sábado, dezembro 23, 2006

AS BOAS SURPRESAS SÃO SEMPRE POSSÍVEIS

Para mim, que sou um imparável leitor e um constante re-leitor de Eça de Queirós, com quem tenho querido aprender a ironia, o humor, a escrita até, foi um momento saturado de melancolia, talvez de angústia, aquele em que descobri que o esgotara. Isto é: que poderia continuar a relê-lo, que iria certamente relê-lo pela vida fora, mas, morto que estava o escritor, completada que estava a obra, não me tornaria a ser dado o prazer de abrir pela primeira vez mais algum livro da sua autoria.

E era com nostalgia que me recordava de como, há uns quantos anos, quando já pensava tê-lo esgotado (quando senti esse primeiro baque), viria a descobrir, com uma surpresa encantada, que, afinal, nunca tinha lido, vá-se lá saber porquê, um seu texto fundamental: nada mais nada menos do que o delicioso A Capital.

Lembro-me da alegria com que o comprei na fnac, a impaciência com que corri para casa com ele num saco cor-de-laranja, o leve receio da desilusão, o gosto com que me detive na capa trivial, igual a todas as capas da sua obra, a tremente curiosidade com que fui mergulhando, passando as páginas, soltando-me do nervosismo, fruindo, reencontrando o meu Eça de sempre...

Mas, para uma suspresa dessas, não há bis. Era já bem bom que me tivesse caído do céu essa breve suspensão do destino, esse admirável adiamento do fecho. Lido A Capital, agora sim, esgotara realmente o meu querido autor...

Isto, se não mencionar, claro, um outro texto seu, que nunca me interessara, que me tinham oferecido há uns Natais mas eu nunca quisera sequer iniciar: A Tragédia da Rua das Flores, de que tão mal ouvira falar. Que era um rascunho, um borrão, uma coisa menoríssima, com repetições, contradições, personagens cujo nome não se conserva ao longo das páginas, absurdos vários!

Foi só por descargo de consciência, ou em busca de um substituto, mesmo menor, para um vício arreigado, que, por estes dias, me debrucei, contudo, sobre a «Tragédia». E, caramba, não faço mais suspense - lá estava o Eça: sob as debilidades de uma obra que o autor não levara muito a sério, que deixara para trás, ao abandono, enjeitada, ali se erguia e brilhava, e se ergue!, e brilha!, tudo o que nele me entusiasma, me apura o espírito crítico, me afina o sarcasmo.

Ando, pois, a ler, repimpadíssimo, como diria o próprio Eça, A Tragédia da Rua das Flores.

Este post pode servir para uma ou duas coisas: a) aconselhá-lo vivamente a quem tenha passado pela mesma nostalgia de «haver esgotado um autor que já não volta a escrever», a quem, por coincidência, este livro passasse, também, ao lado; b) acrescentar, como nota natalícia, este optimismo moral: às vezes, por impossível que pareça, mesmo o prazer que não voltará de certeza, pode voltar... (e, até, mais do que uma vez!)

Bom Natal!

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