sábado, janeiro 13, 2007

A MÁQUINA

Estava Lebranche do meu lado direito, Slovsky do meu lado esquerdo.
Lebranche, a quem chamávamos o anticartesiano metódico, era um homem alto e esguio, com um nariz abatatado e um queixo sumido, praticamente inexistente, que fazia da dúvida um incitamento para a descoberta da verdade, mas por um caminho oposto ao de Descartes. Argumentava ele: «Pá, aquilo de que se duvida é, no fundo, aquilo que poderia muito bem ser. E num mundo de contrariedades e de frustrações, isto é, em que quase tudo me parece impossível (e cada vez mais impossível à medida que envelheço), que haja ainda coisas possíveis, de que até podemos duvidar, mas que são, por isso mesmo, possíveis... torna-as quase verdadeiras. Eis a minha filosofia toda numa simples frase: o duvidoso é quase sempre verdadeiro!»
Slovsky, por outro lado, era um céptico. Mais: tratava-se do pior tipo de céptico. O céptico trocista. Baixinho, careca, com uns óculos redondos, de aros dourados, não refutava, não rebatia. Encolhia os ombros, com um sorriso torto, que nos esmagava mais rapidamente do que toneladas de argumentos.
E diante de nós estava o Engenheiro, a que não me referirei, aqui, senão pela sua inicial: K.

K. esperava-nos, sentado sobre o que me parecia uma sanita com um volante. «Grande invenção», segredou o temível Slovsky. «Se vamos a andar de carro e nos dá uma súbita vontade de evacuar...»
Nem eu nem Lebranche rimos. K. olhava-nos, com um sorriso contido e pacífico.
- Então, isso é que é a máquina do tempo? - perguntei, curioso.
- Isto é que é a máquina do tempo - respondeu, sem desfazer a tranquilidade. - Anos de estudo, de investigação...
- ... para atingir uma sanita volante! - resmungou Slovsky.
- E como se procede, senhor Engenheiro?

E, aí, aconteceu a tragédia. K. ligou um interruptor, uma faisca rasgou o ar, houve um monumental barulho, que nos assustou - a mim e a Lebranche, porque Slovsky ainda perguntou: «Será o autoclismo?» -, e, quando menos esperávamos, o sistema pegava fogo. As labaredas lambiam o tapete, o cortinado, ouvia-se o ruído aflitivo da madeira a transformar-se em carvão. Slovsky sentou-se numa das cadeiras, talvez a única, que não era pasto do incêndio. Eu e Lebranche corremos para a cozinha, tentando encher os nossos chapéus com água que, a seguir, vertíamos sobre o fogo. Era já muito tarde. Foi Slovsky que, no meio da confusão, se lembrou de telefonar aos bombeiros.

Assisti, mais tarde, a este diálogo entre os meus dois amigos:

S: As sanitas podem ser muito perigosas.
L: Não acreditas que tivessemos estado perante a máquina do tempo?
S: Só no sentido em que, para certas pessoas, a sanita é um local onde se passa muito tempo. Levam revistas, refugiam-se do mundo... E no futuro, quando descobrirem as sanitas, hão-de perguntar-se a que espécie de Deus dedicávamos aquele santuário...
L: Pois eu, pelo contrário, estou convencido que o Engenheiro tinha descoberto uma máquina que nos levaria ao futuro.
S: Duvido muito.
L: Mas era possível, não era? Era possível, não era? Responde-me só: era uma possiblidade...?
S: Bem...!
L: Ora aí está. É a prova que me basta: aquilo era mesmo a máquina do tempo.

Eu não sei. Aprendi a desconfiar das aparências. E pergunto-me o que poderia realmente ocultar-se sob a aparência um pouco ridícula de uma sanita com um volante.

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