terça-feira, outubro 26, 2010

57 RAZÕES PARA PROVAR A VIDA COMO UM GOURMET

Nasci em 1957.
Dei por mim, nestes dias em que parece que uma maré de azar se abateu sobre o meu mundo, a perguntar se encontraria 57 razões para estar vivo: 57 bons motivos para que, mesmo desesperada, a vida contivesse ainda, em si, o estímulo de um brilhante projecto.
Eis o que achei:

1. As sextas-feiras: dia em que me perco do mundo: e o mundo me perde de vista: e ninguém sabe de mim;
2. pegar, uma noite, num dos volumes de Em Busca do Tempo Perdido (qualquer um, menos o II, que emprestei) e sentar-me, sob a luz pálida do candeeiro, folheando e ouvindo o ruído das páginas rijas a passar, enquanto me espreguiço nas palavras de Marcel, que me levam minuciosamente com elas; ler: uma frase, um parágrafo, um capítulo...
3. sair muito cedo de casa, conduzindo pela marginal a uma hora em que não há demasiados carros;
4. os olhos sobrevoando o Tejo, nessa hora em que o sol ainda é só um clarão a lutar;
5. a música que vou ouvindo, concretamente. Sobretudo agora, que descobri a rádio radar;
6. escrever um romance: sentar-me, cheio de ideias, diante do computador, e principiar a desenhá-las sob a forma de caracteres (neste momento não escrevo romance algum, mas hei-de fazê-lo de novo, em breve...);
7. certas aulas: não seguramente todas, mas algumas, muito especiais, em que me sinto voar diante dos olhares estupefactos dos meus alunos;
8. ter amigos: saber que os meus amigos são meus amigos, mesmo se os descuro;
9. o clube de cinema - mais ao princípio, um pouco menos agora, mas ainda;
10. o riso: em qualquer momento do dia ou da vida, o riso. Com um livro (raramente), num filme (raramente, porque já quase não posso ir ao cinema), com amigos (muitas vezes);
11. um copo de uísque, cheio de pedras de gelo; café forte, pela manhã (abatanado);
12. as variações em torno de Bach, por Glenn Gould;
13. Pink Floyd (há quanto tempo os não revisito?)
14. Lou Reed (Walking in the Dark Side);
15. ter blogues; escrever em blogues; descobrir que há quem me leia; multiplicar-me em heterónimos, em pseudónimos, em personagens;
16. conseguir estar absolutamente sozinho em casa;
17. sentir ainda tanto prazer na banda desenhada;
18. fazer uma banda desenhada a meias com o meu filho; juntarmos ideias, compormos os desenhos entre os dois;
19. saber que, quando me não zango com o meu filho, sou uma das poucas pessoas - se não a única - com o poder de o fazer torcer-se literalmente pelo chão, de tanto rir;
20. um abraço da minha filha; um beijo da minha filha; ouvi-la dizer, pronunciando mal: «Pai, ámo-te!»;
21. festas: bebida a correr, gargalhadas a correr, aquela euforia dos grupos em que ninguém se lembra de que, no dia seguinte, provavelmente, voltará ao serviço;
22. trabalhar numa profissão de que, por muito que me cilindrem, gosto muito: alunos que aprecio e me apreciam, colegas que aprecio e me apreciam, uma chefia com que me dou bem, bom ambiente, liberdade;
23. descobrir um livro que me interessa, numa livraria; pensar: «É caro!»; e, logo a seguir: «Que s'a lixe!»; pedir que mo embrulhem, como se fosse para oferecer, e sair rapidamente dali, com o embrulho debaixo do braço e uma agradável sensação de culpa;
24. acreditar que ainda não está tudo terminado para mim; que ainda tenho duas ou três, talvez quatro coisas fundamentais para fazer na vida;
25. saber que vou reencontrar-me com o meu primo: cá, ou lá longe, como ainda há pouco aconteceu. Recordarmos tudo, de fio a pavio, e rirmo-nos sempre por alguma coisa;
26. sonhar com viagens. Arrepender-me de não ter feito nada para as realizar. Estar certo de que, em breve, realizarei alguma;
