segunda-feira, fevereiro 13, 2006

AMOR PLATÓNICO

A minha amiga São, que me sobrevaloriza certamente as capacidades e talentos oratórios, convidou-me, imagine-se, para aquilo a que chama uma «conversa» - na verdade uma conferência que eu próprio deverei dar no centro de recursos novinho em folha da sua escola. Fá-lo-ei com mais prazer do que perícia.
O tema é o amor platónico. No dia dos namorados, vejam bem. O amor platónico, portanto, debatido com jovens de uma sociedade e de um tempo em que o sexo se tornou não só importante, mas central.
Porque este blogue que ninguém ou poucos lêem há-de servir alguma vez para alguma coisa, deixem-me aproveitá-lo para praticar o que amanhã farei de viva voz: lançar ideias, seguir pistas, sublinhar alguma coisa acerca do amor platónico no meio de jovens para quem já nada, hoje em dia, é platónico.

Gostaria de principiar por lhes recordar que, historicamente (ou etimologicamente, talvez) o conceito de «amor platónico» se funda num equívoco. O que seria o amor segundo Platão (que hoje se confunde, comummente, com uma atracção puramente espiritual, idealizada, sem realização nem dimensão carnal), é tratado, afinal, pelo próprio Platão, no Banquete, de um modo que em nada se aproxima desse lugar comum em que acabaria por se converter.
No seu discurso, Diotima, dialogando com um Sócrates ainda jovem, explica-lhe o caminho que deve trilhar aquele que se quer iniciar nas artes do amor.
Numa primeira fase, terá de se passar pela paixão devoradora por outrem. Por uma única pessoa, mais do que isso - ou menos do que isso: por um corpo. Aquele ou aquela que me parece a mais bela, a quem me entrego como se nada e ninguém mais importasse, abrem-me o caminho. Esse - ou essa - é o meu iniciador.
Mais tarde, deverei descobrir que a beleza não reside unicamente numa pessoa. O meu amado, a minha amada, deverá ser, digamos, superado/a. Através, mas que pouco platónico tudo isto soa!, da descoberta de diversos amantes, de diversos corpos, de inúmeras pessoas, que me permitam desvendar em todas uma beleza comum, a beleza. Quando perceber que esta é una, que se não esgota num corpo nem num objecto e quando, então, me cansar dos corpos, inferiores ao próprio belo que exprimem, poderei erguer-me para fins mais elevados, compreender a beleza nas próprias leis, nas ideias...

Ou seja, não é em Platão que encontramos o amor platónico de que hoje falamos. É nos trovadores e poetas da Idade Média, nos artistas do Renascimento, nos cantores - geralmente jovens, geralmente pobres, cuja sensibilidade nervosa e culta os faz aspirar ardentemente a amores inacessíveis, a suspirar por damas prometidas a outros, ou casadas. Porque o lugar dos trovadores junto dos poderosos é ambíguo - por um lado, requisitados por estes, para que os divirtam, por outro lado, rebaixados, são os verdadeiros inventores do amor.De um amor idealizado, sonhado, cantado, irrealizado, irrealizável numa sociedade em que o que determina as uniões e os casamentos é a vontade de pais poderosos, de famílias ricas às quais as filhas não ousam desobedecer.

A minha tese é, pois, a de que há um carácter profundamente revolucionário no amor platónico - o de se opor a um sistema de casamentos de conveniência, em que o sentimento não conta e o desejo não tem lugar. (É simples compreendermos, a partir desta perspectiva, porque razão a História precisou de tanto tempo para deixar que sobreviesse, e se reconhecesse e afirmasse a existência de algo como o «desejo feminino»).

Que lugar e que sentido pode ter hoje, numa sociedade tão fortemente impregnada do sexual, uma concepção que, noutro tempo, teve um papel revolucionário?

A pergunta com que terminarei é: podemos, hoje, conceber o amor platónico como um tipo de amor específico, completo em si mesmo, satisfatório? Ou será sempre visto como uma forma de carência, de irrealização, de incumprimento, uma falta, uma falha, uma frustração?
É interessante, em torno dessa questão, usar as posições extremas de, por um lado, o movimento assexual, para quem o amor autêntico não passa pelo sexo - é outra coisa, à qual o sexo, quando se junta, se se junta, nada de essencial acrescenta -, e, por outro lado, de Marguerite Yourcenar, que em Memórias Piedosas nos relata uma amizade de infância entre duas meninas, perguntando-se se haveria, nesse laço, qualquer forma de sensualidade, para se responder, finalmente, que não há laço afectivo que não seja, no fundo de si, sensual...

Assim será. Até amanhã, São.

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