sábado, janeiro 13, 2007

A FUGA

Miguel choramingava, enquanto ia enfiando num lenço vermelho alguns dos seus pertences: uma camisola, um par de cuecas, um de peúgas, cinco carrinhos que a avó lhe oferecera e os cromos dos lutadores de wresteling.
O pai estava furioso: era terrível de se ver, àquela hora da manhã, em roupão, com a barba a despontar como picos de um cacto, o cabelo revolto, um pé enfiado numa pantufa, outro descalço desde que, algures, muitos meses atrás, perdera a segunda pantufa.
A mãe estava zangada, falando muito depressa, à esquina de um ataque de nervos, levantando muito os braços, em camisa de noite mas, curiosamente, cheirando já a perfume.
E a razão de tanta zanga resumia-se a isto: Miguel não tinha fome de manhã. Queriam dar-lhe flocos, mas enjoara-se de todos os tipos de flocos - nem os chocapics, nem os nesquiks, nem as estrelitas, nem os chocolocos, nem os nogat's pillows... Leite simples não tinha graça. Pão, nem pensar. Poderia apetecer-lhe outra coisa, com boa vontade - mas tudo o que lhe poderia apetecer dava trabalho, confusão, exigia uma demorada fabricação: sumo de laranja, papinha de banana e kiwi esmagados minuciosamente com um garfo sobre o prato, maçã ralada com bolacha Maria esmigalhadinha...
O pai argumentava. Primeiro, com toda a calma. Fornecia alternativas. A mãe procurava na despensa. Nada! Miguel parava diante do frigorífico aberto. O pai esgotava a paciência. A mãe percorria a casa de um lado para o outro, desorientada, asmática, triste.
- Come qualquer coisa, Miguel! Qualquer coisa normal! Como os outros meninos!!! Todas as crianças comem pães, comem... comem... comem...
As vozes levantavam-se. A altercação instalava-se, vinha para ficar, os vizinhos ouviam gritos e desapareciam das respectivas próprias casas, ou escondiam-se no mais recôndito delas, um pouco temerosos. Miguel chorava. Não queria. Nada lhe interessava, a não ser...!
O pai entrava, por fim, no capítulo dos disparates. Que estava farto dele. Que ele ia ser responsável pela sua morte. Que a tensão vinha disparando... Pudera!!!
A mãe fechava-se na casa de banho.
Mandavam-no, pois, de castigo para o quarto. Não sairia enquanto não viesse com a disposição de comer qualquer coisa normal... pouco, podia até ser pouco, umas colheradas, umas goladas mas, sobretudo, qualquer coisa «normal».

No quarto, tomada a decisão, preparada a sua trouxa, saiu pela janela. Era um infeliz. Mas a vida esperava por ele, saturada dessa felicidade que os pais lhe negavam sistematicamente, pronta a abraçá-lo com centenas de aventuras e descobertas. Ainda haveria piratas? O pai costumava responder-lhe: «Há, se há! Cada vez mais, filho!» - talvez o aceitassem...? Ou infiltrar-se-ia clandestinamente? Terras por descobrir, mulheres por amar! A Teresinha iria ter saudades dele? E lembrando-se de Tereseninha, por quem se apaixonara destravadamente mas que, alertada por um terceiro, lhe fora dizer, cheia de sardas, mais bonita do que nunca, «Olha, Miguel, vamos ser só amigos, tá bem?» - lembrando-se dela, não aguentou mais e desatou a chorar com lágrimas grossas. Sentia-se triste, sentia fúria, estava pronto a revoltar-se com o mundo inteiro, a tornar-se muçulmano, pilotando aviões contra prédios, sentia uma melncolia no peito, ou na barriga, sentia... o quê, fome!?

Regressou a casa.
Pôs leite na sua caneca, encheu-a de flocos. Comeu. Partiria depois...

1 comentário:

Anónimo disse...

Cá estou eu outra vez.Sabes que tive de criar o meu blog, bolas!
(ainda tou um pouco às aranhas)

Estou a gostar de ler as tuas coisas, é bom, a sério.

Beijo imenso

Sara