27. não conhecer, precisamente, dois países que terei de conhecer, aqui mesmo ao lado: Itália, Grécia;
28. Paris. Saber que me espera. Que regressarei;
29. Nova Iorque: saber que estive lá, ainda que provavelmente não torne a ir tão longe;
30. gostar de escrever. Gostar do que escrevo (em geral). Gostar de escrever como escrevo;
31. ver a minha mãe melhorar, vagarosamente, no Hospital; beijá-la e tocar-lhe como já me não lembrava de fazer há muito;
32. trazer o meu irmão para almoçar em minha casa; sentir esta estranheza: Eu tenho um irmão!
33. olhar as horas no meu relógio com o rosto de Corto Maltese no mostrador e seu corpo ao longo da pulseira;
34. comprar t-shirts que as pessoas se espantam que eu seja capaz de usar: Incrível Hulk, Homem de Ferro, Homem-Aranha, Surfista Prateado;
35. lançar um fanzine com a minha amiga Ana Cristina: tanto, tanto, tanto trabalho para conseguir fazer sair dois magros números por ano: e tanto, tanto, tanto gozo;
36. concretamente, a história do Dancake, que me dá tanto prazer criar a meias com a Ana;
37. rever What's Eating Gilbert Grape?, de que nunca me fartarei;
38. as crónicas do Ricardo Araújo Pereira na Visão;
39. a rubrica do Nuno Markl, na Comercial;
40. O Chato, personagem incontornável de Os Contemporâneos;
41. Law and Order, na TV;
42. Lolita: tanto o livro de Nabokov, como o filme de Stanley Kubrick;
43. The Party, com o impagável/inapagável Peter Sellers;
44. aguardar o inverno com alguma ansiedade, por me permitir tornar a envergar o meu lindíssimo e estiloso sobretudo pêlo de camelo;
45. a filosofia: saber que tenho os livros de Pascal, Montaigne, Kierkegaard ou Nietzsche: lê-los por prazer, discutir com eles, regressar-lhes continuamente, nunca por razões de estudo ou dever de ofício;
46. ser ateu; ser amigo de (muitos) crentes (muito), poder admirar esteticamente a sua crença, mas não me sentir tentado: acreditar na liberdade que isso me confere;
47. ter nascido em Moçambique; ter a minha memória carregada de imagens e de sons. (Não de cheiros. Tenho pouca ou nula lembrança de cheiros: por que será?)
48. Mondigliani. Ter principiado por embirrar com ele, e acabar conquistado e rendido ao seu traço peculiar, deliciosamente imperfeito;
49. Velasquez: perder-me nas labirínticas e inesperadas inversões da sua pintura que o auto-retrata a si próprio no acto de retratar;
50. um livro de Umberto Eco, que me foi carinhosamente oferecido num Natal, e a cujas impressionantes imagens retorno: História do Feio;
51. já falei da banda desenhada, mas referia-me à banda desenhada em geral. Agora, em particular: os álbuns de Tintim: por tudo, absolutamente; principalmente As Jóias de Castafiore;
52. pequenos-almoços em grupo: coscuvilhice, pequena política, humor;
53. óculos de sol: ainda não tenho os Ray-Ban derradeiros, os que contentarão definitivamente e porão termo a todas as buscas: mas, é claro, eles hão-de chegar;
54. ainda haver este calibre e esta intensidade de amor num homem de 53 anos;
55. revistas e jornais estrangeiros;
56. uma t-shirt com um vampiro estampado: brilha no escuro e foi-me oferecido por um grupo de amigas, no meu aniversário;
57. ter, na carteira, um cartão-brinde que me permitirá gastar uma certa quantia (que, por enquanto, desconheço), em roupa, no Corte Ingles; ter sido oferecido por um outro grupo de amigas, no meu aniversário;

e uma, suplementar: sinceramente, sinceramente: ter cinquenta e sete boas razões para me sentir de bem com a vida. Às vezes, infelizmente, não sinto. Pois que esta lista me ajude a perceber por que vale a pena viver.

