sábado, outubro 23, 2010

RUPTURA E REENCONTRO DE UM BMW E DE UM MERCEDES

No texto anterior, precipitei-me. Sim, sim, sim, não digam que não, sei perfeitamente que o fiz. Descaí-me, bolas! Insinuei que o Mendes e o Baptista tiveram uma zanga tremenda! Vocês lembram-se do Mendes e do Baptista, não se lembram? E agora, tenho de falar acerca da zanga. Recebi comentários, não, mentira, comentários não. Já viram que tenho até publicado, em alguns posts, os dois comentários que, por engano, me enviam em duplicado, para parecer que me comentam muito. Ora esta última história foi totalmente incomentada. Mas recebi, sei cá, aerogramas, mails, telefonemas, gente a perguntar-me pelo Mendes e pelo Baptista.

Ora, a bem dizer, a «razão» da zanga, o pomo da discórdia, o busílis da questão, passou-me. E eles próprios também já deviam ter-se esquecido. O que ficara fora o sentimento de afronta, a rotina da ofensa, o gesto, a mímica, o desencontro. Nunca mais estiveram juntos no mesmo espaço. E nunca mais os seus carros ficaram estacionados na mesma zona - porque, como eles continuaram a frequentar, até por dever de ofício, os mesmos lugares, quando um deles chegava, partia o outro: e, portanto, aparecia um dos carros, por exemplo o BMW vermelho do Mendes, zarpava o outro em menos de três segundos, digamos: o Mercedes azulão do Baptista.

Um dia, porém, ia eu entrar na Casa do Povo, quando vejo, lado a lado, como namorados carinhosos, o BMW e o Mercedes. Fiquei varado. Num primeiro instante, confesso, quase me senti desapontado: como se um dos fundamentos do movimento do universo tivesse sido quebrado. Aquela zanga fazia parte do nosso mundo. Alguém conseguiria passar sem ela? Sem tê-la como clara, certa, estável?! Nunca mais um carro a chegar e o outro a partir? Depois, lentamente, uma semente de optimismo principiou a percutir-me o peito. E pensei: Tomar um copo, um dia, com os dois juntos: inesperado mas interessante, um impossível que poderia, contudo, vir a realizar-se...

Aos primeiros passos dados, reparei de imediato nos sapatos do Baptista. Daqueles antigos, cheios de arabescos. E nuns pés de meias aos quadrados, enfiados nesses sapatos. E numas pernas magras, em calça de fazenda - tudo isto surgindo sob o Mercedes azulão, como gato escondido com rabo de fora. A princípio, achei graça. Sorri-me para com os meus botões. Mas, logo a seguir, veio-me uma onda de indignação. O Baptista a esconder-se do Mendes, debaixo do próprio carro? Mas que diabo! Precisávamos de chegar a esse ponto? Que criancice. Que parvoíce. Aproximei-me, e não me contive:

«Ó Baptista, homem, parece-lhe que tem idade para essas meninices? Deixe-se disso! Se não quer ver o Mendes, meta-se mas é no carro e pisgue-se, caraças! Como sempre fez, aliás!»

E respondeu-me o outro, numa voz lúgubre e longínqua:

«Isso queria eu! O cabrão do Mercedes não pega, estou aqui há meia hora a ver se o amanho...»

Sem comentários: