sexta-feira, janeiro 26, 2007

COISAS SÉRIAS E COISAS AINDA MAIS SÉRIAS

Não sei o que vos dirá acerca da minha maturidade e da forma como envergo a roupa de adulto, a confissão de que trato algumas das minhas amigas por «Lara Croft», «Mulher Elástica» ou «Rainha de Inglaterra». Na verdade, se me perguntarem, de repente, qual o verdadeiro nome de cada uma delas, posso embatucar. Verdadeiro nome!? Então elas não são «Lara Croft», «Mulher Elástica», «Rainha de Inglaterra»?

Mas algo de muito sério perpassa no grupo, quando nos reunimos. Mais sério ainda do que as teatradas, com perucas e óculos, à mesa do restaurante, mais sério do que as gargalhadas filtradas pelo tinto, tão sério como a «Lara Croft» me ter surpreendido com a afirmação de que os meus textos transmitem um espírito muito forte na reacção ao azar e à tristeza. Embatuco novamente. É um elogio que me esmaga. A que sou, por uma vez, incapaz de reagir.

Tão sério como isso? Que será? Silêncio absoluto. Pela minha boca não saberão que «Lara Croft» está em missão, às ordens da «Rainha de Inglaterra». Não. Não é por mim que o saberão.

sábado, janeiro 13, 2007

A FUGA

Miguel choramingava, enquanto ia enfiando num lenço vermelho alguns dos seus pertences: uma camisola, um par de cuecas, um de peúgas, cinco carrinhos que a avó lhe oferecera e os cromos dos lutadores de wresteling.
O pai estava furioso: era terrível de se ver, àquela hora da manhã, em roupão, com a barba a despontar como picos de um cacto, o cabelo revolto, um pé enfiado numa pantufa, outro descalço desde que, algures, muitos meses atrás, perdera a segunda pantufa.
A mãe estava zangada, falando muito depressa, à esquina de um ataque de nervos, levantando muito os braços, em camisa de noite mas, curiosamente, cheirando já a perfume.
E a razão de tanta zanga resumia-se a isto: Miguel não tinha fome de manhã. Queriam dar-lhe flocos, mas enjoara-se de todos os tipos de flocos - nem os chocapics, nem os nesquiks, nem as estrelitas, nem os chocolocos, nem os nogat's pillows... Leite simples não tinha graça. Pão, nem pensar. Poderia apetecer-lhe outra coisa, com boa vontade - mas tudo o que lhe poderia apetecer dava trabalho, confusão, exigia uma demorada fabricação: sumo de laranja, papinha de banana e kiwi esmagados minuciosamente com um garfo sobre o prato, maçã ralada com bolacha Maria esmigalhadinha...
O pai argumentava. Primeiro, com toda a calma. Fornecia alternativas. A mãe procurava na despensa. Nada! Miguel parava diante do frigorífico aberto. O pai esgotava a paciência. A mãe percorria a casa de um lado para o outro, desorientada, asmática, triste.
- Come qualquer coisa, Miguel! Qualquer coisa normal! Como os outros meninos!!! Todas as crianças comem pães, comem... comem... comem...
As vozes levantavam-se. A altercação instalava-se, vinha para ficar, os vizinhos ouviam gritos e desapareciam das respectivas próprias casas, ou escondiam-se no mais recôndito delas, um pouco temerosos. Miguel chorava. Não queria. Nada lhe interessava, a não ser...!
O pai entrava, por fim, no capítulo dos disparates. Que estava farto dele. Que ele ia ser responsável pela sua morte. Que a tensão vinha disparando... Pudera!!!
A mãe fechava-se na casa de banho.
Mandavam-no, pois, de castigo para o quarto. Não sairia enquanto não viesse com a disposição de comer qualquer coisa normal... pouco, podia até ser pouco, umas colheradas, umas goladas mas, sobretudo, qualquer coisa «normal».