A quem me seguiu até aqui, numa lista tão pessoal e, por vezes, tão pueril, obrigado pela paciência.
Boa noite.

sábado, outubro 23, 2010

RUPTURA E REENCONTRO DE UM BMW E DE UM MERCEDES

No texto anterior, precipitei-me. Sim, sim, sim, não digam que não, sei perfeitamente que o fiz. Descaí-me, bolas! Insinuei que o Mendes e o Baptista tiveram uma zanga tremenda! Vocês lembram-se do Mendes e do Baptista, não se lembram? E agora, tenho de falar acerca da zanga. Recebi comentários, não, mentira, comentários não. Já viram que tenho até publicado, em alguns posts, os dois comentários que, por engano, me enviam em duplicado, para parecer que me comentam muito. Ora esta última história foi totalmente incomentada. Mas recebi, sei cá, aerogramas, mails, telefonemas, gente a perguntar-me pelo Mendes e pelo Baptista.

Ora, a bem dizer, a «razão» da zanga, o pomo da discórdia, o busílis da questão, passou-me. E eles próprios também já deviam ter-se esquecido. O que ficara fora o sentimento de afronta, a rotina da ofensa, o gesto, a mímica, o desencontro. Nunca mais estiveram juntos no mesmo espaço. E nunca mais os seus carros ficaram estacionados na mesma zona - porque, como eles continuaram a frequentar, até por dever de ofício, os mesmos lugares, quando um deles chegava, partia o outro: e, portanto, aparecia um dos carros, por exemplo o BMW vermelho do Mendes, zarpava o outro em menos de três segundos, digamos: o Mercedes azulão do Baptista.

Um dia, porém, ia eu entrar na Casa do Povo, quando vejo, lado a lado, como namorados carinhosos, o BMW e o Mercedes. Fiquei varado. Num primeiro instante, confesso, quase me senti desapontado: como se um dos fundamentos do movimento do universo tivesse sido quebrado. Aquela zanga fazia parte do nosso mundo. Alguém conseguiria passar sem ela? Sem tê-la como clara, certa, estável?! Nunca mais um carro a chegar e o outro a partir? Depois, lentamente, uma semente de optimismo principiou a percutir-me o peito. E pensei: Tomar um copo, um dia, com os dois juntos: inesperado mas interessante, um impossível que poderia, contudo, vir a realizar-se...

Aos primeiros passos dados, reparei de imediato nos sapatos do Baptista. Daqueles antigos, cheios de arabescos. E nuns pés de meias aos quadrados, enfiados nesses sapatos. E numas pernas magras, em calça de fazenda - tudo isto surgindo sob o Mercedes azulão, como gato escondido com rabo de fora. A princípio, achei graça. Sorri-me para com os meus botões. Mas, logo a seguir, veio-me uma onda de indignação. O Baptista a esconder-se do Mendes, debaixo do próprio carro? Mas que diabo! Precisávamos de chegar a esse ponto? Que criancice. Que parvoíce. Aproximei-me, e não me contive:

«Ó Baptista, homem, parece-lhe que tem idade para essas meninices? Deixe-se disso! Se não quer ver o Mendes, meta-se mas é no carro e pisgue-se, caraças! Como sempre fez, aliás!»

E respondeu-me o outro, numa voz lúgubre e longínqua:

«Isso queria eu! O cabrão do Mercedes não pega, estou aqui há meia hora a ver se o amanho...»

sexta-feira, outubro 22, 2010

AGOSTINHO

O sr. Tavares tivera, toda a vida, um miserável carro de duas portas. (Aquilo a que os vendedores de automóveis habitualmente chamam «um 3 portas», contando absurdamente com a da bagageira...); tornara-se complicado albergar, num veículo tão minúsculo, uma família numerosa, com crianças de chorar, velhas de bengala, cães com línguas húmidas.

