domingo, fevereiro 05, 2012

UM CRIMINOSO COM O JOELHO MAU [II]

Para quem quer que olhasse para o crime de fora, se realmente o viesse a cometer, dificilmente o senhor X cairia na lista dos suspeitos. De que móbil o acusariam?
Dona X não possuía nenhum pecúlio à parte, de que ele pudesse apropriar-se; o senhor X não era beneficiário de nenhum testamento dela, nem de nenhum seguro.
Todos os motivos que tinha para a eliminar eram invisíveis para os outros. Motivos psicológicos. E estéticos.

Nem sequer a odiava por ela ser tão feia por dentro e por fora. Odiava-a por ter sido tão bela. Odiava-se a si mesmo porque se deixara enganar. Como se o casamento fosse uma fraude; como se, logo no momento em que saíam da igreja, ainda os convidados lhes lançavam arroz e já ela tivesse começado a mudar.

Primeiro, fora a voz. Nas mulheres que mudam com o casamento, pensava o senhor X, a voz é sempre o primeiro indício. Como sucede com os adolescentes na idade do caixote.
Depois, as formas. Todas as formas, aliás: as do corpo e as da personalidade.
O senhor X continha-se no dia-a-dia. Raramente gritava ou reagia ameaçadoramente. Aprendia a conviver com esta mulher que não escolhera.

Mas tudo quanto ela fazia o enervava: a sua maneira ríspida de falar, como se também o não suportasse, as expressões que empregava, o bater dos saltos secos dos sapatos no chão, o nariz pontiagudo, aquele último suspiro que ela dava ao entrar para a cama (ele não conseguia acalmar-se e preparar-se para dormir enquanto o raio do suspiro não fosse solto, noite após noite), um certo modo, que considerava repelente, de ela coçar a cabeça, introduzindo a unha grande e pintada por entre os cabelos, a sua total incompreensão de todos os desejos dele, os seus interesses, os seus gostos...

Passava vinte e quatro horas de cada dia planeando matá-la. Era uma obsessão que acabaria por matá-lo a ele. Sabia que nunca ousaria fazê-lo. Limitava-se a compor esquemas, hipóteses, como quem escreve romances.

Mas ali, fechado na caixa quente do Henriques, tinha a possibilidade única.
Era pegar ou largar.

CONTINUA

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