terça-feira, junho 13, 2006

A SAÍDA

Hans não conseguia deixar de olhar pela janela.
Passara os últimos dias olhando fixamente, cheio de fé, de uma fé irrealista que o tornava inapto para as tarefas da casa.
Os outros irritavam-se. Ada, sobretudo, enervava-se muito com a sua atitude:
- Tu não podes esperar que sejamos nós a fazer tudo. É injusto. Estamos juntos nesta situação, precisamos uns dos outros, precisamos de todos.
Clark, que, tacitamente, era visto pelo grupo como o líder, procurava acalmá-la:
- Ele está mal, Ada. Dá-lhe tempo. Deixa-o recompor-se. Foi o que sofreu mais de todos nós. Perdeu os pais, os filhos...
Ada chorava. Não de pena, mas de raiva, de uma raiva mesquinha contra Hans, e do orgulho ferido por Clark, que ela continuava amando secretamente.
- Quanto tempo lhe queres dar, Clark?
- Dá-lhe tempo, Ada, dá-lhe algum tempo. É só do que ele precisa...

Hans via claramente que, no exterior, tudo se recompunha. Não o dizia a ninguém. Mantinha segredo. Os outros ainda lhe agradeceriam, quando ele anunciasse: «Podemos sair, o mundo renasceu lá fora!»
Hans percebia perfeitamente que o cinzento começara a dar lentamente lugar a cores, que algumas flores brotavam do chão; pensava, comovido: «Há flores prontas a regressar à menor oportunidade, mesmo num mundo estragado. E que força! A força com que rompem o alcatrão, com que fendem as estradas...»

Um dia, Hans gritou.
Os outros aproximaram-se, a medo.
Mas o jovem ria-se. Apontava com o dedo pela janela. O mundo regenerara. Por completo. Estava pronto a recebê-los, reanimado, animado da sua eterna pujança.

- Que achas? -, perguntou Lake.
- Acho que ele enlouqueceu -, respondeu Ada.
- Também acho, infelizmente -, confirmou Clark. - A sua fé criou uma espécie de alucinação que, sob efeito das recordações, o faz ver o mundo lá fora como era antes.
- Ele quer sair. Podemos prendê-lo? -, interrogava-se Eva.
- Temos de o convencer -, experimentava Clark.
- Convencê-lo? -, troçava Ada. - Como se convence um louco?
- Temos de admitir outra hipótese -, arriscou Lap. Corou muito perante o silêncio atento que se fez em torno das suas palavras. Depois, nervosamente, com excesso de gestos, prosseguiu. - Temos de admitir a hipótese de que ele tenha razão. De que ele esteja a ver as coisas como elas de facto são, e nós não.
- Todos nós enganados? Loucos? E ele a percepcionar adequadamente? Mas porquê?
- Bem, o facto de ele ter passado tanto tempo à janela pode tê-lo tornado mais sensível para pequenas variações que nos escapam. Estamos demasiado habituados a esta falsa luz, que não sabemos até que ponto altera a nossa visão.
- Lap tem razão.
- Vais deixá-lo sair? A porta terá de se fechar imediatamente. E uma vez fechada, não a conseguiremos abrir senão ao fim de uma hora. E se nada mudou, como resistirá ele lá fora, sob a nuvem tóxica, durante uma hora? Queres usá-lo como cobaia, é isso?

Discutiram durante muito tempo. Com Hans e sem Hans. Para este, não havia dúvidas. Espantava-se de que não vissem tão claramente como ele o mundo renascido, mas o certo é que esse mundo o esperava. Não havia hesitação. Da sua parte, não havia a menor hesitação. E parecia lúcido: argumentava inteligentemente, um pouco excitado mas sem qualquer vestígio de delírio.

