domingo, fevereiro 05, 2012

UM CRIMINOSO COM O JOELHO MAU [III]

Tratava-se, então, de proceder como?
O senhor X tinha uma hora de absoluta solidão para agir: levantaria a tampa da caixa infernal em que o fechavam e, mesmo em cuecas (porque ninguém o veria nessa figura: o bairro era praticamente um deserto àquela hora, e a única pessoa que, às vezes, por ali passava, era um cego), ou em cuecas e, quando muito, uma camisola de lã que enfiasse num instantinho, para não adoecer com a brusca mudança de temperatura, saltaria pela janela que a secretária do Henriques deixava entreaberta, correria até sua casa, entraria, aproximar-se-ia de sua mulher, pegando, de caminho, numa faca de cozinha e, apanhando dona X desprevenida, talvez até de costas (sonhara tantas vezes com a cena), esfaqueá-la-ia até à morte. Simples. Básico. Perfeito. Partiria vasos, desarrumaria um pouco, roubaria dinheiro de gavetas de modo a que as culpas pudessem recair num intruso qualquer, um ladrão. Depois, sairia de casa em corrida, subiria pela janela do Henriques, reentraria na sala da sauna, por fim na caixa do inferno, certamente suado - o que não fazia a menor diferença porque, na sauna, era justamente suado que esperavam vê-lo quando o fossem desligar.

Na décima sessão, quando o tempo urgia porque só faltavam mais duas para concluir o tratamento, tomou a decisão.
Havia riscos no seu plano. Mas os riscos resumiam-se à possibilidade de alguma coisa não suceder como sucedia habitualmente.
Por exemplo: a secretária chinesa, até por causa das suas artrozes, nunca aparecia a não ser que ele gritasse por ela. Mas não poderia, por qualquer razão, naquele dia, aparecer e não o ver na sauna?
As ruas estavam sempre vazias. E, se passava alguém, era, como sabia, um senhor cego. Mas não poderia nesse dia, por azar, passar outra pessoa, um rapaz, uma senhora...?

Tinha de avançar. Não podia preocupar-se agora com os riscos. Era pegar ou largar a única oportunidade de uma vida horrível. Abriu a tampa. Correu, nas suas cuecas de ursinhos, até à cadeira onde pousara a roupa. Tentou vestir uma camisola. Mas os braços daquela espécie de embrulho de lã estavam como que amarrados um no outro. Desistiu da camisola. Enervava-se com o tempo a passar. Calçou uns sapatos de borracha. E, em cuecas, tronco nu e sapatos, sentou-se à janela, com as pernas voltadas para o exterior, prontas para o salto.

Para o salto, escrevi bem. Porque, repentinamente, apercebeu-se de que a altura era enorme. Foi deslizando como uma serpente, os dedos enclavinhados no parapeito, o corpo descendo pelo lado de fora, desenrolando-se, encostado à parede...! Mas, mesmo assim, todo esticado, os seus pés não tocavam no passeio. Longe disso. Estava pendurado, com os dedos a tremer pelo esforço para o manterem preso à janela. Considerou tornar a subir: impossível. Não tinha forças nos braços para puxar por si até lá acima de novo. Estava arrependido de toda aquela loucura. Ele não era um assassino. Era um cobarde. Por que razão um homem que não tem sequer coragem para se divorciar da mulher que odeia, haveria de ter coragem para matá-la?
Temia largar-se, saltar, aterrar no chão. Não podia gritar por socorro. Não podia, em suma, fazer coisa alguma. Estava perdido.

Nesse momento, quando a situação parecia tão complicada que nada seria capaz de a tornar pior para si, o joelho, o seu joelho, o seu joelho mau, principiou a doer. Mas a doer tanto, tão inimaginavelmente como já quase não lhe voltara a doer desde que iniciara a série de massagens...
E sob efeito da dor atroz, os dedos abriram-se-lhe todos, como cabelos eriçados.
E o seu corpo tombou.