No quarto, tomada a decisão, preparada a sua trouxa, saiu pela janela. Era um infeliz. Mas a vida esperava por ele, saturada dessa felicidade que os pais lhe negavam sistematicamente, pronta a abraçá-lo com centenas de aventuras e descobertas. Ainda haveria piratas? O pai costumava responder-lhe: «Há, se há! Cada vez mais, filho!» - talvez o aceitassem...? Ou infiltrar-se-ia clandestinamente? Terras por descobrir, mulheres por amar! A Teresinha iria ter saudades dele? E lembrando-se de Tereseninha, por quem se apaixonara destravadamente mas que, alertada por um terceiro, lhe fora dizer, cheia de sardas, mais bonita do que nunca, «Olha, Miguel, vamos ser só amigos, tá bem?» - lembrando-se dela, não aguentou mais e desatou a chorar com lágrimas grossas. Sentia-se triste, sentia fúria, estava pronto a revoltar-se com o mundo inteiro, a tornar-se muçulmano, pilotando aviões contra prédios, sentia uma melncolia no peito, ou na barriga, sentia... o quê, fome!?

Regressou a casa.
Pôs leite na sua caneca, encheu-a de flocos. Comeu. Partiria depois...

A MÁQUINA

Estava Lebranche do meu lado direito, Slovsky do meu lado esquerdo.
Lebranche, a quem chamávamos o anticartesiano metódico, era um homem alto e esguio, com um nariz abatatado e um queixo sumido, praticamente inexistente, que fazia da dúvida um incitamento para a descoberta da verdade, mas por um caminho oposto ao de Descartes. Argumentava ele: «Pá, aquilo de que se duvida é, no fundo, aquilo que poderia muito bem ser. E num mundo de contrariedades e de frustrações, isto é, em que quase tudo me parece impossível (e cada vez mais impossível à medida que envelheço), que haja ainda coisas possíveis, de que até podemos duvidar, mas que são, por isso mesmo, possíveis... torna-as quase verdadeiras. Eis a minha filosofia toda numa simples frase: o duvidoso é quase sempre verdadeiro!»
Slovsky, por outro lado, era um céptico. Mais: tratava-se do pior tipo de céptico. O céptico trocista. Baixinho, careca, com uns óculos redondos, de aros dourados, não refutava, não rebatia. Encolhia os ombros, com um sorriso torto, que nos esmagava mais rapidamente do que toneladas de argumentos.
E diante de nós estava o Engenheiro, a que não me referirei, aqui, senão pela sua inicial: K.

K. esperava-nos, sentado sobre o que me parecia uma sanita com um volante. «Grande invenção», segredou o temível Slovsky. «Se vamos a andar de carro e nos dá uma súbita vontade de evacuar...»
Nem eu nem Lebranche rimos. K. olhava-nos, com um sorriso contido e pacífico.
- Então, isso é que é a máquina do tempo? - perguntei, curioso.
- Isto é que é a máquina do tempo - respondeu, sem desfazer a tranquilidade. - Anos de estudo, de investigação...
- ... para atingir uma sanita volante! - resmungou Slovsky.
- E como se procede, senhor Engenheiro?

E, aí, aconteceu a tragédia. K. ligou um interruptor, uma faisca rasgou o ar, houve um monumental barulho, que nos assustou - a mim e a Lebranche, porque Slovsky ainda perguntou: «Será o autoclismo?» -, e, quando menos esperávamos, o sistema pegava fogo. As labaredas lambiam o tapete, o cortinado, ouvia-se o ruído aflitivo da madeira a transformar-se em carvão. Slovsky sentou-se numa das cadeiras, talvez a única, que não era pasto do incêndio. Eu e Lebranche corremos para a cozinha, tentando encher os nossos chapéus com água que, a seguir, vertíamos sobre o fogo. Era já muito tarde. Foi Slovsky que, no meio da confusão, se lembrou de telefonar aos bombeiros.