Estava à porta. Olhou para os seus companheiros um por um.
Tinha a certeza. Estava seguro. Sabia o que eles pensavam, lia-o nos rostos tensos, dramáticos. «E se o Hans não volta? E se o Hans morre?»
Uma vez saindo, não havia volta. A porta teria de ser imediatamente fechada nas suas costas, e não poderiam abri-la senão ao fim de uma hora. Se não tivesse razão, ao fim de uma hora iriam recolher o seu cadáver.
Tremeu. Não chegou a ser hesitação. Nem frio. Fora uma tremura nervosa.

A porta abriu-se. Hans saiu. A porta fechou-se nas suas costas.

terça-feira, junho 06, 2006

INCONSCIENTE E MÁ-FÉ

Sartre nunca gostou muito de Freud. À ideia de «inconsciente», respondia com a noção de uma consciência sem zonas obscuras. Não, argumentava ele, o sujeito é pura consciência, uma consciência total e completa, sem estrutura nem qualquer mecanismo ou forma «a priori»; é, afinal, um nada - aquele nada no sentido sartreano (néant), que a língua portuguesa nunca conseguiu traduzir satisfatoriamente.

Mas - perguntava-se-lhe -, se o sujeito é consciência, como pode ignorar tanto de si, dos seus impulsos mais recônditos, como pode haver actos que não é capaz de explicar, cujas razões desconhece ou deturpa?
Ah!, dizia ele, isso é por causa da má-fé.

A má-fé ganhou, com Sartre, foros de conceito filosófico. Tratava-se de pensar uma espécie de truque da consciência, uma capacidade de se enganar a si própria, sem realmente se enganar uma vez que, em última análise, não podia deixar de perceber o jogo com que se mascarava de si para si.
O sujeito conhece os seus impulsos, as suas intenções, as suas motivações: nada lhe é verdadeiramente inconsciente. Mas, eis o segredo, pode actuar como se não soubesse, ou como se não tivesse a certeza, ou como se aceitasse outra explicação ou outra hipótese, levando esse «como se», por vezes, ao extremo ponto de, não acreditando, quase acreditar ou, por momentos, acreditar de facto na sua ignorância.

O exemplo mais conhecido desta atitude da consciência, é-nos oferecido pelo próprio Sartre: a jovem que conversa, à mesa de um café ou de um restaurante, com alguém que intenta seduzi-la. O homem, num determinado momento, pousa a sua mão sobre a mão dela. E ela, que poderia retirar imediatamente a sua, chocada, ou recuar de algum modo, pelo contrário deixa-a estar abandonada sob o suave toque, o peso daqueles dedos, continuando porém a falar acerca de filosofia, ou de religião, ou de temas excelsos, como se não tivesse notado, ou como se não tivesse compreendido, ou não desse nenhuma significação especial ao gesto, ou como se acreditasse na inocência deste...! Como se o tema e a conversa o impregnassem de leveza, de inocência, o esvaziassem de toda a intenção amorosa e de toda a sensualidade.

Há muitos anos, um amigo meu, casado e bom rapaz, tinha sido convidado por uma colega, com quem, obviamente se dava muito bem, para jantar em casa dela. A sós. O pretexto era que se tratava de uma casa nova, para onde ela mudara recentemente e que lhe queria mostrar.
Quando hoje ele se lembra desta situação, tenta sempre acreditar que aceitou inocentemente, sem ler nada nas entrelinhas e achando normal que uma colega, uma quase-amiga, com quem se dava muito bem, o convidasse para jantar em casa dela. Tenta acreditar que era possível, e lhe foi possível, não achar estranho, nem ler no convite para jantar nenhum segundo convite.

Respondemos-lhe: «Não é possível tamanha inocência!»

Do ponto de vista de Sartre, toda a inocência é uma forma de má-fé.
Não garanto que isto supere Freud, que explique os actos mais ou melhor do que o inconsciente explicaria.
Não sei se, aliás, o «inconsciente» e a «má-fé» são contraditórios e, como tal, se excluem mutuamente.

Ambos me parecem fazer todo o sentido.