sexta-feira, outubro 22, 2010

AGOSTINHO

O sr. Tavares tivera, toda a vida, um miserável carro de duas portas. (Aquilo a que os vendedores de automóveis habitualmente chamam «um 3 portas», contando absurdamente com a da bagageira...); tornara-se complicado albergar, num veículo tão minúsculo, uma família numerosa, com crianças de chorar, velhas de bengala, cães com línguas húmidas.

Por isso, no dia em que o sr. Tavares saiu do stand («o stander», dizia ele) na sua carrinha nova, cheia de portas, muito comprida, completamente negra, sentia-se feliz. Dispôs, naquele espaço enorme, a que não estavam habituados, as suas crianças, idosos e cães, e seguiram, ainda um pouco vagarosamente, a dar uma volta pela marginal...

Mas não bastava o passeio. Tinha de ir mostrar a carrinha ao amigo Agostinho! Chegou a pensar que Agostinho, muito adoentado, com graves problemas cardíacos, tão dependente das suas botijas de oxigénio, não só teria prazer em ver o comprido carro preto, como talvez lhe apetecesse passear - distrair-se, em suma...

O Agostinho gostou, efectivamente, de ver a Wolkswagen. Mas não lhe apetecia passear. Estava cansado, cansado. Não perdiam pela demora. Na próxima volta, contassem com ele. («Mas que coisa! Tão grande! É fantástico, de facto. E que confortável. Eu ia, ó Zé, mas olha, pá, tu desculpa, passei a noite aos gritos...»)

Os Tavares foram-se. O carro cruzou-se, à saída, com o Mendes e o Baptista (que, na altura, ainda se davam: passou-se tudo isto, portanto, antes da monumental zanga que os separaria para sempre...), o Mendes e o Baptista, dizia eu: dois empreiteiros que vinham saber de que obras, afinal, carecia a casa.

Abrindo a janela para cumprimentar, o sr. Tavares espantou-se um pouco de que os dois empreiteiros, olhando fixamente a carrinha negra, se descobrissem, e um dissesse para o outro:
«Olha! O Agostinho já foi!»

Mendes e Baptista, coitados, decidiram que iam ser discretos - já imaginavam a casa num alvoroço, a viúva chorando, os gatos-pingados sem mãos a medir. Não quiseram por isso bater à porta principal. Foram pelas traseiras. Tocaram sem alarde.
Bruscamente, o Mendes ouviu um grito do Baptista.
E sacudiu-o:
- Que foi, pá? Hein? Que é que te deu, homem? Estás branco, que é isso?

Agostinho, arrastando uma botija, abria-lhes tranquilamente a porta.

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