Assisti, mais tarde, a este diálogo entre os meus dois amigos:

S: As sanitas podem ser muito perigosas.
L: Não acreditas que tivessemos estado perante a máquina do tempo?
S: Só no sentido em que, para certas pessoas, a sanita é um local onde se passa muito tempo. Levam revistas, refugiam-se do mundo... E no futuro, quando descobrirem as sanitas, hão-de perguntar-se a que espécie de Deus dedicávamos aquele santuário...
L: Pois eu, pelo contrário, estou convencido que o Engenheiro tinha descoberto uma máquina que nos levaria ao futuro.
S: Duvido muito.
L: Mas era possível, não era? Era possível, não era? Responde-me só: era uma possiblidade...?
S: Bem...!
L: Ora aí está. É a prova que me basta: aquilo era mesmo a máquina do tempo.

Eu não sei. Aprendi a desconfiar das aparências. E pergunto-me o que poderia realmente ocultar-se sob a aparência um pouco ridícula de uma sanita com um volante.

terça-feira, janeiro 09, 2007

ASSUMIR A ESCOLHA SIGNIFICA: NÃO SIMPLIFICÁ-LA

A verdade é sempre revolucionária, asseverava Gramsci. Não sei se o é. Sou, aliás, tão mais limitado, que começo por não saber o que seja «a verdade». Às vezes, permito-me desconfiar que esteja ao meu alcance; permito-me farejá-la: percebo, suspeito que não andará longe. Mas, imediatamente a seguir, posso duvidar. Não metodicamente - não há, nesta dúvida, razões de método, só mesmo uma tremenda insegurança...

Agora, custa-me, isso sim, que a «minha» verdade - ainda que momentânea - tenha de ser rodeada, ou retocada, ou calada, em nome seja do que for. Em nome de razões políticas, de virtude, de correcção ou de oportunidade. Detesto as razões de oportunidade ou conveniência. Detesto que argumentem: «Talvez até seja verdade, mas este não é o momento certo para a divulgar, para a mencionar sequer...!»

É o caso. Eu, que vou votar «Sim» neste referendo, eu, que já fiz mesmo um aborto - na medida em que partilho inteira e completamente a responsabilidade do aborto decidido e feito, em conjunto, pela mulher que engravidei e por mim próprio -, eu, que seria de uma hipocrisia sem precedentes se me abstivesse e ficasse a assobiar para o lado, não posso deixar, contudo, de expor a «minha» verdade: e a «minha» verdade é que me dói e custa, como talvez nenhum outro, a assunção deste acto, desta cruz que irei marcar no boletim.

Não tenho escolha: eu que abortei porque não poderia não ter abortado, que conheço as razões por que o fazem milhares de mulheres, e as circunstâncias em que o fazem, eu que não aceito - nem posso aceitar - que as persigam e punam por essa escolha tantas vezes trágica, não posso deixar de levar coerentemente a minha solidariedade até ao limite. Mas não me queiram convencer de que não faz mal; não me queiram convencer de que é outra coisa que não o mal menor - sendo que o mal menor, naturalmente, não é um bem: é, ainda, um mal. Não me queiram fazer esquecer que estou a lidar com a vida. Com vidas. Nem queiram reduzir a vida fetal a uma não-vida. Não me digam que o aborto não é, na melhor das hipóteses, um défice civilizacional e um défice moral. (Como o é - de um modo pior, e mais grave -, uma lei que não permita essa escolha, como se a escolha não fosse, em si mesma, complexa e terrível).

Não queiram simplificar as coisas, porque não seria digno. Nem sério.

Será que eu não devia afirmá-lo «agora»? Que, sobretudo, não neste momento? Que Devia fazê-lo só depois do referendo? Ah! Mas não consigo ser maniqueista. Nem fingir que o sou por razões de conveniência. Vou votar «Sim». Mas este voto a que não tenho o direito de fugir, por razões morais, precisamente, é um voto que me dilacera. Por razões morais, também: precisamente.