sábado, junho 15, 2013
quinta-feira, maio 09, 2013
equívocos
Tenho alergias e manias.
Quando toco em torneiras, maçanetas, botões de elevador, envergo as minhas luvas de latex.
Sou, por outro lado, um incompreendido: no elevador, sozinho com a minha vizinha, não sei por que teria ela ficado tão assustada quando me viu calçar as luvas para premir o botão do 8º [o meu andar].
Nem porque soltou aquele grito, quando as portas fecharam...
segunda-feira, maio 06, 2013
AINDA HOJE NÃO SEI BEM QUEM ERA O QUÊ
Quando íamos na ambulância, o doutor disse-nos.
«A senhora acaba de me telefonar.»
«A senhora?», perguntou o Ismael. «Mas então a senhora não é precisamente a maluquinha que vamos buscar?»
O doutor olhou-o severamente por sobre os óculos.
«Ismael. Em primeiro lugar, nós não usamos essa linguagem. Não dizemos "maluquinho". Certo? Falamos de "condição", ou de "perturbação". Em segundo lugar, pensávamos que íamos buscar uma maluquinha... perdão, uma mulher com certa condição mental; mas afinal a mulher telefonou-nos. Esclareceu que o marido é que é pírulas... ai, quero dizer, está perturbado... mas que temos de fingir que a pessoa perturbada é ela. Percebem? Explicou-me tudo muito bem. Se não for assim, o homem fica absolutamente intratável. Portanto, já sabem. O gajo é doido, mas fingimos que a doida é ela. Falamos muito bem com o senhor, deixamos que ele diga o que lhe aprouver sobre a condição da mulher, regressamos todos como se fosse para a internar a ela... e quando estivermos no hospital, o tipo fica e a senhora volta para casa...»
«História confusa, não?», ainda considerou o Ismael.
Chegámos. Fomos recebidos pela mulher, absolutamente impecável. O homem juntou-se-nos imediatamente. Falava-nos do estado da esposa, que parecia «muito tranquila», e «por acaso» até tinha dormido bem «essa noite», mas estava a «atravessar um momento de grande instabilidade psicológica».
O Ismael, surpreendido, soprou-me: «Quem o ouve, não o leva preso. Como estes doidos enganam, ein?»
No hospital, deu-se a quasi-tragédia.
Agarrámos no homem, perante a expressão condoída da mulher, e isolámo-lo. Gritava, entre as grades: «É um engano! Oiçam! A minha mulher é que é para ficar! Oiçam! Estão a cometer um erro terrível! Oiçam!»
«Acalme-se», respondia-lhe o doutor, de cá de fora.
A mulher chorou. Levámo-la a casa.
Só se deu pelo erro dois dias depois.
A pessoa que sofria de «uma condição» era, de facto, a mulher. Matara entretanto o vizinho.
«A senhora acaba de me telefonar.»
«A senhora?», perguntou o Ismael. «Mas então a senhora não é precisamente a maluquinha que vamos buscar?»
O doutor olhou-o severamente por sobre os óculos.
«Ismael. Em primeiro lugar, nós não usamos essa linguagem. Não dizemos "maluquinho". Certo? Falamos de "condição", ou de "perturbação". Em segundo lugar, pensávamos que íamos buscar uma maluquinha... perdão, uma mulher com certa condição mental; mas afinal a mulher telefonou-nos. Esclareceu que o marido é que é pírulas... ai, quero dizer, está perturbado... mas que temos de fingir que a pessoa perturbada é ela. Percebem? Explicou-me tudo muito bem. Se não for assim, o homem fica absolutamente intratável. Portanto, já sabem. O gajo é doido, mas fingimos que a doida é ela. Falamos muito bem com o senhor, deixamos que ele diga o que lhe aprouver sobre a condição da mulher, regressamos todos como se fosse para a internar a ela... e quando estivermos no hospital, o tipo fica e a senhora volta para casa...»
