Em teoria, não há nada de absolutamente disparatado no pensamento de Nuno Crato acerca dos exames.
Em teoria significa: se abstrairmos dos detalhes; se nos colocarmos num mundo puro, de formas platónicas.
O que ele diz é, afinal, isto: os exames são uma entidade externa, a única, aliás, capaz de avaliar friamente os alunos; sem se deixar condoer pelos seus olhos meigos, ou tristes, nem por situações familiares adversas de onde provenham. Ou o aluno sabe, ou o aluno não aprendeu - independentemente da morte dos familiares e independentemente, até, das suas «atitudes».
O corolário desta teoria seria, por sua vez, que os professores devem ser avaliados consoante os resultados dos seus alunos nos exames.
Platonicamente, tudo isto faz sentido.
Se começarmos a introduzir palhinhas e pedrinhas, ou seja, se principiarmos a introduzir a realidade, o sistema falha.
Em primeiro lugar, porque não considera o progresso do aluno. Isto é «eduquês»? Não creio. A palavra "progressão" é suspeita, por isso mesmo a evitei. O meu argumento é elementar. Se um aluno começa por "níveis" (níveis: outra cedência, perdoem-ma) muito baixos, digamos, cinco ou seis, e, porque se dedica e trabalha (evito "empenha"), melhora significativamente, suponhamos que para oito ou nove, parece-me claro que a evolução deste aluno merece ser valorizada - é mais importante que a de um aluno que se manteve no dezasseis, ou que passou de um dezasseis para um dezassete.
É evidente que o problema dos exames é o da sua cegueira. É o do que não podem ver nem ajuizar: o "sabe" ou "não sabe" que se traduz quantitativamente classifica só habilidades intelectuais e/ou de memorização. São elas importantes? É claro. São as únicas importantes? De modo nenhum, de modo nenhum. Por outro lado: «uma» prova será suficiente para demonstrar mesmo unicamente essas habilidades? De maneira nenhuma. Em «uma» prova, um exame, o aluno está nervoso, porventura mal dormido, preocupado e tenso. É irrelevante? Não é, não é...
É absolutamente certo, também, que um horizonte de exames transforma a escola numa gigantesca máquina de «preparação para exames». Com professores que evitam fazer aprofundamentos, ou ligações, ou relações, ou desvios - culturalmente interessantes, formativa e pedagogicamente fundamentais, mas irrelevantes do ponto de vista estrito da examinação final. Enterrei-me em «eduquês»? Os meus argumentos tresandam a isso? Talvez, mas, nesse caso, talvez tenha que ver com a parte mais saudável do eduquês.
Não desminto que sempre considerei Nuno Crato interessante. Mas temo que o ministro da educação seja menos interessante - e que se prepare para deitar fora vários bebés juntamente com a água do banho...
quinta-feira, junho 30, 2011
sábado, junho 11, 2011
DICAS
No telejornal de ontem, José Alberto de Carvalho, com um fato engelhado, que se adaptava mal à sua postura de quem pede desculpa, falou-nos acerca de um imigrante astucioso que, pelo Norte acima ou abaixo, foi visitando diversas caixas multibanco: tinha um sistema de «clonagem» de cartões, que lhe possibilitou arrecadar uma quantia razoável. (Suponho que o que o senhor fazia era ajustar aos "multibancos" um dispositivo que lia o código do último cartão utilizado, de forma a que pudesse usá-lo a seguir).
O jornalista rematava a notícia dizendo que ia dar aos telespectadores algumas «dicas» (sim, juraria que empregou este termo), algumas «dicas para...»
Abri os ouvidos.
«... ensinar o que nunca se deve fazer, por forma a evitar ser vítima de...»
Suspirei. Que pena. Por um momento, cheguei a pensar que nos ia fornecer umas «dicas» para podermos clonar cartões...
O jornalista rematava a notícia dizendo que ia dar aos telespectadores algumas «dicas» (sim, juraria que empregou este termo), algumas «dicas para...»
Abri os ouvidos.
«... ensinar o que nunca se deve fazer, por forma a evitar ser vítima de...»
Suspirei. Que pena. Por um momento, cheguei a pensar que nos ia fornecer umas «dicas» para podermos clonar cartões...
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ao que um gajo se agarra em tempos de crise
domingo, junho 05, 2011
SURPREENDER-ME
Esta noite tive um sonho que me pôs obviamente em face do não-eu que há em mim, a parcela de mim que não corresponde ao meu padrão e, por isso, me surpreende.
Alucinante: primeiramente, tratou-se de um sonho em que mantive sempre a consciência de estar a sonhar; mas habitualmente, nesses sonhos em que o sonhador sabe estar sonhando, tudo é vago e difuso, quase como se se estivesse a um passo de acordar, ou como se não se estivesse verdadeiramente a dormir. Aqui, não. Era tudo muito nítido e consistente; lembro-me de passear por aqueles corredores apreciando-os devidamente, como alguém que visita os cenários de um estúdio e vai comentando, de si para si: «Sim senhor, sim senhor, muito bem, isto é exactamente como a realidade...»