Por isso, no dia em que o sr. Tavares saiu do stand («o stander», dizia ele) na sua carrinha nova, cheia de portas, muito comprida, completamente negra, sentia-se feliz. Dispôs, naquele espaço enorme, a que não estavam habituados, as suas crianças, idosos e cães, e seguiram, ainda um pouco vagarosamente, a dar uma volta pela marginal...

Mas não bastava o passeio. Tinha de ir mostrar a carrinha ao amigo Agostinho! Chegou a pensar que Agostinho, muito adoentado, com graves problemas cardíacos, tão dependente das suas botijas de oxigénio, não só teria prazer em ver o comprido carro preto, como talvez lhe apetecesse passear - distrair-se, em suma...

O Agostinho gostou, efectivamente, de ver a Wolkswagen. Mas não lhe apetecia passear. Estava cansado, cansado. Não perdiam pela demora. Na próxima volta, contassem com ele. («Mas que coisa! Tão grande! É fantástico, de facto. E que confortável. Eu ia, ó Zé, mas olha, pá, tu desculpa, passei a noite aos gritos...»)

Os Tavares foram-se. O carro cruzou-se, à saída, com o Mendes e o Baptista (que, na altura, ainda se davam: passou-se tudo isto, portanto, antes da monumental zanga que os separaria para sempre...), o Mendes e o Baptista, dizia eu: dois empreiteiros que vinham saber de que obras, afinal, carecia a casa.

Abrindo a janela para cumprimentar, o sr. Tavares espantou-se um pouco de que os dois empreiteiros, olhando fixamente a carrinha negra, se descobrissem, e um dissesse para o outro:
«Olha! O Agostinho já foi!»

Mendes e Baptista, coitados, decidiram que iam ser discretos - já imaginavam a casa num alvoroço, a viúva chorando, os gatos-pingados sem mãos a medir. Não quiseram por isso bater à porta principal. Foram pelas traseiras. Tocaram sem alarde.
Bruscamente, o Mendes ouviu um grito do Baptista.
E sacudiu-o:
- Que foi, pá? Hein? Que é que te deu, homem? Estás branco, que é isso?

Agostinho, arrastando uma botija, abria-lhes tranquilamente a porta.

segunda-feira, outubro 18, 2010

UM GAJO FARTA-SE DESTE PAÍS

Hoje, não sei bem que escrever.
A vida está cinzenta; é fantástico como principio a ver a aura das pessoas: parece uma neblina triste que as acompanha. Uma neblina portátil.

Habituei-os a que, no meu blogue, neste meu blogue, preferia fazer rir do que fazer chorar. Eu não sei fazer chorar, nunca tive jeito para isso. Mesmo quando encenava a minha tristeza, tentando ganhar qualquer coisa com ela (por exemplo: o perdão dos pais perante um grande disparate meu...), havia sempre um pormenor esquecido que tornava a tristeza cómica.

Ora a minha tristeza é cada vez menos cómica. A tristeza do país não tem graça. A senhora que, no café, almoça um galão e um pastel de bacalhau, não tem a menor piada. O ministro quer rir à minha custa? À nossa custa? Ai ele é isso?! O Teixeira quer rir? Suas excelências apreciam uma ou duas boas gargalhadas??? Vão ao circo. Eu estou farto de ser o palhaço pobre.

Ainda por cima, mais pobre do que palhaço. E, pelos vistos, cada vez mais pobre!

terça-feira, outubro 05, 2010

O SENHOR QUE SE SEGUE

Não é segredo para ninguém que, porque português, porque professor do Ensino Secundário e porque homem trabalhador, odeio, com a energia máxima das minhas entranhas ideológicas, essa mediocridade política, o monstro da falsidade boçal e arrogante, que dá pelo nome de senhor engenheiro Sócrates. (Puah!).

Algo, porém, me atormenta a alma e me torna infeliz perante a possibilidade de que ele se vá embora.

E o que me deixa atormentado e infeliz em face da possibilidade de que um dia ele se vá embora é a hipótese de que o faça para ser substituído por... por...

Pelo senhor que foi marido de uma das Doce.

Poderia o país descer mais? Não há um fundo final para este descalabro? Um chão abaixo do qual já se não possa continuar a cair?