domingo, maio 30, 2010

JANTAR DE DOMINGO

A família é a forma de comunidade que mais eficazmente prepara as pessoas para a vida. Porque a vida familiar se transforma tão cedo num pesadelo, que, quem não morre, sai vacinado e pronto para enfrentar seja o que for.

Ontem à noite, éramos sete para jantar. Tentarei não ser demasiado azedo nas descrições. Uma senhora de oitenta anos, minha mãe, aliás, que ouve cada vez menos; uma tia conhecido pela criativa capacidade de multiplicar desastres; sua filha, que comunica com o Além; eu, atravessando crises, esgotamentos nervosos, cansaços misteriosos, tristezas infinitas; minha mulher, esmagada no serviço, deprimidíssima; um filho numa idade inenarrável, sem modos, respondão e malcriado; uma filha com uma voz estridente, a que um princípio de febre dava uma actividade a roçar o histérico.

Dentro da marisqueira, não havia mesa. Famílias felizes, grupos festejando aniversários, amigos que se reencontravam, juntavam-se alegremente, gritando, fumando, assinalando ruidosamente os golos que a televisão mostrava. Empregados feios moviam-se agilmente entre mesas, com bandejas carregadas de cervejas e sapateiras. Em alternativa, propuseram-nos uma mesa «lá fora».

«Lá fora» era um corredor estreito, vagamente protegido por um plástico translúcido. Numa mesa, um senhor mamava um prato de ameijoas à Bulhão Pato, com muitos estalidos de língua. Noutra, alguém sorvia caracóis. O Dudu afirmou, peremptório: «Quero caracóis e ameijoas!»
Primeira discussão.
Todos sentados numa mesa demasiado pequena para tanta gente, quase ao colo uns dos outros, fizemos os nossos pedidos. Entre discussões e negociações. Chegaram travessas. Não tinha espaço para comer: os meus braços estavam paralisados entre o braço da Titi, que ia fazendo suceder copos de vinho à pressão, e a minha mãe, que, apanhando-nos distraídos, e repetindo que não ia para jantar, que já jantara, tratava de levar à boca as entradas mais caras, o caranguejo, os queijos frescos, os etc.

Daisy zangava-se, gritava. Queria colo, não queria comer. Eu continuava preso. A prima comunicava com o Além. Dudu absorvia o molho directamente da travessa, entornando também um copo de água sobre o conteúdo dos pratos, experimentando novos tiques. Mal consegui comer. Gritava com eles. A tia tentava acalmar-me, pensando fazer-me festinhas no braço, mas paralisados uns contra os outros, podíamos manifestar pouco e mal a afectividade.

Comi pouco. Não tinha braços para muito mais.

Ando a sentir-me tão, tão, tão, mas tão cansado!

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