Seguindo o conselho da minha amiga São - que me enviou um comentário para este blogue vazio de outros comentários, sem medo de parecer ridícula: é nesses momentos que consigo avaliar a extraordinária dimensão da sua amizade -, vou, hoje, narrar a experiência da minha conversa sobre o Amor Platónico.
Em primeiro lugar, cheguei cedo; chego sempre cedo: não disse que me «vinha» sempre cedo, mas que «chegava», referindo-me, como é evidente, a outros acontecimentos sociais importantes para além do sexo.
Fiquei no carro a rever apontamentos, muito nervoso, com um casaco de bombazina que a São, quando apareceu, não perdeu oportunidade de comentar: «Ena, pareces mesmo um conferencista!»
Foi dali mostrar-me «o» lugar em que eu seria executado dentro em pouco, o Centro de Recursos, magnífico, muito bem apetrechado, com música de fundo, muitas flores sobre a mesa em que eu me apoiaria.
Depois, levou-me a tomar um café à sala dos professores, onde nos esperava o presidente do Conselho Executivo, e meu amigo - que pouco tenho visto - José Guerreiro, a quem expliquei que estava tão nervoso que nem seria capaz de alterar a introdução do meu texto («Sinto-me muito feliz por ver aqui tanta gente reunida»), ainda que só estivessem dois ou três alunos presentes. Curiosamente, o Guerreiro e a São tomaram esta advertência por uma piada, e riram muito, incapazes de compreender a que ponto me encontrava de facto nervoso.
De novo no Centro de Recursos, escondi-me num canto, enquanto se abriam as portas e entrava por ali uma massa de alunos, soltando no ar ruídos de telemóvel e apartes sarcásticos: «Agora é que vamos ficar a saber o que é o amor...!»
De repente, a São já estava a apresentar-me. E mais depressa ainda, ali estava eu sozinho, entalado entre uma mesa com flores e um grupo de alunos diversificados, entre os quais espreitavam as cabeças de duas ou três adultas, presumivelmente as professoras que tinham obrigado aqueles marmanjos a virem conversar comigo!
Principiei, pois, a falar. Os lábios pareciam colados: abria-os com uma dificuldade imensa, muito secos, como se se agarrassem um ao outro para não terem de se separar. E, entre alunas muito novas, completamente desinteressadas, que mantinham os olhos fixos nos seus telemóveis, deu-se ali, porém, uma espécie de encantamento amoroso, um pequeno encantamento que principiou a crescer, à medida que algumas outras raparigas (sim, sobretudo raparigas), mais velhas, talvez do 12º ano, entravam em diálogo comigo acerca deste assunto que não lhes dizia certamente nada - amor platónico? hoje em dia..? - mas de que se aproximavam genuinamente, como se reconhecessem que era, talvez, de um outro planeta que eu descia para comunicar e, no entanto, tivessem a expectativa (mais do que a convicção) de que os seres de outro planeta, com outros hábitos e outras mentes, revelam diferenças que vale a pena observar, que nos diluem as próprias certezas, que nos distanciam, por um momento, imperceptivelmente, dos nossos próprios hábitos...! Que, ainda que nos não mudem realmente, já de alguma maneira nos mudaram. Que, ainda que nos não mudem as respostas, já, de alguma forma, mudaram algumas das nossas perguntas...
Senti-me pleno. Daí em diante, cada momento do que sucedia era, ainda, um fragmento dessa plenitude. Foi tudo imperfeito, claro. No instante em que as coisas estão a acontecer e nos minutos seguintes, só temos consciência dos aspectos em que falhámos, no que poderia ter sido feito muito melhor. Mas alguns dias depois, só temos pena de que, mesmo imperfeito, mesmo incompleto, esse momento já tenha passado.
Não sou, portanto, platónico. É sempre de um momento real, imperfeito e tudo, que eu, depois, tenho saudades.