O senhor X caía, pesada e dolorosamente, sobre um cão: era o cão do cego que costumava passar por ali àquela hora, rente à parede, ligando-se ao muro pela bengala branca.
O cão não ganiu, uivou de susto e dor.
O cego, em pânico, sentindo-se assaltado, percebendo vagamente que lhe roubavam o cão, seu único amigo nesta vida, espadeirou com a bengala em todas as direcções. E acertou regularmente em quase todo o corpo do senhor X.

Quando a secretária chinesa ouviu tocar a campainha e veio abrir a porta da rua, deu de caras, com um pequeno grito de surpresa, com o mesmo homem, o mesmo senhor X que, ainda não havia meia hora, tinha deixado a marinar no caixote.
O senhor X estava de tronco nu.
Vestia as suas cuecas de ursinhos, mas muito rasgadas.
Num dos pés, um sapato de borracha. O outro, descalço, era um pé de esqueleto, era um conjunto de ossos arrastando-se.
Respirava com dificuldade. Encurvava-se ligeiramente, só ligeiramente, como se quisesse manter um último e improvável resto ou rasto de dignidade.
Havia sangue em toda a parte. No peito, no rosto, no joelho.
Disse:
- Caí da janela!
A secretária do Henriques, Henriques esse que também aparecia lá ao fundo, a mastigar como de costume, não podia crer.
- Como? - perguntou ela.
- O que foi? - mastigou o Henriques.
- A sauna estava muito quente - explicou o senhor X, ensaiando um sorriso. Mas era o sorriso mais dorido da sua vida. - Tive de ir respirar à janela. E caí.
Imaginou a sua chegada a casa, onde a mulher também lhe perguntaria, com a sua voz ríspida:
- Que é que te aconteceu?
E desatou a chorar.

UM CRIMINOSO COM O JOELHO MAU [II]

Para quem quer que olhasse para o crime de fora, se realmente o viesse a cometer, dificilmente o senhor X cairia na lista dos suspeitos. De que móbil o acusariam?
Dona X não possuía nenhum pecúlio à parte, de que ele pudesse apropriar-se; o senhor X não era beneficiário de nenhum testamento dela, nem de nenhum seguro.
Todos os motivos que tinha para a eliminar eram invisíveis para os outros. Motivos psicológicos. E estéticos.

Nem sequer a odiava por ela ser tão feia por dentro e por fora. Odiava-a por ter sido tão bela. Odiava-se a si mesmo porque se deixara enganar. Como se o casamento fosse uma fraude; como se, logo no momento em que saíam da igreja, ainda os convidados lhes lançavam arroz e já ela tivesse começado a mudar.

Primeiro, fora a voz. Nas mulheres que mudam com o casamento, pensava o senhor X, a voz é sempre o primeiro indício. Como sucede com os adolescentes na idade do caixote.
Depois, as formas. Todas as formas, aliás: as do corpo e as da personalidade.
O senhor X continha-se no dia-a-dia. Raramente gritava ou reagia ameaçadoramente. Aprendia a conviver com esta mulher que não escolhera.

Mas tudo quanto ela fazia o enervava: a sua maneira ríspida de falar, como se também o não suportasse, as expressões que empregava, o bater dos saltos secos dos sapatos no chão, o nariz pontiagudo, aquele último suspiro que ela dava ao entrar para a cama (ele não conseguia acalmar-se e preparar-se para dormir enquanto o raio do suspiro não fosse solto, noite após noite), um certo modo, que considerava repelente, de ela coçar a cabeça, introduzindo a unha grande e pintada por entre os cabelos, a sua total incompreensão de todos os desejos dele, os seus interesses, os seus gostos...

Passava vinte e quatro horas de cada dia planeando matá-la. Era uma obsessão que acabaria por matá-lo a ele. Sabia que nunca ousaria fazê-lo. Limitava-se a compor esquemas, hipóteses, como quem escreve romances.

Mas ali, fechado na caixa quente do Henriques, tinha a possibilidade única.
Era pegar ou largar.

