sábado, abril 17, 2010

COMPLEXO DE REI DEPOSTO


Acordei hoje com a imagem de um pai que, habituando-se a reconhecer-se na figura de quem tudo ensinava ao filho, repreendendo-o e admoestando-o, sempre superior, imbuído de Passado e Tradição, um pouco indignado por que seu filho nunca estivesse propriamente à altura, um dia, bruscamente, descobre que o filho crescera, o superara, revelava talentos e forças que nunca tinha sido capaz de identificar, tornava-se melhor do que o próprio pai. E, ao invés da alegria, o que esse pai encontra em si é um sentimento de frustração, uma tristeza inexplicável, uma inveja indigna.

É assim que vejo as relações entre Portugal e o Brasil. Não me apraz dizê-lo, mas é desta forma que as vejo. Mantemos a arrogância e um desadequado complexo de superioridade. Falamos ainda dos brasileiros como sendo os gordos eufóricos ou as morenas que vemos, às vezes, passar por aí em havaianas ou fio dental. Os do Carnaval, os da telenovela, os da favela. Os que têm lata e lábia de mais, os abusadores, os vizinhos barulhentos. Respeitamos-lhes o futebol e pouco mais.

Quando uma actorzeca de telenovela, cujo nome nem me vou esforçar para recordar, veio a Portugal e gravou um vídeo inqualificável, tratando-nos como se fossemos todos o "Manuel Padeiro", elevámos o facto praticamente a um assunto de Estado. Sentimo-nos agredidos na nossa superioridade, exigimos desculpas - Deus do céu, a uma pateta que está longe de representar o Brasil ou o povo brasileiro...!

Porque, quanto ao seu melhor, ignoramo-lo. Estupidamente, deixamos passar ao lado tudo aquilo em que o Brasil se tornou maior, e claramente superior a nós: a música, a poesia, a literatura, o teatro, a imprensa.

Curiosamente, é em nome dessa arrogância portuguesa, que os artistas lusos em geral (e dói-me dizer isto, que só não vai suscitar contra mim grandes fúrias porque pouca gente me lê), se lamuriam tanto por causa da "injusta" troca, o "desequilibrado" intercâmbio artístico entre os dois países. E, neste aspecto, os músicos portugueses são terríveis - como se nunca lhes tivesse passado pela cabeça que, se há um grande desnível entre a música brasileira consumida pelos portugueses e a música portuguesa consumida pelos brasileiros, isso se deve, desde logo, e antes de qualquer "injustiça comercial", ao facto de que a música brasileira é uma das melhores e mais belas do mundo, arrojada, inovadora, com letras extraordinárias, um encanto próprio, um ritmo singularíssimo, enquanto que a música portuguesa, com excepção de alguns "casos", não tem uma qualidade que sequer se lhe aproxime.

Não lhes levemos a mal: os músicos portugueses sempre acharam que o problema do seu fraco sucesso pouco tinha que ver com o merecimento do que faziam. Os álibis abundavam, a culpa seria sempre dos outros: as rádios que os preteriam, os ouvintes que não estavam suficientemente educados, e por aí fora. O mesmo em relação ao cinema, o mesmo em relação ao que entendam.

Na minha opinião de pai a quem o filho, um dia há-de certamente ultrapassar em quase tudo, deixem-me que sintetize a minha análise. Ficámos para trás. Repetimo-nos, fechados no nosso orgulho e preconceito. O melhor que fizemos foi no tempo de Fernando Pessoa: foi o próprio Pessoa. Depois disso, somos incapazes de olhar para o espelho, perguntar-lhe «Há alguém mais belo do que eu?», e ouvi-lo responder: «Cara! Brinca comigo não! Cê tá perguntando sério?!»»

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