É sempre a realidade, mesmo imperfeita, que eu depois idealizo.
quarta-feira, fevereiro 22, 2006
segunda-feira, fevereiro 13, 2006
AMOR PLATÓNICO
A minha amiga São, que me sobrevaloriza certamente as capacidades e talentos oratórios, convidou-me, imagine-se, para aquilo a que chama uma «conversa» - na verdade uma conferência que eu próprio deverei dar no centro de recursos novinho em folha da sua escola. Fá-lo-ei com mais prazer do que perícia.
O tema é o amor platónico. No dia dos namorados, vejam bem. O amor platónico, portanto, debatido com jovens de uma sociedade e de um tempo em que o sexo se tornou não só importante, mas central.
Porque este blogue que ninguém ou poucos lêem há-de servir alguma vez para alguma coisa, deixem-me aproveitá-lo para praticar o que amanhã farei de viva voz: lançar ideias, seguir pistas, sublinhar alguma coisa acerca do amor platónico no meio de jovens para quem já nada, hoje em dia, é platónico.
Gostaria de principiar por lhes recordar que, historicamente (ou etimologicamente, talvez) o conceito de «amor platónico» se funda num equívoco. O que seria o amor segundo Platão (que hoje se confunde, comummente, com uma atracção puramente espiritual, idealizada, sem realização nem dimensão carnal), é tratado, afinal, pelo próprio Platão, no Banquete, de um modo que em nada se aproxima desse lugar comum em que acabaria por se converter.
No seu discurso, Diotima, dialogando com um Sócrates ainda jovem, explica-lhe o caminho que deve trilhar aquele que se quer iniciar nas artes do amor.
Numa primeira fase, terá de se passar pela paixão devoradora por outrem. Por uma única pessoa, mais do que isso - ou menos do que isso: por um corpo. Aquele ou aquela que me parece a mais bela, a quem me entrego como se nada e ninguém mais importasse, abrem-me o caminho. Esse - ou essa - é o meu iniciador.
Mais tarde, deverei descobrir que a beleza não reside unicamente numa pessoa. O meu amado, a minha amada, deverá ser, digamos, superado/a. Através, mas que pouco platónico tudo isto soa!, da descoberta de diversos amantes, de diversos corpos, de inúmeras pessoas, que me permitam desvendar em todas uma beleza comum, a beleza. Quando perceber que esta é una, que se não esgota num corpo nem num objecto e quando, então, me cansar dos corpos, inferiores ao próprio belo que exprimem, poderei erguer-me para fins mais elevados, compreender a beleza nas próprias leis, nas ideias...
Ou seja, não é em Platão que encontramos o amor platónico de que hoje falamos. É nos trovadores e poetas da Idade Média, nos artistas do Renascimento, nos cantores - geralmente jovens, geralmente pobres, cuja sensibilidade nervosa e culta os faz aspirar ardentemente a amores inacessíveis, a suspirar por damas prometidas a outros, ou casadas. Porque o lugar dos trovadores junto dos poderosos é ambíguo - por um lado, requisitados por estes, para que os divirtam, por outro lado, rebaixados, são os verdadeiros inventores do amor.De um amor idealizado, sonhado, cantado, irrealizado, irrealizável numa sociedade em que o que determina as uniões e os casamentos é a vontade de pais poderosos, de famílias ricas às quais as filhas não ousam desobedecer.
A minha tese é, pois, a de que há um carácter profundamente revolucionário no amor platónico - o de se opor a um sistema de casamentos de conveniência, em que o sentimento não conta e o desejo não tem lugar. (É simples compreendermos, a partir desta perspectiva, porque razão a História precisou de tanto tempo para deixar que sobreviesse, e se reconhecesse e afirmasse a existência de algo como o «desejo feminino»).
Que lugar e que sentido pode ter hoje, numa sociedade tão fortemente impregnada do sexual, uma concepção que, noutro tempo, teve um papel revolucionário?
A pergunta com que terminarei é: podemos, hoje, conceber o amor platónico como um tipo de amor específico, completo em si mesmo, satisfatório? Ou será sempre visto como uma forma de carência, de irrealização, de incumprimento, uma falta, uma falha, uma frustração?