«História confusa, não?», ainda considerou o Ismael.
Chegámos. Fomos recebidos pela mulher, absolutamente impecável. O homem juntou-se-nos imediatamente. Falava-nos do estado da esposa, que parecia «muito tranquila», e «por acaso» até tinha dormido bem «essa noite», mas estava a «atravessar um momento de grande instabilidade psicológica».
O Ismael, surpreendido, soprou-me: «Quem o ouve, não o leva preso. Como estes doidos enganam, ein?»
No hospital, deu-se a quasi-tragédia.
Agarrámos no homem, perante a expressão condoída da mulher, e isolámo-lo. Gritava, entre as grades: «É um engano! Oiçam! A minha mulher é que é para ficar! Oiçam! Estão a cometer um erro terrível! Oiçam!»
«Acalme-se», respondia-lhe o doutor, de cá de fora.
A mulher chorou. Levámo-la a casa.
Só se deu pelo erro dois dias depois.
A pessoa que sofria de «uma condição» era, de facto, a mulher. Matara entretanto o vizinho.
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a crise leva-nos a inventar estórias destas
quarta-feira, abril 17, 2013
ADAPTAÇÃO DO DITADO AOS TEMPOS
Vão-se os anéis, já que já se foram os dedos.
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aforismos kaosticos,
desorgulhos pátrios
APÊNDICES
Urinando num WC público, Alonzo estranhou o seu próprio pénis; parecia-lhe um estrangeiro.
E perguntou-se: «Sinto isto como uma parte do meu eu, ou como um mero apêndice?»
Olhou para o seu vizinho de mictório.
Para aquele, pelo menos, tudo parecia muito claro: era o seu próprio pénis; todo o demais corpo é que não passava de um apêndice.
E perguntou-se: «Sinto isto como uma parte do meu eu, ou como um mero apêndice?»
Olhou para o seu vizinho de mictório.
Para aquele, pelo menos, tudo parecia muito claro: era o seu próprio pénis; todo o demais corpo é que não passava de um apêndice.
OS NOMES DOS DEDOS
Os dedos dos pés também terão nomes?
Idênticos aos das mãos não serão certamente.
Ou há um indicador no pé? E um anelar?
Idênticos aos das mãos não serão certamente.
Ou há um indicador no pé? E um anelar?
sábado, abril 13, 2013
TEORIA MATERIALISTA DO AMOR
Ou Deus existe, ou Darwin tem razão.
Se Darwin tem razão, o homem não é senão um animal que evoluiu.
Se o homem é simplesmente um animal que evoluiu, então os seus sentimentos mais nobres e sublimes - o amor, a generosidade, e por aí fora - não são mais do que instintos que evoluíram.
A ser assim, os sentimentos ideais são somente conceitos que desejaríamos e idealizámos: na sua realidade trazem ainda agarrada toda a viscosidade do que é primitivo e selvagem. Transformaram-se, é claro, mas não se tornaram - nem nos tornaram - angélicos ou divinos.
Podemos, por vezes, querer crer que não é tanto assim.
Mas, de vez em quando, convém-nos um banho de realidade.
Se Darwin tem razão, o homem não é senão um animal que evoluiu.
Se o homem é simplesmente um animal que evoluiu, então os seus sentimentos mais nobres e sublimes - o amor, a generosidade, e por aí fora - não são mais do que instintos que evoluíram.
A ser assim, os sentimentos ideais são somente conceitos que desejaríamos e idealizámos: na sua realidade trazem ainda agarrada toda a viscosidade do que é primitivo e selvagem. Transformaram-se, é claro, mas não se tornaram - nem nos tornaram - angélicos ou divinos.
Podemos, por vezes, querer crer que não é tanto assim.
Mas, de vez em quando, convém-nos um banho de realidade.
CONVERSAS COM DAISY
Daisy, de 7 anos, diz-me que tem um namorado.
Eu: Bem! Tenho de falar com ele.
