Tenho, como aforismo pessoal que a experiência parece insistir em confirmar, a convicção de que as coisas com que mais aprendemos nesta vida não são as coisas bem feitas: são, precisamente pelo contrário, as mal feitas.
Em televisão, o aforismo é continuamente validado.
Há um programa da tarde, com um público-que-aplaude-ao-vivo, construído segundo um conceito que tem como alvo as mulheres idosas e as donas-de-casa, frustradas, de lágrima fácil, e que eu principio sempre por ver ociosamente (e até com aquele ligeiro ar de enfado que, nestas coisas, convém a um intelectual que se preza), mas que, no seguimento, acaba por me prender com a força de um «thriller»; pois bem: afianço-vos que esse programa tem sido, para mim, um verdadeiro poço de ensinamentos.
Para já, ensina-me a que ponto pode descer a tonteria, o desejo de aparecer em televisão, de ganhar uns prémios pindéricos ou a simplicidade com que se consegue fazer rir. Mas mais: depois, a propósito disto ou daquilo, há sempre umas quantas lições a retirar - muitas vezes, carregadas de consequências para outros campos, para outras áreas de interesse.
Neste último programa, tive, diante dos olhos, a razão clara (de que, às vezes, posso esquecer-me no meu dia-a-dia profissional) pela qual um professor nunca deve ir para uma aula sem a ter preparado convenientemente.
Os sucessivos desastres a que a apresentadora foi conduzida pelo facto de não haver preparado as entrevistas com aquelas velhinhas, sobre os «escapes» que tinham encontrado para afugentar os azares e as tristezas da vida.
Assistimos a coisas do género de: «Eu soube que gosta muito de ler», «Ah, quem me dera, não, minha senhora, infelizmente não sei ler», ou: «Já estou a ver que é Alentejana», «Não, sou da Beira-Baixa», ou: «É verdade que não esteve para aturar o seu marido durante muito tempo?», «Ele morreu» (será que foi a senhora que o assassinou, para não o «aturar durante muito tempo»?)
Um programa didáctico, da BBC, poderia ter tido esta força sobre mim, este poder de ilustração e de me colocar perante mim próprio? Duvido.
Bem-haja, TVI.
quinta-feira, abril 26, 2007
quinta-feira, abril 12, 2007
UM VULCÃO EM ACTIVIDADE NA ESCOLA
Não planeara participar, com uma turma de dez ou onze alunos, naquela comunicação/debate acerca de imigração. Tratou-se de um convite de última hora e, por «última hora», refiro o intervalo imediatamente anterior ao encontro. Mas porque o momento é, na vida do país, crucial para uma reflexão acerca da imigração e porque a minha pequena turma é constituída, precisamente, por pessoas originárias de Cabo-Verde, Angola e Timor, pareceu-me criminoso perder a oportunidade.
Naturalmente, o que se espera de um encontro deste tipo é, num certo sentido, relativamente pouco e relativamente pobre. Algumas banalidades e algumas ideias feitas, boas intenções e palavras virtuosas, ou seja, o desfiar da habitual cartilha de lugares-comuns «politicamente correctos».
Contudo, o que aconteceu foi outra coisa.
A moderadora, Cristina, muito jovem, que se preparara, talvez, para esse género de conferência «politicamente correcta», virtuosa e moralizadora acerca dos imigrantes, viu-se, bruscamente, confrontada com um vulcão. Natasha, imigrada da ex-Jugoslávia, mãe de duas alunas da escola, esteve presente: entrara tarde, irrompendo e interrompendo exuberantemente, provocando gargalhadas mas, em pouco tempo, conquistando o auditório, intervindo, questionando sistematicamente, interpelando, discordando. E o mais interessante de tudo foi que Cristina que, demasiado jovem, poderia ter-se desequilibrado perante aquela torrente, ou manifestar incómodo, ou remetê-la para o silêncio, soube, pelo contrário e, de facto, brilhantemente, estabelecer o diálogo enriquecedor, aproveitar-lhe as intervenções, criar-lhe o palco, desafiá-la para contar a própria história, para rememorar a própria experiência, as dificuldades com que se debateu num país estranho, a solidão, a saudade.
Natasha fê-lo com um à-vontade e um brilho intensos, com uma luminosidade inenarrável, no seu português desinibido e carregado.
Os mesmos alunos que, como já é hábito, teriam inicialmente a intenção de boicotar a «seca» que se lhes impunha, rindo e brincando a despropósito, calavam-se, estranhamente, muito atentos, tentando seguir a história dramatizada por aquela mulher, aquela actriz fantástica, história que nos rebentava diante dos olhos, num misto de tristeza, de alegria, de humor. Cristina, a sua interlocutora principal, apoiava-a, estimulava-a; ora falava, informando, adiantando dados, ora se retirava, tranquilamente, sem temer que lhe roubassem o protagonismo, delicada, revelando o raro e discreto génio de fazer sobressair os outros, ao invés de querer sobressair a qualquer preço.
Os alunos conversaram, perguntaram, intervieram, Cristina fez ainda ouvir a voz gravada de uma imigrada Cabo-Verdiana, escutada num silêncio religioso, Natasha deu receitas da sua terra e quis ensinar a dançar...
Não diria que foi «informativo», nem «interessante», que também foi; preferiria um adjectivo inabitual para um evento desta natureza: foi belo, foi tudo muito belo; e comovente.
Natasha, que eu já vira representar noutra ocasião, tem sempre o poder, que me embaraça, evidentemente, de me deixar os olhos marejados. É vergonhoso, sobretudo em público e, ainda mais, tratando-se de mim, cultor do cepticismo, da ironia, do sarcasmo e de outras formas de descrença cruel e de pessimismo militante. (Claro, posso usar a velha desculpa: Entrou-me qualquer coisa para o olho...!)
Naturalmente, o que se espera de um encontro deste tipo é, num certo sentido, relativamente pouco e relativamente pobre. Algumas banalidades e algumas ideias feitas, boas intenções e palavras virtuosas, ou seja, o desfiar da habitual cartilha de lugares-comuns «politicamente correctos».
Contudo, o que aconteceu foi outra coisa.
A moderadora, Cristina, muito jovem, que se preparara, talvez, para esse género de conferência «politicamente correcta», virtuosa e moralizadora acerca dos imigrantes, viu-se, bruscamente, confrontada com um vulcão. Natasha, imigrada da ex-Jugoslávia, mãe de duas alunas da escola, esteve presente: entrara tarde, irrompendo e interrompendo exuberantemente, provocando gargalhadas mas, em pouco tempo, conquistando o auditório, intervindo, questionando sistematicamente, interpelando, discordando. E o mais interessante de tudo foi que Cristina que, demasiado jovem, poderia ter-se desequilibrado perante aquela torrente, ou manifestar incómodo, ou remetê-la para o silêncio, soube, pelo contrário e, de facto, brilhantemente, estabelecer o diálogo enriquecedor, aproveitar-lhe as intervenções, criar-lhe o palco, desafiá-la para contar a própria história, para rememorar a própria experiência, as dificuldades com que se debateu num país estranho, a solidão, a saudade.
Natasha fê-lo com um à-vontade e um brilho intensos, com uma luminosidade inenarrável, no seu português desinibido e carregado.
Os mesmos alunos que, como já é hábito, teriam inicialmente a intenção de boicotar a «seca» que se lhes impunha, rindo e brincando a despropósito, calavam-se, estranhamente, muito atentos, tentando seguir a história dramatizada por aquela mulher, aquela actriz fantástica, história que nos rebentava diante dos olhos, num misto de tristeza, de alegria, de humor. Cristina, a sua interlocutora principal, apoiava-a, estimulava-a; ora falava, informando, adiantando dados, ora se retirava, tranquilamente, sem temer que lhe roubassem o protagonismo, delicada, revelando o raro e discreto génio de fazer sobressair os outros, ao invés de querer sobressair a qualquer preço.
Os alunos conversaram, perguntaram, intervieram, Cristina fez ainda ouvir a voz gravada de uma imigrada Cabo-Verdiana, escutada num silêncio religioso, Natasha deu receitas da sua terra e quis ensinar a dançar...
Não diria que foi «informativo», nem «interessante», que também foi; preferiria um adjectivo inabitual para um evento desta natureza: foi belo, foi tudo muito belo; e comovente.
Natasha, que eu já vira representar noutra ocasião, tem sempre o poder, que me embaraça, evidentemente, de me deixar os olhos marejados. É vergonhoso, sobretudo em público e, ainda mais, tratando-se de mim, cultor do cepticismo, da ironia, do sarcasmo e de outras formas de descrença cruel e de pessimismo militante. (Claro, posso usar a velha desculpa: Entrou-me qualquer coisa para o olho...!)
quinta-feira, abril 05, 2007
MAUS ALUNOS E BOAS ALUNAS
Os rapazes e as raparigas da escolaridade obrigatória ou, em resumo, os meninos e as meninas pré-adolescentes e adolescentes são, psicologicamente, muito diferenciáveis. Não só devido a factores de ordem biológica, não só devido a factores de ordem sócio-cultural, mas por uma complexa e intrincadíssima rede de causas orgânicas e educacionais. E os rapazes, que amadurecem com um ritmo próprio (porque desenvolvem aptidões próprias), quer a nível cognitivo, quer a nível afectivo, quer a nível comportamental, estão, por efeito dessas diferenças, destinados a ser os patinhos feios da escola.