CONTINUA

UM CRIMINOSO COMO O JOELHO MAU [I]

Porque acho este conto em três partes um dos textos mais conseguidos do meu blogue, aqui o recupero. Gostei de o reler.

Como, no Inverno, as dores no joelho se tornavam lancinantes, pôs-se duas ou três vezes por semana nas mãos do Henriques, que era um massagista particular e morava muito próximo dele.
O Henriques encontrava-se no indefinido limiar entre o autêntico e competente mecânico de ossos e o mero aldrabão. Onde passava de um a outro, era difícil de perceber.
Recebia o nosso homem a secretária do Henriques, uma chinesa magra e franzina, que também sofria dos ossos (o que não seria a melhor das propagandas) e o encaminhava para uma marquise.
O senhor X punha-se em cuecas.
Henriques aparecia por fim, ainda a mastigar o almoço e a limpar os dentes com deslocações da língua no interior da boca, e atirava-se-lhe ao joelho.
Massajava-o com uma minúcia paciente; aos olhos de X, o que, precisamente, traía o seu carácter de «aldrabão» era o imoderado gosto por uns aparelhómetros incredíveis, umas cintas almofadadas que lhe envolviam o joelho e eram ligadas à corrente ou, então, uma trapalhada com um polo positivo e um polo negativo que era posta a vibrar sobre a sua dor, sob efeito de um interruptor que o Henriques manipulava um pouco empiricamente: «E agora, dói muito? Assim está melhor...?»
Havia pomadas, mais uma meia hora de massagens e o «Grand Finale», a derradeira tortura: a sauna.

Ficava numa sala sozinho, dentro de uma caixa, com a cabeça de fora.
A senhora chinesa ligava os botões, deixava-lhe uma toalha turca à volta do queixo, para que não escapasse o mínimo calor pelo orifício por onde lhe passava o pescoço para fora da caixa, e ali se deixava derreter. Estava no inferno. Suava abundantemente. Quase desmaiava.
Pensava, ao fim de uns minutos: «Vou pedir que me tirem daqui. Já não aguento mais!», mas, logo após, «Vá, só mais um minuto», e depois, «Vou gritar, já chega disto», e a seguir «Só mais um pouco», até que os dois pensares contrários, «Não aguento nem mais um pouco» e «Vou aguentar só um pouco mais» acabavam por se confundir, tornando-se num mesmo e único estranhíssimo pensamento.

Com o tempo, semana atrás de semana, o senhor X conseguia acalmar-se e apreciar aquela hora a sós consigo. Aproveitava a rara oportunidade para passar em revista os seus dias e os seus problemas.
Olhava pela janela que a secretária do Henriques, lamentando-se muito por causa das suas artrozes e artrites, deixava entreaberta para que ele se distraísse.
Um dia, perguntou-se se não veria dali a própria casa. E esforçando-se, deslocando o seu pescoço tanto quanto lhe era possível naquela prisão, compreendeu que podia, dali mesmo, fixar uma janela de sua casa e, àquela hora, assistir à chegada da sua mulher, a única mulher que odiava no mundo inteiro.
E, meio drogado pelo calor que lhe derretia o corpo mas, aparentemente, lhe vivificava o espírito, concebeu o plano perfeito para eliminá-la sem deixar qualquer vestígio.
A melhor das formas.
A forma que a sorte, a sorte de estar na sauna precisamente àquela hora, naquelas condições, lhe concedia - e que talvez nunca mais se lhe oferecesse com tanta simplicidade.

CONTINUA

sexta-feira, fevereiro 03, 2012

O FRIO PORTUGUÊS

Está frio, está inegavelmente frio.
Mas, apesar de tudo, nada do que por aí se anunciava, gerando o pânico e a corrida aos agasalhos. Este frio parece-me trivial. Se é tudo o que o "clima" consegue, devo dizer que já senti pior.
Em Portugal, pelos vistos, nem o frio é a sério.