Daisy: Para quê?
Eu: Para saber se tem boas intenções, percebes? Se é sério.
Daisy: Ah, mas não quero que ele seja sério. Quero que seja muito atento, mas não sério. [Não percebo onde quer ela chegar com esta bizarra dicotomia...]
Eu: Ó Daisy, tenho de saber se ele é uma pessoa de trabalho, é importante saber em que pensa trabalhar...
Daisy: Trabalhar?! Ó pai, ele tem 7 anos!
Eu: Bem! Tenho de falar com ele.
Daisy: Para quê?
Eu: Para saber se tem boas intenções, percebes? Se é sério.
Daisy: Ah, mas não quero que ele seja sério. Quero que seja muito atento, mas não sério. [Não percebo onde quer ela chegar com esta bizarra dicotomia...]
Eu: Ó Daisy, tenho de saber se ele é uma pessoa de trabalho, é importante saber em que pensa trabalhar...
Daisy: Trabalhar?! Ó pai, ele tem 7 anos!
terça-feira, março 19, 2013
PESSIMISMOS KAOSTICOS II
Diz-se que a perspectiva muda quando se cresce; que por isso, quando, uma vez adultos, revisitamos os lugares e as coisas da infância, as encontramos bizarramente diminuídas. Tenho notado muito isso. Sobretudo no que toca ao dinheiro.
PESSIMISMOS KAOSTICOS I
Há pessoas que não aproveitam a vida, é verdade. Mas, caramba: há pessoas que a estúpida da vida não sabe aproveitar.
segunda-feira, março 04, 2013
PROBABILIDADE
Se acreditas na tua obra e continuas a imaginar que deverá vir a ser publicada, persiste em enviá-la regularmente a concursos. Um dia, a qualidade do que fazes poderá vir a ser bafejada pela sorte; quero eu dizer: a sorte de acertares na ínfima probabilidade de alguma vez se tratar de um concurso em que o vencedor não esteja de antemão decidido.
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claro que é ressentimento,
sim
sábado, fevereiro 23, 2013
AI QUE BERGONHA
Estou muito arrependido e até envergonhado do mal que pratiquei.
Não que me lembre de ter feito qualquer coisa tão terrível (o que possivelmente só piora a gravidade do acto). Mas fi-lo seguramente; e não estava sozinho: ou por que outra razão mereceríamos este governo? Este Passos? Este Relvas? Este Crato?
Posso ainda escolher uma troca de castigo? Ser enforcado ou esquartejado, por exemplo?
Não? Nem sequer empalado?
Não que me lembre de ter feito qualquer coisa tão terrível (o que possivelmente só piora a gravidade do acto). Mas fi-lo seguramente; e não estava sozinho: ou por que outra razão mereceríamos este governo? Este Passos? Este Relvas? Este Crato?
Posso ainda escolher uma troca de castigo? Ser enforcado ou esquartejado, por exemplo?
Não? Nem sequer empalado?
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sociedade anónima de castigos ilimitada
domingo, fevereiro 10, 2013
AS IMPERFEIÇÕES TÊM AS SUAS VIRTUALIDADES
Se passarem em revista os vossos amigos, poderão deparar-se com uma evidência espantosa: não é verdade que todos conhecemos pessoas cujo fascínio e interesse residem - principalmente, e talvez até unicamente - no desenho de uma certa e singular imperfeição?
quinta-feira, fevereiro 07, 2013
CASAMENTOS
Sou um heterossexual descomplexado e assumidíssimo.
Ainda assim: se o principal objectivo de um casamento é tornar-se uma coabitação feliz e sem dramas, então, amores e paixão à parte, suspeito que conheço mais homens do que mulheres com quem poderia ter um casamento bem sucedido.
Ainda assim: se o principal objectivo de um casamento é tornar-se uma coabitação feliz e sem dramas, então, amores e paixão à parte, suspeito que conheço mais homens do que mulheres com quem poderia ter um casamento bem sucedido.
