Sartre nunca gostou muito de Freud. À ideia de «inconsciente», respondia com a noção de uma consciência sem zonas obscuras. Não, argumentava ele, o sujeito é pura consciência, uma consciência total e completa, sem estrutura nem qualquer mecanismo ou forma «a priori»; é, afinal, um nada - aquele nada no sentido sartreano (néant), que a língua portuguesa nunca conseguiu traduzir satisfatoriamente.
Mas - perguntava-se-lhe -, se o sujeito é consciência, como pode ignorar tanto de si, dos seus impulsos mais recônditos, como pode haver actos que não é capaz de explicar, cujas razões desconhece ou deturpa?
Ah!, dizia ele, isso é por causa da má-fé.
A má-fé ganhou, com Sartre, foros de conceito filosófico. Tratava-se de pensar uma espécie de truque da consciência, uma capacidade de se enganar a si própria, sem realmente se enganar uma vez que, em última análise, não podia deixar de perceber o jogo com que se mascarava de si para si.
O sujeito conhece os seus impulsos, as suas intenções, as suas motivações: nada lhe é verdadeiramente inconsciente. Mas, eis o segredo, pode actuar como se não soubesse, ou como se não tivesse a certeza, ou como se aceitasse outra explicação ou outra hipótese, levando esse «como se», por vezes, ao extremo ponto de, não acreditando, quase acreditar ou, por momentos, acreditar de facto na sua ignorância.
O exemplo mais conhecido desta atitude da consciência, é-nos oferecido pelo próprio Sartre: a jovem que conversa, à mesa de um café ou de um restaurante, com alguém que intenta seduzi-la. O homem, num determinado momento, pousa a sua mão sobre a mão dela. E ela, que poderia retirar imediatamente a sua, chocada, ou recuar de algum modo, pelo contrário deixa-a estar abandonada sob o suave toque, o peso daqueles dedos, continuando porém a falar acerca de filosofia, ou de religião, ou de temas excelsos, como se não tivesse notado, ou como se não tivesse compreendido, ou não desse nenhuma significação especial ao gesto, ou como se acreditasse na inocência deste...! Como se o tema e a conversa o impregnassem de leveza, de inocência, o esvaziassem de toda a intenção amorosa e de toda a sensualidade.
Há muitos anos, um amigo meu, casado e bom rapaz, tinha sido convidado por uma colega, com quem, obviamente se dava muito bem, para jantar em casa dela. A sós. O pretexto era que se tratava de uma casa nova, para onde ela mudara recentemente e que lhe queria mostrar.
Quando hoje ele se lembra desta situação, tenta sempre acreditar que aceitou inocentemente, sem ler nada nas entrelinhas e achando normal que uma colega, uma quase-amiga, com quem se dava muito bem, o convidasse para jantar em casa dela. Tenta acreditar que era possível, e lhe foi possível, não achar estranho, nem ler no convite para jantar nenhum segundo convite.
Respondemos-lhe: «Não é possível tamanha inocência!»
Do ponto de vista de Sartre, toda a inocência é uma forma de má-fé.
Não garanto que isto supere Freud, que explique os actos mais ou melhor do que o inconsciente explicaria.
Não sei se, aliás, o «inconsciente» e a «má-fé» são contraditórios e, como tal, se excluem mutuamente.
Ambos me parecem fazer todo o sentido.
terça-feira, junho 06, 2006
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