terça-feira, maio 22, 2007

A LIBERDADE DE PROIBIR QUE SE SEJA LIVRE DE FUMAR

Perante este poderoso e virtuoso tsunami que é a tentativa de liquidação dos fumadores, venho sentindo a necessidade de dizer uma, talvez duas coisas. Fá-lo-ei, ainda por cima, na posição imperdoável de traidor à minha classe de origem: a de não-fumador.

Fumar tornou-se, aos olhos moralistas e moralizadores do senso comum contemporâneo, num crime terrível, quase ao nível da pedofilia. De um momento para o outro, a sociedade passou a ver no acto de abrir um maço, puxar de um cigarro, levá-lo à boca, acendê-lo, uma espécie de degradação, misto de suicídio lento e de lento homicídio com alguma responsabilidade também na destruição do ambiente.

Fumar é visto como um acto sujo. Fisicamente sujo, porque se trata de contaminar os pulmões e o ar - e os dentes, e os dedos - mas também moralmente sujo, porque se trata de conformar-se ao vício. Multiplicam-se campanhas, ostentam-se fotografias de órgãos completamente destruídos, fala-se das doenças e, suprema humilhação, adverte-se, nos próprios maços, como se os fumadores o não soubessem ou pudessem esquecê-lo, que o tabaco torna impotente, mata, emporcalha o corpo e a alma.

Finalmente, proíbe-se que se fume: e os portugueses, sondados sobre a questão, acham bem; os portugueses gostariam, porventura, que se fosse mais longe; que os fumadores fossem impedidos de fumar em bares, em salões de fumo, em qualquer lado, em todo o lado...

A tirania espreita sob este ideal de um mundo politicamente correcto, perfeito, sem fumadores, nem touradas, nem circos, nem anedotas sobre Alentejanos, ou loiras, ou pretos; sem escolhas, nem risos, nem discordâncias. A mais tremenda das intolerâncias acoita-se, paradoxalmente, nesta pregação da «tolerância justa», que se poderia traduzir no seguinte lema: temos de ser tolerantes com todos aqueles sujeitos «diferentes» que venham enunciados na nossa cartilha - o que significa, ao mesmo tempo, banir e proscrever os «diferentes» errados, os que são capazes de apreciar (por exemplo) espectáculos bárbaros, ou de apreciar um charuto poluidor, ou os cínicos, ou os descrentes...

No meio de tudo, como não-fumador que não gosta que lhe fumem para ao rosto, é certo, e não se cala quando o cigarro incomoda, por exemplo se almoço num restaurante, mas não aceita que queiram proibir o cigarro como possibilidade, como direito, como escolha, apetece-me recordar que o acto de fumar é um acto cultural e mítico, imbuído de simbolismo e de estilo; que pode ser um acto de uma beleza e de uma sensualidade extremas, que a memória do cinema transporta desde sempre; que não é possível evocarmos determinadas imagens ou pessoas sem que se lhes associe o cigarro, de Bogart a Brando, de Malraux a Guevara, de Lucky Luke a Gainsbourg, passando pela Dietrich ou pela Simone de Beauvoir; que foi - e é - tantas vezes um gesto de rebeldia e provocação, que o foi sempre de emancipação, e de aproximação, de comunicação, sedução; ou, como se tudo não bastasse, que é um prazer, um gosto - antes de ser um vício, ou para além de o ser. Ou: ao mesmo tempo que o é.

Tudo isto se paga? Sem dúvida. Em dinheiro, em saúde, em rupturas. Não sei se compensará. Para alguns, teimosos resistentes, fumadores ferrenhos, parece-me óbvio que sim. Sei, como não-fumador assumido, contudo - e estou perfeitamente consciente de cada uma das palavras que passarei a escrever -, que um mundo do qual o tabaco fosse inteiramente banido, juntamente com a elegância do gesto de puxar de um cigarro, ou o de bater com ele sobre o maço, como que para o endireitar - coisa que já não vejo fazer tão frequentemente como via na minha infância -, ou de o acender com o tremeluzir amarelo-azul da chama de um isqueiro, seria um mundo mais pobre, mais seco, mais triste e mais despojado em termos simbólicos, míticos, culturais.
Sei que um mundo em que proibissem Humphrey Bogart de fumar - ou me proibissem de o evocar mergulhado no fumo ténue do seu eterno cigarro - seria um mundo menos rico. E menos livre.

terça-feira, maio 15, 2007

AFORISMOS

O melhor critério para se identificar um paranóico: a coerência da sua interpretação é inatacável e a história que ele conta explica, efectivamente, os pormenores inexplicáveis...