É interessante, em torno dessa questão, usar as posições extremas de, por um lado, o movimento assexual, para quem o amor autêntico não passa pelo sexo - é outra coisa, à qual o sexo, quando se junta, se se junta, nada de essencial acrescenta -, e, por outro lado, de Marguerite Yourcenar, que em Memórias Piedosas nos relata uma amizade de infância entre duas meninas, perguntando-se se haveria, nesse laço, qualquer forma de sensualidade, para se responder, finalmente, que não há laço afectivo que não seja, no fundo de si, sensual...
Assim será. Até amanhã, São.
O tema é o amor platónico. No dia dos namorados, vejam bem. O amor platónico, portanto, debatido com jovens de uma sociedade e de um tempo em que o sexo se tornou não só importante, mas central.
Porque este blogue que ninguém ou poucos lêem há-de servir alguma vez para alguma coisa, deixem-me aproveitá-lo para praticar o que amanhã farei de viva voz: lançar ideias, seguir pistas, sublinhar alguma coisa acerca do amor platónico no meio de jovens para quem já nada, hoje em dia, é platónico.
Gostaria de principiar por lhes recordar que, historicamente (ou etimologicamente, talvez) o conceito de «amor platónico» se funda num equívoco. O que seria o amor segundo Platão (que hoje se confunde, comummente, com uma atracção puramente espiritual, idealizada, sem realização nem dimensão carnal), é tratado, afinal, pelo próprio Platão, no Banquete, de um modo que em nada se aproxima desse lugar comum em que acabaria por se converter.
No seu discurso, Diotima, dialogando com um Sócrates ainda jovem, explica-lhe o caminho que deve trilhar aquele que se quer iniciar nas artes do amor.
Numa primeira fase, terá de se passar pela paixão devoradora por outrem. Por uma única pessoa, mais do que isso - ou menos do que isso: por um corpo. Aquele ou aquela que me parece a mais bela, a quem me entrego como se nada e ninguém mais importasse, abrem-me o caminho. Esse - ou essa - é o meu iniciador.
Mais tarde, deverei descobrir que a beleza não reside unicamente numa pessoa. O meu amado, a minha amada, deverá ser, digamos, superado/a. Através, mas que pouco platónico tudo isto soa!, da descoberta de diversos amantes, de diversos corpos, de inúmeras pessoas, que me permitam desvendar em todas uma beleza comum, a beleza. Quando perceber que esta é una, que se não esgota num corpo nem num objecto e quando, então, me cansar dos corpos, inferiores ao próprio belo que exprimem, poderei erguer-me para fins mais elevados, compreender a beleza nas próprias leis, nas ideias...
Ou seja, não é em Platão que encontramos o amor platónico de que hoje falamos. É nos trovadores e poetas da Idade Média, nos artistas do Renascimento, nos cantores - geralmente jovens, geralmente pobres, cuja sensibilidade nervosa e culta os faz aspirar ardentemente a amores inacessíveis, a suspirar por damas prometidas a outros, ou casadas. Porque o lugar dos trovadores junto dos poderosos é ambíguo - por um lado, requisitados por estes, para que os divirtam, por outro lado, rebaixados, são os verdadeiros inventores do amor.De um amor idealizado, sonhado, cantado, irrealizado, irrealizável numa sociedade em que o que determina as uniões e os casamentos é a vontade de pais poderosos, de famílias ricas às quais as filhas não ousam desobedecer.
A minha tese é, pois, a de que há um carácter profundamente revolucionário no amor platónico - o de se opor a um sistema de casamentos de conveniência, em que o sentimento não conta e o desejo não tem lugar. (É simples compreendermos, a partir desta perspectiva, porque razão a História precisou de tanto tempo para deixar que sobreviesse, e se reconhecesse e afirmasse a existência de algo como o «desejo feminino»).
Que lugar e que sentido pode ter hoje, numa sociedade tão fortemente impregnada do sexual, uma concepção que, noutro tempo, teve um papel revolucionário?