Estava talvez numa universidade. Um pouco antiga: poderia ter sido construída a partir de um mosteiro. Tectos altos, abobadados, espaços amplos, colunas, escadarias; «isto é fantástico; nem parece um sonho, muito bem feito, muito bem feito». [Não, não estou a plagiar o filme Origem, estou a narrar o meu sonho].
Em baixo, numa espécie de cave, havia uma venda de livros e uma exposição de bonecos. Eram bonecos pequenos, não me recordo se de louça. Penso que não. Dois estavam numa prateleira, um deles de óculos dourados, com algum brilho, o outro de óculos de massa, muito grossos. Não tinham mais do que um palmo de altura, os bonecos.
Tenho noção de que olhei para os livros, os folheei, e pensei: «isto está tão bem feito, é tudo tão consistente e constante, que, se tornar a olhar para os bonecos, os encontro exactamente iguais ao que eram a última vez que os vi, com as mesmas cores, no mesmo sítio...»; e olhei mesmo a tempo de ver que os óculos negros do segundo boneco tinham passado a óculos dourados. Ri-me, como perante uma surpresa e uma boa partida, tornei a desviar os olhos, pensando: «e passado este instante de alucinação, volto a olhar e os óculos negros regressaram...»
Em vez de óculos, negros ou dourados, o boneco tinha agora cravado no rosto uns círculos estranhos, como instrumentos de tortura. Cravados, disse bem: pareciam círculos munidos de dentes que se espetavam na carne, para os fixar. [Como solução para alguém que perdesse frequentemente os seus óculos...]. Tornei a desviar, com uma ligeira angústia - os óculos negros não vão voltar...?
E acordei.
Alucinante: primeiramente, tratou-se de um sonho em que mantive sempre a consciência de estar a sonhar; mas habitualmente, nesses sonhos em que o sonhador sabe estar sonhando, tudo é vago e difuso, quase como se se estivesse a um passo de acordar, ou como se não se estivesse verdadeiramente a dormir. Aqui, não. Era tudo muito nítido e consistente; lembro-me de passear por aqueles corredores apreciando-os devidamente, como alguém que visita os cenários de um estúdio e vai comentando, de si para si: «Sim senhor, sim senhor, muito bem, isto é exactamente como a realidade...»
Estava talvez numa universidade. Um pouco antiga: poderia ter sido construída a partir de um mosteiro. Tectos altos, abobadados, espaços amplos, colunas, escadarias; «isto é fantástico; nem parece um sonho, muito bem feito, muito bem feito». [Não, não estou a plagiar o filme Origem, estou a narrar o meu sonho].
Em baixo, numa espécie de cave, havia uma venda de livros e uma exposição de bonecos. Eram bonecos pequenos, não me recordo se de louça. Penso que não. Dois estavam numa prateleira, um deles de óculos dourados, com algum brilho, o outro de óculos de massa, muito grossos. Não tinham mais do que um palmo de altura, os bonecos.
Tenho noção de que olhei para os livros, os folheei, e pensei: «isto está tão bem feito, é tudo tão consistente e constante, que, se tornar a olhar para os bonecos, os encontro exactamente iguais ao que eram a última vez que os vi, com as mesmas cores, no mesmo sítio...»; e olhei mesmo a tempo de ver que os óculos negros do segundo boneco tinham passado a óculos dourados. Ri-me, como perante uma surpresa e uma boa partida, tornei a desviar os olhos, pensando: «e passado este instante de alucinação, volto a olhar e os óculos negros regressaram...»
Em vez de óculos, negros ou dourados, o boneco tinha agora cravado no rosto uns círculos estranhos, como instrumentos de tortura. Cravados, disse bem: pareciam círculos munidos de dentes que se espetavam na carne, para os fixar. [Como solução para alguém que perdesse frequentemente os seus óculos...]. Tornei a desviar, com uma ligeira angústia - os óculos negros não vão voltar...?
E acordei.
sábado, junho 04, 2011
O ELOGIO DA MEDIOCRIDADE
Sou um tipo terrível. Sei-o perfeitamente. A minha visão sarcástica perturba um pouco; o meu prazer pela observação destrutiva e o meu gosto pelo ridículo raramente são bem-vindos. O sentido de humor que aprecio (e a que recorro implacavelmente) torna-me execrável. E delicioso.
Tentando divulgar, por todos os meios, o romance que escrevi, principiei a colaborar num blogue colectivo, que uma livraria disponibiliza aos autores que se auto-editam. Estou atento às reacções do público. Regresso continuamente ao computador, procuro na página do facebook, associada ao blogue, as reacções dos leitores; conto os «gosto». E é fantástico: um conto policial que tenho vindo a construir, episódio após episódio, e cujas personagens são animais, uma espécie de fábula negra, em suma, raramente consegue 5 ou 6 «gosto». A ideia é original, a fábula é culta: pisca o olho a Blacksad, ao detective Pepe Carvalho, que vai ensaiando receitas culinárias enquanto medita nos crimes, ao imortal Hercule Poirot. Tem humor, tem tensão, mistério. Inútil. 5 «gosto»; «6», na melhor das hipóteses.
Em contrapartida - desculpem-me a franqueza -, escreve no mesmo blogue um jovem, autor de certa saga nórdica, com deusas e deuses, cavalos e talismãs mitológicos. Ele faz desenhos: ora a deusa de que mais gosta, ora o guerreiro temível. A ideia é requentada, desculpem-me, desculpem-me, desculpem-me, mas, sobretudo, este jovem é um desesperante assassino da língua portuguesa. Um Odin cujo martelo se volta sobretudo contra a gramática. Custa ler, não tem interesse, é pesado, previsível - mas já o vi chegar aos 17 «gosto».
Ou então, o caso daquele senhor que se dedica ao que ele chama poesia. Sem sair do mesmo blogue. Ama, rima, associa a chuva ao choro. É paupérrimo. É de uma candura, de uma inocência, não tem talento, é verdade (não se pode ter tudo), mas tem tão boas intenções e uma sensibilidade quase divina (refiro-me à sensibilidade para o lugar comum). Talvez não tenha falado de paz, mas poderia. É o género. Pois não imaginam a catadupa de «gosto», os comentários que lhe garantem «lindo!» ou «que comovente», os :).
Entretanto, os meus episódios policiais prosseguem, entre as frases patéticas do poeta e a saga contra a língua portuguesa. Uma senhora escreve sobre uma menina e a grandeza do seu coração, e trás - dezenas de «gosto». Eu não tenho leitores, vá-se lá saber porquê. A ironia não pega, nem o sarcasmo, nem talvez a cultura. O lugar comum tem sempre leitores - satisfeitos consigo mesmos, prontos a premiar o medíocre. O raro não vinga.
É um post horroroso? Carregado de veneno e ressentimento? Eu sei. Eu sei. Eu sei. Era melhor não o ter escrito. Mas, já que o escrevi, por favor não o leiam.
Tentando divulgar, por todos os meios, o romance que escrevi, principiei a colaborar num blogue colectivo, que uma livraria disponibiliza aos autores que se auto-editam. Estou atento às reacções do público. Regresso continuamente ao computador, procuro na página do facebook, associada ao blogue, as reacções dos leitores; conto os «gosto». E é fantástico: um conto policial que tenho vindo a construir, episódio após episódio, e cujas personagens são animais, uma espécie de fábula negra, em suma, raramente consegue 5 ou 6 «gosto». A ideia é original, a fábula é culta: pisca o olho a Blacksad, ao detective Pepe Carvalho, que vai ensaiando receitas culinárias enquanto medita nos crimes, ao imortal Hercule Poirot. Tem humor, tem tensão, mistério. Inútil. 5 «gosto»; «6», na melhor das hipóteses.
Em contrapartida - desculpem-me a franqueza -, escreve no mesmo blogue um jovem, autor de certa saga nórdica, com deusas e deuses, cavalos e talismãs mitológicos. Ele faz desenhos: ora a deusa de que mais gosta, ora o guerreiro temível. A ideia é requentada, desculpem-me, desculpem-me, desculpem-me, mas, sobretudo, este jovem é um desesperante assassino da língua portuguesa. Um Odin cujo martelo se volta sobretudo contra a gramática. Custa ler, não tem interesse, é pesado, previsível - mas já o vi chegar aos 17 «gosto».
Ou então, o caso daquele senhor que se dedica ao que ele chama poesia. Sem sair do mesmo blogue. Ama, rima, associa a chuva ao choro. É paupérrimo. É de uma candura, de uma inocência, não tem talento, é verdade (não se pode ter tudo), mas tem tão boas intenções e uma sensibilidade quase divina (refiro-me à sensibilidade para o lugar comum). Talvez não tenha falado de paz, mas poderia. É o género. Pois não imaginam a catadupa de «gosto», os comentários que lhe garantem «lindo!» ou «que comovente», os :).
Entretanto, os meus episódios policiais prosseguem, entre as frases patéticas do poeta e a saga contra a língua portuguesa. Uma senhora escreve sobre uma menina e a grandeza do seu coração, e trás - dezenas de «gosto». Eu não tenho leitores, vá-se lá saber porquê. A ironia não pega, nem o sarcasmo, nem talvez a cultura. O lugar comum tem sempre leitores - satisfeitos consigo mesmos, prontos a premiar o medíocre. O raro não vinga.
É um post horroroso? Carregado de veneno e ressentimento? Eu sei. Eu sei. Eu sei. Era melhor não o ter escrito. Mas, já que o escrevi, por favor não o leiam.
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