quarta-feira, fevereiro 22, 2006

A EXPERIÊNCIA DO AMOR PLATÓNICO

Seguindo o conselho da minha amiga São - que me enviou um comentário para este blogue vazio de outros comentários, sem medo de parecer ridícula: é nesses momentos que consigo avaliar a extraordinária dimensão da sua amizade -, vou, hoje, narrar a experiência da minha conversa sobre o Amor Platónico.
Em primeiro lugar, cheguei cedo; chego sempre cedo: não disse que me «vinha» sempre cedo, mas que «chegava», referindo-me, como é evidente, a outros acontecimentos sociais importantes para além do sexo.
Fiquei no carro a rever apontamentos, muito nervoso, com um casaco de bombazina que a São, quando apareceu, não perdeu oportunidade de comentar: «Ena, pareces mesmo um conferencista!»
Foi dali mostrar-me «o» lugar em que eu seria executado dentro em pouco, o Centro de Recursos, magnífico, muito bem apetrechado, com música de fundo, muitas flores sobre a mesa em que eu me apoiaria.
Depois, levou-me a tomar um café à sala dos professores, onde nos esperava o presidente do Conselho Executivo, e meu amigo - que pouco tenho visto - José Guerreiro, a quem expliquei que estava tão nervoso que nem seria capaz de alterar a introdução do meu texto («Sinto-me muito feliz por ver aqui tanta gente reunida»), ainda que só estivessem dois ou três alunos presentes. Curiosamente, o Guerreiro e a São tomaram esta advertência por uma piada, e riram muito, incapazes de compreender a que ponto me encontrava de facto nervoso.

De novo no Centro de Recursos, escondi-me num canto, enquanto se abriam as portas e entrava por ali uma massa de alunos, soltando no ar ruídos de telemóvel e apartes sarcásticos: «Agora é que vamos ficar a saber o que é o amor...!»

De repente, a São já estava a apresentar-me. E mais depressa ainda, ali estava eu sozinho, entalado entre uma mesa com flores e um grupo de alunos diversificados, entre os quais espreitavam as cabeças de duas ou três adultas, presumivelmente as professoras que tinham obrigado aqueles marmanjos a virem conversar comigo!

Principiei, pois, a falar. Os lábios pareciam colados: abria-os com uma dificuldade imensa, muito secos, como se se agarrassem um ao outro para não terem de se separar. E, entre alunas muito novas, completamente desinteressadas, que mantinham os olhos fixos nos seus telemóveis, deu-se ali, porém, uma espécie de encantamento amoroso, um pequeno encantamento que principiou a crescer, à medida que algumas outras raparigas (sim, sobretudo raparigas), mais velhas, talvez do 12º ano, entravam em diálogo comigo acerca deste assunto que não lhes dizia certamente nada - amor platónico? hoje em dia..? - mas de que se aproximavam genuinamente, como se reconhecessem que era, talvez, de um outro planeta que eu descia para comunicar e, no entanto, tivessem a expectativa (mais do que a convicção) de que os seres de outro planeta, com outros hábitos e outras mentes, revelam diferenças que vale a pena observar, que nos diluem as próprias certezas, que nos distanciam, por um momento, imperceptivelmente, dos nossos próprios hábitos...! Que, ainda que nos não mudem realmente, já de alguma maneira nos mudaram. Que, ainda que nos não mudem as respostas, já, de alguma forma, mudaram algumas das nossas perguntas...

Senti-me pleno. Daí em diante, cada momento do que sucedia era, ainda, um fragmento dessa plenitude. Foi tudo imperfeito, claro. No instante em que as coisas estão a acontecer e nos minutos seguintes, só temos consciência dos aspectos em que falhámos, no que poderia ter sido feito muito melhor. Mas alguns dias depois, só temos pena de que, mesmo imperfeito, mesmo incompleto, esse momento já tenha passado.

Não sou, portanto, platónico. É sempre de um momento real, imperfeito e tudo, que eu, depois, tenho saudades.
É sempre a realidade, mesmo imperfeita, que eu depois idealizo.

1 comentário:

Gil Duarte disse...

Outra??? A sério? Então, pelas minhas contas, este blogue tem já três leitores, em alturas de engarrafamentos, talvez mesmo quatro. Sinto-me esmagado pela responsabilidade. Não sei se aguento tanta pressão. Tempo de cerrar as portas e regressar à solidão?