Hans não conseguia deixar de olhar pela janela.
Passara os últimos dias olhando fixamente, cheio de fé, de uma fé irrealista que o tornava inapto para as tarefas da casa.
Os outros irritavam-se. Ada, sobretudo, enervava-se muito com a sua atitude:
- Tu não podes esperar que sejamos nós a fazer tudo. É injusto. Estamos juntos nesta situação, precisamos uns dos outros, precisamos de todos.
Clark, que, tacitamente, era visto pelo grupo como o líder, procurava acalmá-la:
- Ele está mal, Ada. Dá-lhe tempo. Deixa-o recompor-se. Foi o que sofreu mais de todos nós. Perdeu os pais, os filhos...
Ada chorava. Não de pena, mas de raiva, de uma raiva mesquinha contra Hans, e do orgulho ferido por Clark, que ela continuava amando secretamente.
- Quanto tempo lhe queres dar, Clark?
- Dá-lhe tempo, Ada, dá-lhe algum tempo. É só do que ele precisa...
Hans via claramente que, no exterior, tudo se recompunha. Não o dizia a ninguém. Mantinha segredo. Os outros ainda lhe agradeceriam, quando ele anunciasse: «Podemos sair, o mundo renasceu lá fora!»
Hans percebia perfeitamente que o cinzento começara a dar lentamente lugar a cores, que algumas flores brotavam do chão; pensava, comovido: «Há flores prontas a regressar à menor oportunidade, mesmo num mundo estragado. E que força! A força com que rompem o alcatrão, com que fendem as estradas...»
Um dia, Hans gritou.
Os outros aproximaram-se, a medo.
Mas o jovem ria-se. Apontava com o dedo pela janela. O mundo regenerara. Por completo. Estava pronto a recebê-los, reanimado, animado da sua eterna pujança.
- Que achas? -, perguntou Lake.
- Acho que ele enlouqueceu -, respondeu Ada.
- Também acho, infelizmente -, confirmou Clark. - A sua fé criou uma espécie de alucinação que, sob efeito das recordações, o faz ver o mundo lá fora como era antes.
- Ele quer sair. Podemos prendê-lo? -, interrogava-se Eva.
- Temos de o convencer -, experimentava Clark.
- Convencê-lo? -, troçava Ada. - Como se convence um louco?
- Temos de admitir outra hipótese -, arriscou Lap. Corou muito perante o silêncio atento que se fez em torno das suas palavras. Depois, nervosamente, com excesso de gestos, prosseguiu. - Temos de admitir a hipótese de que ele tenha razão. De que ele esteja a ver as coisas como elas de facto são, e nós não.
- Todos nós enganados? Loucos? E ele a percepcionar adequadamente? Mas porquê?
- Bem, o facto de ele ter passado tanto tempo à janela pode tê-lo tornado mais sensível para pequenas variações que nos escapam. Estamos demasiado habituados a esta falsa luz, que não sabemos até que ponto altera a nossa visão.
- Lap tem razão.
- Vais deixá-lo sair? A porta terá de se fechar imediatamente. E uma vez fechada, não a conseguiremos abrir senão ao fim de uma hora. E se nada mudou, como resistirá ele lá fora, sob a nuvem tóxica, durante uma hora? Queres usá-lo como cobaia, é isso?
Discutiram durante muito tempo. Com Hans e sem Hans. Para este, não havia dúvidas. Espantava-se de que não vissem tão claramente como ele o mundo renascido, mas o certo é que esse mundo o esperava. Não havia hesitação. Da sua parte, não havia a menor hesitação. E parecia lúcido: argumentava inteligentemente, um pouco excitado mas sem qualquer vestígio de delírio.
Estava à porta. Olhou para os seus companheiros um por um.
Tinha a certeza. Estava seguro. Sabia o que eles pensavam, lia-o nos rostos tensos, dramáticos. «E se o Hans não volta? E se o Hans morre?»
Uma vez saindo, não havia volta. A porta teria de ser imediatamente fechada nas suas costas, e não poderiam abri-la senão ao fim de uma hora. Se não tivesse razão, ao fim de uma hora iriam recolher o seu cadáver.
Tremeu. Não chegou a ser hesitação. Nem frio. Fora uma tremura nervosa.
A porta abriu-se. Hans saiu. A porta fechou-se nas suas costas.
terça-feira, junho 13, 2006
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário