Lisboa, anos 50.
Lopes era um homem sem metafísica [poderia ter-lhe até chamado Esteves, se não fosse o desacerto da época] nem, aparentemente, sonhos de espécie alguma. A sua opacidade é notória: veste sempre o mesmo fato escuro e gravata e entra todas as manhãs, muito franzino e adunco, num café onde pequeno-almoça ao balcão. A sua mulher, a quem nada pede e de quem nada espera para além dos gestos habituais e de uma relação de rotina, chega ao café uns minutos depois dele. Ela passara entretanto pela papelaria, onde tinha ido buscar um jornal desportivo, que lhe estende e ele lê, sem emoção. Manhã após manhã vemo-los pois entrar, primeiro ele - magro, igual a si ao longo dos anos - e a seguir ela, engordando e tornando-se mais feia e desarranjada.
Uma tarde, Lopes não regressa a casa após um dia de trabalho burocrático. E a aflição da mulher não resolve esta ausência. Procura-se o homem por toda a parte. Ninguém tem ideia de investigar em prisões. [A que propósito estaria o Lopes numa prisão?] Nem o Lopes tinha propriamente «amigos» que pudessem acolhê-lo: apenas colegas. Em contrapartida, da única vizinha que tem telefone, a senhora Lopes faz, muito chorosa, inúmeros telefonemas para hospitais. Teria sofrido um acidente? Tido algum ataque maléfico? Para onde pode desaparecer um homem assim? [Assaltado? Em pleno dia? Na Lisboa dos 50?] Dão-no como morto, ao fim de meses de buscas infrutíferas.
Cinco anos mais tarde, uma outra vizinha, de visita a uns filhos em Moçambique, garante ter encontrado o Lopes. Mas, de certa forma, um "outro" Lopes: marido de uma mulata, pai de três filhos (dois rapazes gémeos, com dois anos, e um bebé de meses); joga [conta-se que perdeu e refez fortunas, em poucos dias], caça feras, em aventuras que narra em grupos de senhoras, entre gargalhadas, sempre de uísque na mão; conta anedotas apimentadas, veste-se de caçador (ou de smoking), como numa perpétua mascarada. Chamam-lhe Dias. A vizinha muda várias vezes de opinião. Será, este Dias, o Lopes que ela conheceu? Poderá tratar-se realmente do mesmo homem?
quarta-feira, outubro 26, 2011
sábado, outubro 15, 2011
A DIFICULDADE INESPERADA DAS DISCIPLINAS FÁCEIS
Há um equívoco de que alguns Encarregados de Educação podem ser vítimas. Previno-os, embora para mim seja já demasiado tarde: fui um dos Encarregados de Educação que se deixaram enganar.
A questão é sempre a mesma. Pensa-se que ao escolher certas disciplinas, aparentemente mais fáceis, se ajuda o respectivo encarregando a ter uma nota razoável e, portanto, a melhorar a média. O problema é que, geralmente, as disciplinas "fáceis" são as que são leccionadas por professores complexados. Os quais levaram anos odiando, primeiramente, o facto de as suas disciplinas serem consideradas "fáceis"; e que se dedicam, quando conseguem, a torná-las mais "rigorosas", "exigentes" e "difíceis" do que as demais.
Isso já acontecia com Educação Física. [Ginástica, no meu tempo]. Cansados de serem professores menores, aqueles a que ninguém ligava nas salas de professores, com os seus fatos de treino e os apitos ao peito, aproveitaram conscienciosamente o facto de a Educação Física ter passado a ser levada a sério, contando para reprovação. Desde aí, alunos de óculos, autênticos ratos de biblioteca, cromos completos, com laboratórios de Física e Química montados no quarto, onde, secretamente, podem ter inventado o meio de viajar no tempo, vêem, apesar de 20 em tudo o mais, a sua média comprometida pelo professor de Educação Física. Um tipo, nos tempos que correm, com doutoramento na Universidade do Mourinho. Que abre calhamaços cheios de gráficos que indicam precisamente por que o brilhante aluno de Ciências não pode ter mais do que 10 a Educação Física...
Sucede o mesmo com o Espanhol. Dios! Não poderia ter optado por Francês, uma língua culta (apesar de já não ser bem o que era...?) Não podia ter optado por Literatura Portuguesa? Por que raio me passou pela cabeça de que todos os portugueses são bons em Espanhol? Que se o meu filho aprendesse a dizer correctamente «Los caramelos de Badajoz son muy buenos» fazia a disciplina com uma classificação elevada?
Apanhou pela frente um professor arrogante e intransigente, que se deliciava a ouvir os alunos [para treinarem a pronúncia castelhana], lendo, em voz alta, páginas da sua dissertação de doutoramento [não sei em quê]; que se ofendia com desvios na acentuação e lhes exigia respostas sem erros em testes que eu próprio não entendia.
Não quero desmerecer a Educação Física (até porque tenho pânico de que um professor de EF leia este post) nem a língua do país onde foi criado o sublime D. Quijote. Mas caramba - têm de ser mais rigorosos e mais sérios do que todos os outros - a Matemática, a Física e Química, a Literatura...?
A questão é sempre a mesma. Pensa-se que ao escolher certas disciplinas, aparentemente mais fáceis, se ajuda o respectivo encarregando a ter uma nota razoável e, portanto, a melhorar a média. O problema é que, geralmente, as disciplinas "fáceis" são as que são leccionadas por professores complexados. Os quais levaram anos odiando, primeiramente, o facto de as suas disciplinas serem consideradas "fáceis"; e que se dedicam, quando conseguem, a torná-las mais "rigorosas", "exigentes" e "difíceis" do que as demais.
Isso já acontecia com Educação Física. [Ginástica, no meu tempo]. Cansados de serem professores menores, aqueles a que ninguém ligava nas salas de professores, com os seus fatos de treino e os apitos ao peito, aproveitaram conscienciosamente o facto de a Educação Física ter passado a ser levada a sério, contando para reprovação. Desde aí, alunos de óculos, autênticos ratos de biblioteca, cromos completos, com laboratórios de Física e Química montados no quarto, onde, secretamente, podem ter inventado o meio de viajar no tempo, vêem, apesar de 20 em tudo o mais, a sua média comprometida pelo professor de Educação Física. Um tipo, nos tempos que correm, com doutoramento na Universidade do Mourinho. Que abre calhamaços cheios de gráficos que indicam precisamente por que o brilhante aluno de Ciências não pode ter mais do que 10 a Educação Física...
Sucede o mesmo com o Espanhol. Dios! Não poderia ter optado por Francês, uma língua culta (apesar de já não ser bem o que era...?) Não podia ter optado por Literatura Portuguesa? Por que raio me passou pela cabeça de que todos os portugueses são bons em Espanhol? Que se o meu filho aprendesse a dizer correctamente «Los caramelos de Badajoz son muy buenos» fazia a disciplina com uma classificação elevada?
Apanhou pela frente um professor arrogante e intransigente, que se deliciava a ouvir os alunos [para treinarem a pronúncia castelhana], lendo, em voz alta, páginas da sua dissertação de doutoramento [não sei em quê]; que se ofendia com desvios na acentuação e lhes exigia respostas sem erros em testes que eu próprio não entendia.
Não quero desmerecer a Educação Física (até porque tenho pânico de que um professor de EF leia este post) nem a língua do país onde foi criado o sublime D. Quijote. Mas caramba - têm de ser mais rigorosos e mais sérios do que todos os outros - a Matemática, a Física e Química, a Literatura...?
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