Quando o gigante desdentado os encurralou num beco - obviamente - sem saída, tudo o que Alvarinho, de oito anos, se lembrou de dizer para o assustar, consistiu nisto:
«Não se meta connosco. Olhe que aqui o meu amigo é um poderoso feiticeiro...»
Idiotamente, porém, a reacção de Artur, seu companheiro, resumiu-se a:
«Qual teu amigo?!»
«Tu, Artur. És um poderoso feiticeiro, pois és?», (e piscava-lhe o olho, procurando envolvê-lo na artimanha para enganar o gigante).
«Eu?», espantou-se o inocente. O parvo.
«Sim. O senhor afaste-se de nós», mas o gigante aproximava-se, rindo com umas gargalhadas que, expelidas das entranhas, eram lançadas por aquele buraco negro, a sua bocarra sem dentes, «nem mais um passo, eu não torno a avisar», até que, por fim, definitivo, «está perdido!». E exortou: «Vá, Artur, diz as palavras mágicas!»
Nada mais ocorreu a Artur senão:
«Um, dois, três, macaquinho chinês!»
Alvarinho ficou aterrado.
Aterrado. Fora demasiado forte. Chegava a ter pena do gigante, transformado num macaquinho sem dentes e de olhos amendoados.
quarta-feira, dezembro 23, 2009
sexta-feira, dezembro 11, 2009
DA SÚBITA METAMORFOSE DO MAU EM BOM
A desculpa para as minhas madrugadas é "evitar" o trânsito.
A verdadeira razão, porém, é uma antiga neurose. A esta, associa-se o raro prazer de chegar ao local dos deveres e tarefas, quaisquer que sejam, com uma antecedência longa, sossegada, demorada.
Por estes dias, tenho vindo primeiro a um café.
O sítio é pequeno e esconso. As mesas são particularmente feias.
Há, como fundo, a rádio renascença. Nada, portanto, podia ser pior do que este conjunto de ingredientes. Ouve-se Sarsfield Cabral comentado as finanças do país, e um locutor de voz preciosa deixando «no ar» um enigma. Repito: que poderia ser pior?
Os clientes assustam-me: não tanto o cigano que me olha fixamente, mas a velha que treme, incapaz de me olhar fixamente, de fazer fixamente o que quer que seja.
E, de repente, põem-me o chá a ferver à frente. E na madrugada gelada, a chávena com que aqueço as mãos, com um estranho arrepio de calor, o líquido que sinto molhar-me a língua e descer, como fogo, pelas diversas partes do meu corpo, o jornal a que vou lançando um olhar distraído, a conversa básica, sem o menor interesse ou consequências, que mantenho com o proprietário madeirense, salvam a manhã, justificam o momento, dão um inesperado rascunho de sentido à existência, redimem-me.
Sinto-me forte. Estou salvo e feliz.
A verdadeira razão, porém, é uma antiga neurose. A esta, associa-se o raro prazer de chegar ao local dos deveres e tarefas, quaisquer que sejam, com uma antecedência longa, sossegada, demorada.
Por estes dias, tenho vindo primeiro a um café.
O sítio é pequeno e esconso. As mesas são particularmente feias.
Há, como fundo, a rádio renascença. Nada, portanto, podia ser pior do que este conjunto de ingredientes. Ouve-se Sarsfield Cabral comentado as finanças do país, e um locutor de voz preciosa deixando «no ar» um enigma. Repito: que poderia ser pior?
Os clientes assustam-me: não tanto o cigano que me olha fixamente, mas a velha que treme, incapaz de me olhar fixamente, de fazer fixamente o que quer que seja.
E, de repente, põem-me o chá a ferver à frente. E na madrugada gelada, a chávena com que aqueço as mãos, com um estranho arrepio de calor, o líquido que sinto molhar-me a língua e descer, como fogo, pelas diversas partes do meu corpo, o jornal a que vou lançando um olhar distraído, a conversa básica, sem o menor interesse ou consequências, que mantenho com o proprietário madeirense, salvam a manhã, justificam o momento, dão um inesperado rascunho de sentido à existência, redimem-me.
Sinto-me forte. Estou salvo e feliz.
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minúsculos momentos de Glória
quinta-feira, dezembro 10, 2009
BRILHANTE DISCURSO NA RECEPÇÃO DE AMIGOS A UMA CASA QUE NÃO FOI LIMPA
«Entrem, entrem, meus amigos. Não reparem, está tudo desarrumado, não aspirei a casa, esta é a minha maneira de vos dizer que sinto, realmente, que estou a receber amigos, para mim não se trata de "visitas", se me tivesse posto a limpar o pó estaria a fazer cerimónia, nada disso, estão em vossa casa, não escorregues nessa pilha de livros, espera, e tu não te sentes em cima das minhas cuecas, se quiserem arrumar vocês, estejam à vontade, a casa é vossa, meus amigos, queridos amigos meus, que saudade!»
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e como raio querem que classifique isto?
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