O QUE TEM DE SER TEM MUITA FORÇA
«Então, a passear por aqui?», pergunta um, de óculos filiformes.
«Tem de ser», responde ela, perigosamente obesa.
Por que tem de ser, não sei. Ela saberá.
Uma coisa sei:
A linguagem ou é poesia, ou tende a ser uma das variadas variantes disto.
«Tem de ser», responde ela, perigosamente obesa.
Por que tem de ser, não sei. Ela saberá.
Uma coisa sei:
A linguagem ou é poesia, ou tende a ser uma das variadas variantes disto.
quinta-feira, janeiro 31, 2013
PERSISTÊNCIA
Os portugueses nunca mais aprendem:
Então não é que, agora, sobrevivem acima das suas possibilidades?
Então não é que, agora, sobrevivem acima das suas possibilidades?
segunda-feira, janeiro 07, 2013
O ROUBO
Estava num bar, lamentando-me da crise com o empregado de mesa, que me escutava pacientemente, quando percebi que era tarde.
Levanto-me. Despeço-me, enquanto enfio a mão no bolso interior do casaco.
Procuro a carteira. Não a sinto. Enfio mais fundamente os meus dedos. Retiro a mão. Apalpo-me. Bato sobre todos os bolsos. Nada de carteira.
Dou passos, meio zonzo, viro a cabeça em todas as direcções. E bruscamente vejo o suspeito que se encaminha para a saída.
O suspeito é um homem que só não caminha mais rapidamente porque não consegue. Treme e arrasta a perna. Talvez de um AVC.
Aproximo-me, convicto.
«O senhor estava sentado ao meu lado. Deu-me um encontrão. Desapareceu-me a carteira.»
Não me diz nada. Olha-me, tremente, como se não tivesse compreendido as minhas palavras.
Vejo, então, que ele nem teve tempo de guardar a carteira. Trá-la sob a axila.
«É a isto que me refiro», digo, triunfante.
Puxo a carteira.
Sinto-me furioso. Empurro-o. Não reage. Tenho-lhe raiva. Tenho-lhe ódio. Estou furibundo. Dou-lhe um soco.
Treme, sempre sem uma palavra.
Verifico a carteira. O tipo não deve ter tido tempo para sacar o dinheiro. Abro. Está ali o dinheiro. E os cartões. As fotos. Não são meus, são dele. É tudo dele.
Olho para o balcão, espantado. A minha carteira. Ali. No chão.
Levanto-me. Despeço-me, enquanto enfio a mão no bolso interior do casaco.
Procuro a carteira. Não a sinto. Enfio mais fundamente os meus dedos. Retiro a mão. Apalpo-me. Bato sobre todos os bolsos. Nada de carteira.
Dou passos, meio zonzo, viro a cabeça em todas as direcções. E bruscamente vejo o suspeito que se encaminha para a saída.
O suspeito é um homem que só não caminha mais rapidamente porque não consegue. Treme e arrasta a perna. Talvez de um AVC.
Aproximo-me, convicto.
«O senhor estava sentado ao meu lado. Deu-me um encontrão. Desapareceu-me a carteira.»
Não me diz nada. Olha-me, tremente, como se não tivesse compreendido as minhas palavras.
Vejo, então, que ele nem teve tempo de guardar a carteira. Trá-la sob a axila.
«É a isto que me refiro», digo, triunfante.
Puxo a carteira.
Sinto-me furioso. Empurro-o. Não reage. Tenho-lhe raiva. Tenho-lhe ódio. Estou furibundo. Dou-lhe um soco.
Treme, sempre sem uma palavra.
Verifico a carteira. O tipo não deve ter tido tempo para sacar o dinheiro. Abro. Está ali o dinheiro. E os cartões. As fotos. Não são meus, são dele. É tudo dele.
Olho para o balcão, espantado. A minha carteira. Ali. No chão.
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