A desculpa para as minhas madrugadas é "evitar" o trânsito.
A verdadeira razão, porém, é uma antiga neurose. A esta, associa-se o raro prazer de chegar ao local dos deveres e tarefas, quaisquer que sejam, com uma antecedência longa, sossegada, demorada.
Por estes dias, tenho vindo primeiro a um café.
O sítio é pequeno e esconso. As mesas são particularmente feias.
Há, como fundo, a rádio renascença. Nada, portanto, podia ser pior do que este conjunto de ingredientes. Ouve-se Sarsfield Cabral comentado as finanças do país, e um locutor de voz preciosa deixando «no ar» um enigma. Repito: que poderia ser pior?
Os clientes assustam-me: não tanto o cigano que me olha fixamente, mas a velha que treme, incapaz de me olhar fixamente, de fazer fixamente o que quer que seja.
E, de repente, põem-me o chá a ferver à frente. E na madrugada gelada, a chávena com que aqueço as mãos, com um estranho arrepio de calor, o líquido que sinto molhar-me a língua e descer, como fogo, pelas diversas partes do meu corpo, o jornal a que vou lançando um olhar distraído, a conversa básica, sem o menor interesse ou consequências, que mantenho com o proprietário madeirense, salvam a manhã, justificam o momento, dão um inesperado rascunho de sentido à existência, redimem-me.
Sinto-me forte. Estou salvo e feliz.
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