A pergunta com que terminarei é: podemos, hoje, conceber o amor platónico como um tipo de amor específico, completo em si mesmo, satisfatório? Ou será sempre visto como uma forma de carência, de irrealização, de incumprimento, uma falta, uma falha, uma frustração?
É interessante, em torno dessa questão, usar as posições extremas de, por um lado, o movimento assexual, para quem o amor autêntico não passa pelo sexo - é outra coisa, à qual o sexo, quando se junta, se se junta, nada de essencial acrescenta -, e, por outro lado, de Marguerite Yourcenar, que em Memórias Piedosas nos relata uma amizade de infância entre duas meninas, perguntando-se se haveria, nesse laço, qualquer forma de sensualidade, para se responder, finalmente, que não há laço afectivo que não seja, no fundo de si, sensual...
Assim será. Até amanhã, São.
sexta-feira, fevereiro 03, 2006
A NÃO-DEFICIÊNCIA COMO INSUFICIÊNCIA
Em Portugal,os cidadãos deficientes são os melhores de nós. Claramente: digo-o sem qualquer espécie de paternalismo ou de complacência. Como se, para um português, ser não-deficiente fosse uma forma de diminuição psicológica,como se equivalesse a uma incapacidade congénita no uso da vida,a uma impreparação para avançar, para dispensar desculpas. Já notámos que os deficientes portugueses são, verdadeiramente, os que ganham medalhas nos jogos olímpicos, os que passam mesmo a linha que separa o sonho e o desejo, da acção que realiza.
Escrevo a propósito de um livro de que ouvi falar: feito por um homem que sofre de paralisia cerebral - mas está longe de sofrer de paralisia da inteligência ou da sensibilidade -, que faz de cada instante do seu quotidiano um exercício do pensar, e nos diz, sem ironia, que o seu estado físico, as suas próprias incapacidades, é que o levam a pensar tão intensa e constantemente, consiste num conjunto de aforismos, de pensamentos poéticos, de, quase no sentido bíblico, palavras de salvação. Do saber que subjaz ao seu livro, afirma: «Esta luz é apenas um pouco da luz que a minha humana cegueira alcança».
Vemo-lo no seu computador, escrevendo com dificuldade, vemo-lo procurar outros, vemo-lo dar-se em convívio e amor. Calculando que - precisamente porque sabemos como são, na sua maioria, os não-deficientes em Portugal - calculando como ser deficiente entre nós é, num certo sentido, ser-se ainda mais deficiente, ou seja, mais abandonado, mais desprotegido, calculando como a mínima realização é, para um cidadão deficiente, de um custo infinitamente superior ao de um cidadão deficiente de outro país europeu, não posso deixar de me interrogar sobre o que seria Portugal se o espírito de luta e sacrifício, e se a vontade fossem deste calibre.
Infelizmente, isso não é para todos!
Escrevo a propósito de um livro de que ouvi falar: feito por um homem que sofre de paralisia cerebral - mas está longe de sofrer de paralisia da inteligência ou da sensibilidade -, que faz de cada instante do seu quotidiano um exercício do pensar, e nos diz, sem ironia, que o seu estado físico, as suas próprias incapacidades, é que o levam a pensar tão intensa e constantemente, consiste num conjunto de aforismos, de pensamentos poéticos, de, quase no sentido bíblico, palavras de salvação. Do saber que subjaz ao seu livro, afirma: «Esta luz é apenas um pouco da luz que a minha humana cegueira alcança».
Vemo-lo no seu computador, escrevendo com dificuldade, vemo-lo procurar outros, vemo-lo dar-se em convívio e amor. Calculando que - precisamente porque sabemos como são, na sua maioria, os não-deficientes em Portugal - calculando como ser deficiente entre nós é, num certo sentido, ser-se ainda mais deficiente, ou seja, mais abandonado, mais desprotegido, calculando como a mínima realização é, para um cidadão deficiente, de um custo infinitamente superior ao de um cidadão deficiente de outro país europeu, não posso deixar de me interrogar sobre o que seria Portugal se o espírito de luta e sacrifício, e se a vontade fossem deste calibre.
Infelizmente, isso não é para todos!
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