sábado, fevereiro 26, 2011

VASCULHANDO JORNAIS ANTIGOS

«Fernando Pessoa acusa Álvaro de Campos de Plágio.

«"Não há uma única linha do senhor engenheiro Álvaro de Campos", afirmou o poeta, editor e manga-de alpaca, entre dois copinhos, "que não tivesse sido inventada por mim."»

sexta-feira, fevereiro 18, 2011

O GUARDA-CHUVA NOVO

A minha amiga Zita ofereceu-me um guarda-chuva com um computador incorporado.
Bem. Não é verdade. Computador, computador talvez não tivesse. Mas quase: tão sofisticado, com um discreto botão para o suporte aumentar, outros botões para a armação abrir, à chuva, como certas flores abrem ao sol, etc.

O único problema reside em que eu sou uma espécie de troglodita. Não estou habituado à sofisticação. À porta do carro, não podendo entrar com o guarda-chuva aberto, tentando desesperadamente fechá-lo, não percebendo os botões, desafinando tudo, não me protegendo já com ele, mas não sendo capaz de o devolver ao seu estojo, apanhei, naqueles minutos terríveis, mais chuva do que em toda a minha vida - mais chuva, certamente, do que se estivesse sem guarda-chuva.

Não gostava de parecer ingrato. Zita, o guarda-chuva é muito bonito. Muito, muito bonito. Esteticamente, é das coisas mais interessantes que vi, ultimamente, no seu género...

segunda-feira, fevereiro 14, 2011

DESCARTES: UMA DEMOSNTRAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE DEUS

1. Duvido (de tudo, de seja o que for: existirão mesmo o chapéu que trago, a vela que vejo, o roupão que visto e sinto, ou poderá ser tudo uma ilusão?);
2. Duvidando, reconheço que de algo, pelo menos, não posso duvidar: de mim próprio, que duvido;
3. Portanto existo. Tal é indiscutível. (É o famoso «Penso, logo existo»);
4. Mas se a minha primeira certeza é uma dúvida, isso significa que sou imperfeito.
5. Ora: como sou capaz de reconhecer a minha imperfeição? Por comparação com uma ideia da perfeição.
6. Mas de onde provém a minha ideia de perfeição?
a) Não certamente do nada, porque do nada não provém coisa alguma.
b) Não se trata de uma ideia adquirida através dos sentidos: nunca tive a experiência de algo perfeito.
c) E também não pode ser uma ideia produzida por mim, que sou imperfeito: não seria capaz de gerar a ideia do que é melhor do que eu próprio.
7. Segue-se que a ideia de perfeito não pode senão ter sido criada pelo Ser Perfeito.
8. Possuo, pois, esta ideia, porque o Ser Perfeito ma imprimiu no espírito.
9. De onde se conclui que O Ser Perfeito existe: É Deus.

O que pergunto aos meus alunos, apresentando-lhes este raciocínio sob a forma aparente de uma demonstração inatacável, é se constitui, de facto, uma demonstração, ou um mero exercício de retórica.

E eles dizem-me: A partir do 4º ponto, não há praticamente um único ponto que não seja discutível. E, até, falacioso.

domingo, fevereiro 13, 2011

O LIXO

Vinham saindo da ópera.
Miró não a apreciara especialmente; a rapariga que tinha vindo de propósito dos Estados Unidos, precedida de uma fama que calava de antemão e de imediato todos os críticos, tinha grão na voz. «Não achaste, D'Annunzio?»
D'Annunzio, que fumava um cigarro, não parecia atento às suas palavras. As esposas riam-se, uns passos atrás, recordando um homem que não as largara, a noite inteira, do balcão, fixando-as, um binóculo de ópera em riste.
Aquela desatenção incomodou Miró.
«Não achaste que, para já, a mulher começa a envelhecer...? E depois, não era?, a voz, não reparaste...?»

Na noite escura, D'Annunzio encantara-se com outra coisa. Aproximou-se de um vulto.
«Chega aqui», disse ele a Miró.
Miró chegou-se. Era o caixote do lixo. Ao lado, um volume enorme, com pernas, talvez uma mesa, ou então...; Miró espremeu os olhos míopes contra a noite. Uma banheira? Antiga? Sim. Com pernas de leão.
«Anda cá», soprou D'Annunzio, excitadíssimo, descalçando as luvas brancas, pousando a cartola no chão. «Consegues? Pega aí desse lado. Se calhar. Força, força. Ó meninas, venham aqui dar uma ajuda».

Lou Salomé e Isadora Duncan vieram ver, rindo ainda muito. Dividiam a banheira por entre a força de todos.
«Mas para que queres tu isso?», perguntava-lhe Miró.
«Estás maluco?», irritou-se D'Annunzio. «Não fales, que ficas sem ar. Vá, vá, todos juntos. É linda, homem. É linda.»
«Aquele rapaz que vem ali talvez... humpf... nos possa ajudar... Olhe lá. Eh, chegue aqui!»
O rapaz, porém, escapuliu.
«Deve ter-se assustado com o nosso aspecto».
«Pois é, pois é. O certo é que amanhã de manhã vou tomar o banho de imersão mais maravilhoso de toda a minha vida. Vamos, força. Conjugados, um dois, três»