O que as instituições do ensino público privilegiam ou, por outras palavras, o que é valorizado pela «escola pública», herdada, no fundo, de um sistema autoritário, apesar de sucessivas e, muitas vezes, caóticas remodelações, é um tipo de «bom aluno» feminino; é um modelo de aluno que só poderia ser uma menina: atenta, tranquila, trabalhadora, cumpridora. Nessas idades, os rapazes dificilmente conseguem corresponder a esse modelo. O seu desenvolvimento é outro, o seu ritmo é diferente - e, em tudo isto, não me parece obra do acaso que as «dislexias», as «hiperactividades» e outras disfunções deste género sejam, em geral, muito mais problemas «masculinos» do que «femininos».
Pergunto-me, diante das minhas turmas, se, de algum modo, os rapazes não são todos, todos eles, naquelas idades, hiperactivos, ou seja, adolescentes incapazes de se concentrar, a não ser parcial e episodicamente, incapazes de se abrir a outrem, incapazes da escuta, ou, simplesmente, de permanecer em silêncio durante muito tempo.
Num regime autoritário, numa escola «à antiga», poderiam sê-lo, naturalmente: estamos a falar da escola salazarista, que molda e modela, que pune e castra. Na escola pós-25 de Abril, em que, por um lado, as relações hierárquicas se modificaram e os valores são, necessariamente, outros (em que, por exemplo, se perdeu o medo em face do poder), mas em que, por outro lado, as expectativas e os critérios dos professores para decidir o que é um «bom aluno» se mantêm inalterados, os rapazes estão em desvantagem.
O sistema não premeia rapazes demasiado rapazes. Não está feito para isso. Varre-os para debaixo do tapete.
O sistema não está preparado para «aturar» outras formas, outros ritmos, outros amadurecimentos, sobretudo se dão maçada aos professores, nem outros interesses, nem um outro tipo de criatividade (que é tipicamente masculina, o que não significa, COMO É EVIDENTE, que não haja uma criatividade feminina) nem uma outra maneira de aprender.
Em termos competitivos (porque o sistema engendra e vive, necessariamente, de uma competição), os rapazes já perderam: os meninos-alunos depreciam-se, não acreditam nas suas capacidades e assumem, à falta de outras saídas, o papel do arruaceiro, do mau aluno orgulhoso de o ser. Abandonam. Só uma minoria - cada vez mais uma minoria - alcança a faculdade.
Os rapazes perderam. O sistema, um sistema que exclui e varre, um sistema feito à medida de um único género, também já perdeu...
O que as instituições do ensino público privilegiam ou, por outras palavras, o que é valorizado pela «escola pública», herdada, no fundo, de um sistema autoritário, apesar de sucessivas e, muitas vezes, caóticas remodelações, é um tipo de «bom aluno» feminino; é um modelo de aluno que só poderia ser uma menina: atenta, tranquila, trabalhadora, cumpridora. Nessas idades, os rapazes dificilmente conseguem corresponder a esse modelo. O seu desenvolvimento é outro, o seu ritmo é diferente - e, em tudo isto, não me parece obra do acaso que as «dislexias», as «hiperactividades» e outras disfunções deste género sejam, em geral, muito mais problemas «masculinos» do que «femininos».
Pergunto-me, diante das minhas turmas, se, de algum modo, os rapazes não são todos, todos eles, naquelas idades, hiperactivos, ou seja, adolescentes incapazes de se concentrar, a não ser parcial e episodicamente, incapazes de se abrir a outrem, incapazes da escuta, ou, simplesmente, de permanecer em silêncio durante muito tempo.
Num regime autoritário, numa escola «à antiga», poderiam sê-lo, naturalmente: estamos a falar da escola salazarista, que molda e modela, que pune e castra. Na escola pós-25 de Abril, em que, por um lado, as relações hierárquicas se modificaram e os valores são, necessariamente, outros (em que, por exemplo, se perdeu o medo em face do poder), mas em que, por outro lado, as expectativas e os critérios dos professores para decidir o que é um «bom aluno» se mantêm inalterados, os rapazes estão em desvantagem.
O sistema não premeia rapazes demasiado rapazes. Não está feito para isso. Varre-os para debaixo do tapete.
O sistema não está preparado para «aturar» outras formas, outros ritmos, outros amadurecimentos, sobretudo se dão maçada aos professores, nem outros interesses, nem um outro tipo de criatividade (que é tipicamente masculina, o que não significa, COMO É EVIDENTE, que não haja uma criatividade feminina) nem uma outra maneira de aprender.
Em termos competitivos (porque o sistema engendra e vive, necessariamente, de uma competição), os rapazes já perderam: os meninos-alunos depreciam-se, não acreditam nas suas capacidades e assumem, à falta de outras saídas, o papel do arruaceiro, do mau aluno orgulhoso de o ser. Abandonam. Só uma minoria - cada vez mais uma minoria - alcança a faculdade.
Os rapazes perderam. O sistema, um sistema que exclui e varre, um sistema feito à medida de um único género, também já perdeu...
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