quer que seja; não quero que pensem que não cometo erros, nem sequer que penso que os não cometo. Cometo inúmeros. Alguns, incorrigíveis: estão-me na massa, na estrutura, no ADN, no que quiserem. Não tenho teorias, ou melhor, vou tentando compreender o que faço, tirando as minhas lições, procurando melhorar. É possível que esteja deformando e estragando o meu filho, que o esteja traumatizando, que lhe vá criando complexos e vícios vários. (Mas também não me preocupo mais do que a minha análise me convide a fazê-lo, porque verifiquei que a maioria dos «complexos» e dos «vícios» são uma invenção que tem rendido a uma certa psicologia...)
A minha aposta consiste simplesmente em confiar que tenho algumas coisas boas, que identifico e tento transmitir, tentando multiplicar as situações que o permitam; em reconhecer que tenho diversos e graves defeitos, cujo impacto menorizo quando posso; e, sobretudo, em esperar que a nossa relação viva e cresça, com bens e males, capaz de cuidar de si mesma, de constituir um rumo e um ritmo próprios, de acreditar em si. Isto não é uma receita. Não creio em receitas. É uma maneira de dizer que os filhos são resistentes: na maior parte dos casos, aprendem a superar o mal que lhes possamos fazer. Não é que isto me de-responsabilize. Nos de-responsabilize. É que se não acreditar nisto, mais vale não ter filhos - ou, então, pedir ao senhor Daniel Sampaio que os eduque por mim.

segunda-feira, agosto 07, 2006

FALAS DE AZUL

Devo ter induzido pessoas em erro com um velho «post» em que elogiava o hip-hop que se fazia em Portugal: pus uns quantos leitores (não muitos, mas isso porque não tenho muitos leitores) a pensar que eu seria um grande apreciador do género. Na verdade, não sou: tenho o hip-hop por uma música preguiçosa, mais cantada do que falada, e falada, ainda por cima, sempre quase da mesma forma (embora não com o mesmo conteúdo), com tiques e vícios de estilo por todo o lado. No entanto, surpreendiam-me algumas letras - algumas das tais «falas». Pelo arrojo, pelo português seguro que as sustentava, por uma capacidade admirável de tornar poético um quotidiano suburbano, pela, pasmem!, criatividade!

Mesmo em grupos desconhecidos parecia-me detectar essa estranha criatividade, esse inesperado domínio das palavras, essa expressiva familiaridade com o surrealismo.

Havia, por exemplo, nos «Morangos com Açúcar», uma música cujo nome desconheço, cantada ou falada por um desses grupos, que me obrigava a deter-me diante destas palavras:

«Falas de azul/ Esquece azul... etc, etc.»

Era bonito. Não sabíamos bem o que significava, nem o meu filho nem eu, mas gostávamos da estranha magia daquele «azul», e procurávamos interpretá-lo. Para o meu filho, tratava-se de alguém que «falava (vestida) de azul»: «Falas de azul». E, acrescentava ele, «alguém» que esquecia (o quê, que esquecia ela? - qualquer coisa), mas esquecia-se ainda e sempre vestida de azul: «Esqueces (de) azul»... (Admito que esta segunda parte me parece menos plausível, sobretudo porque eu não ouvia «esqueces» mas «esquece», no imperativo. Mas paciência: o meu filho tem onze anos).

Para mim, era antes com a metáfora que havia que se jogar. Alguém falava acerca de azul, porventura de um ideal, ou de amor, ou de um mundo perfeito, ou seja, de tudo aquilo a que aspiramos e que podemos representar sob essa cor que evoca o céu, o mar....! E, ironicamente, o cantor respondia-lhe, «Esquece azul», como quem diz, deixa-te disso, não vale a pena, não te incomodes, eu já não acredito nos teus sonhos nem nas tuas palavras...
As discussões que esta letra desencadeou, o que ela exigiu do nosso poder de argumentação, do nosso espírito, a dialéctica hermenêutica a que nos obrigou.

Tornámos a ouvir a música, numa destas noites, no rádio do carro; ouvimo-la com uma esforçadíssima atenção. Pois bem: não há ali azul nenhum. Nenhum. O que se diz é simplesmente «Falas disso» (soando como: «Falas dissú!»), «Esquece isso!» («Esquece issú!»).

O meu filho e eu rimo-nos do nosso equívoco. Mas pouco. Era um riso levemente amargo.

Ora bolas!