1.
Deus Pai Todo Poderoso tinha um gnomo, seu braço direito, que o ajudava diligentemente. A razão pela qual se não fala, hoje, desse apoio é esta: a mais simples referência a ele foi completa e sucessivamente expurgada, suprimida de todos os textos sagrados. Tomás de Aquino, chamado «O Boi», perguntava-se, a esse propósito, eloquententemente: «Por que haveria Deus, O Todo Poderoso, de carecer de um ajudante? E porquê um anão? Por que não um gigante?» [Summa Theologica, 6-3]
2.
O trabalho do gnomo de Deus era monótono e, francamente, o pobre ser ressentia-se muito disso, dessa sua tarefa que consistia em garantir, antes ainda de serem depositadas nos corpos, que determinadas almas afins haveriam, depois, de se encontrar: estavam, digamos, predestinadas umas às outras; a virem a ligar-se, mais tarde, na vida terrena, por laços de afecto diverso: estes dois iriam amar-se, aqueles outros iriam ser amigos para a vida, outros mais, mestre e aprendiz, ou professor e aluno, ou...
3.
Trabalho importante, mas tão cansativo!
O gnomo de Deus tinha pouco tempo vago ao longo da longa eternidade. Porém, devido a uma curiosidade insana, pouco cristã, semelhante à que viria a perder Adão e Eva, o pequeno espírito aproveitava as suas horas vagas para ler a obra completa de Lucifer, que lhe havia sido recomendada pela alma, ao tempo ainda descarnada, de Pacheco Pereira. A obra completa de Lucifer era tremenda, terrível, temível. Escrevia Lucifer, a dado passo: «Eu não simbolizo o Mal, mas, simplesmente, um ponto de vista diferente. Por que diabo há-de ser tão custoso a Deus admitir que haja outros pontos de vista para além do seu??? Que intolerância!» E, noutro passo: «É fundamental que se entenda que, sob o colorido do Céu, que a todos atrai, existem operários que se dedicam a um trabalho ingrato, monótono, que nunca é compensado a não ser em harmonia celeste: por outras palavras, o único salário dos trabalhadores de Deus, é que Deus não se zangue com eles. A pretexto de que são puros espíritos, não têm necessidades nem carências de ordem alguma, nada mais se lhes paga».
4.
Quanto mais o gnomo lia, nas horas vagas, aquelas páginas incendiárias, carregadas de uma fúria rebelde, mais a sua situação lhe parecia injusta, mais o seu Patrão lhe parecia gozar de um prestígio imerecido, mais lhe apetecia contrariá-lo, defraudá-lo, desobedecer-lhe, desencadear a luta de classes...
5.
Ah, mas tinha medo. Muito medo.
6.
Até que um dia, mergulhado nas suas cogitações revolucionárias, por engano, por puro engano, por mero acidente, destinou para um encontro para toda a vida terrestre duas almas incompatíveis, completamente avessas. Primeiro, ficou aflito. Quis corrigir, contudo era tarde. Prevenir Deus, porém não teve coragem. Mas, curiosamente, percebeu que o erro passava. Que nem Deus, o próprio Deus, o Grande Deus, se apercebia...
7.
Então repetiu, agora deliberadamente, imperdoavelmente, o mesmo tipo de erro. Sempre impunemente. E mais uma vez, e outra, satisfeito consigo mesmo, sentindo correr-lhe nas veias espirituais um sangue de vingança: semeava conflitos, preparava para se encontrarem e juntarem para sempre naturezas opostas, seres que nunca se compreenderiam, laços de ódio e de conflito.
8.
Desse momento em diante, era já muito tarde para reverter o que quer que fosse. Almas fabricadas para se predestinarem, nunca se encontrariam. Em contrapartida, pessoas que só por humor negro poderiam viver juntas, essas, juntavam-se sob o mesmo tecto, completamente iludidas, rapidamente desiludidas, procriando, em constante guerrilha, filhos que, depois, odiavam, que os odiavam...
9.
Algures, noutra parte, impossível de vir a ser encontrada por cada um, o seu par, o seu verdadeiro par, o seu encaixe (o professor que o entusiasmaria, o amigo que o compreenderia...) - vivia uma vida impossível, encaixado, por sua vez, em alguém que odiava e a quem odiava.
10.
Esta é a verdade. Entretanto, por quanto tempo vos parece que se poderia enganar Deus Pai Todo Poderoso? A fraude do gnomo foi descoberta. O gnomo foi lançado no inferno, onde arde juntamente com Marx, Freud, Nietzsche, Darwin e outros.
11.
Deus trabalha, hoje, sozinho. Nunca mais aceitou braços direitos. Tudo indica, porém que, quanto mais não seja por piada ou, então, porque a burocracia se instalou irreversivelmente, continue a baralhar as peças, a promover encontros falsos, impossíveis, e a semear ligações perigosas!
domingo, dezembro 24, 2006
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