sexta-feira, fevereiro 03, 2006

A NÃO-DEFICIÊNCIA COMO INSUFICIÊNCIA

Em Portugal,os cidadãos deficientes são os melhores de nós. Claramente: digo-o sem qualquer espécie de paternalismo ou de complacência. Como se, para um português, ser não-deficiente fosse uma forma de diminuição psicológica,como se equivalesse a uma incapacidade congénita no uso da vida,a uma impreparação para avançar, para dispensar desculpas. Já notámos que os deficientes portugueses são, verdadeiramente, os que ganham medalhas nos jogos olímpicos, os que passam mesmo a linha que separa o sonho e o desejo, da acção que realiza.
Escrevo a propósito de um livro de que ouvi falar: feito por um homem que sofre de paralisia cerebral - mas está longe de sofrer de paralisia da inteligência ou da sensibilidade -, que faz de cada instante do seu quotidiano um exercício do pensar, e nos diz, sem ironia, que o seu estado físico, as suas próprias incapacidades, é que o levam a pensar tão intensa e constantemente, consiste num conjunto de aforismos, de pensamentos poéticos, de, quase no sentido bíblico, palavras de salvação. Do saber que subjaz ao seu livro, afirma: «Esta luz é apenas um pouco da luz que a minha humana cegueira alcança».
Vemo-lo no seu computador, escrevendo com dificuldade, vemo-lo procurar outros, vemo-lo dar-se em convívio e amor. Calculando que - precisamente porque sabemos como são, na sua maioria, os não-deficientes em Portugal - calculando como ser deficiente entre nós é, num certo sentido, ser-se ainda mais deficiente, ou seja, mais abandonado, mais desprotegido, calculando como a mínima realização é, para um cidadão deficiente, de um custo infinitamente superior ao de um cidadão deficiente de outro país europeu, não posso deixar de me interrogar sobre o que seria Portugal se o espírito de luta e sacrifício, e se a vontade fossem deste calibre.
Infelizmente, isso não é para todos!

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