segunda-feira, maio 06, 2013

AINDA HOJE NÃO SEI BEM QUEM ERA O QUÊ

Quando íamos na ambulância, o doutor disse-nos.
«A senhora acaba de me telefonar.»
«A senhora?», perguntou o Ismael. «Mas então a senhora não é precisamente a maluquinha que vamos buscar?»
O doutor olhou-o severamente por sobre os óculos.
«Ismael. Em primeiro lugar, nós não usamos essa linguagem. Não dizemos "maluquinho". Certo? Falamos de "condição", ou de "perturbação". Em segundo lugar, pensávamos que íamos buscar uma maluquinha... perdão, uma mulher com certa condição mental; mas afinal a mulher telefonou-nos. Esclareceu que o marido é que é pírulas... ai, quero dizer, está perturbado... mas que temos de fingir que a pessoa perturbada é ela. Percebem? Explicou-me tudo muito bem. Se não for assim, o homem fica absolutamente intratável. Portanto, já sabem. O gajo é doido, mas fingimos que a doida é ela. Falamos muito bem com o senhor, deixamos que ele diga o que lhe aprouver sobre a condição da mulher, regressamos todos como se fosse para a internar a ela... e quando estivermos no hospital, o tipo fica e a senhora volta para casa...»
«História confusa, não?», ainda considerou o Ismael.

Chegámos. Fomos recebidos pela mulher, absolutamente impecável. O homem juntou-se-nos imediatamente. Falava-nos do estado da esposa, que parecia «muito tranquila», e «por acaso» até tinha dormido bem «essa noite», mas estava a «atravessar um momento de grande instabilidade psicológica».
O Ismael, surpreendido, soprou-me: «Quem o ouve, não o leva preso. Como estes doidos enganam, ein?»

No hospital, deu-se a quasi-tragédia.
Agarrámos no homem, perante a expressão condoída da mulher, e isolámo-lo. Gritava, entre as grades: «É um engano! Oiçam! A minha mulher é que é para ficar! Oiçam! Estão a cometer um erro terrível! Oiçam!»
«Acalme-se», respondia-lhe o doutor, de cá de fora.
A mulher chorou. Levámo-la a casa.

Só se deu pelo erro dois dias depois.
A pessoa que sofria de «uma condição» era, de facto, a mulher. Matara entretanto o vizinho.

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