domingo, março 20, 2011

MEDIOCRIDADE

Dava eu aulas num liceu lá para os arredores de Sintra (liceu esse de que fiz, vagamente, personagem de um romance) e já o ministério insistia na necessidade de que se apresentassem planificações - de cada aula, de cada semana, cada período, do ano inteiro.

Sempre me incomodou, ainda que compreendesse, essa urgência de se mostrar trabalho. Ou fazer mostrar. E sempre o apresentei, aliás, com a pontualidade requerida. (E se no meu tempo de professor assim era já, contam-me que agora se tornou perfeitamente insuportável o afã de reduzir o mínimo passo a papéis, previsões, traçados de rumo...)

Mas, no meu caso, era um pró-forma. Eu não planifico, interiormente, senão da única maneira que consigo, que é fazendo trabalhar o meu caos pessoal. E não me digam que não há nisso qualquer método: é o único que me faz sentido.

O que eu fazia - e continuo fazendo, em outras áreas de actividade por onde hoje fluo - é, quando sei que terei de falar ou escrever sobre um determinado autor, ou tema, respirar e absorver, sem programa nem objectivo. Procuro ler coisas dele, ou sobre ele ou sobre o assunto, ou reler passagens de que me lembrava e sei que para aí me encaminhem; vou discutindo, vou ouvindo tudo o que me caia e me pareça tocar no ponto; vou pensando, num processo que é, em parte, consciente (visto que sei perfeitamente o que estou a acumular no espírito...), mas, também, até certo ponto inconsciente, uma vez que não domino todas as subtis e (mais significativas ou menos significativas) sinapses que se vão estabelecendo, as ligações que se vão experimentando. Uma «planificação» mataria à nascença este processo.

Há um momento mágico, que não posso prever nem antecipar, em que se solta uma faísca. Algo surge como um centro de gravidade, um elemento articulador, uma chave de agregação, um princípio condutor, uma espécie de código de fluência. Descubro que muitas das coisas sobre que me debruçara empenhadamente, desapareceram, entretanto: não cabiam no sistema que se montou; outras, a que dera importância, reduziam-se a uma pequena nota-de-rodapé. Em contrapartida, ideias que nem achei que tivessem que ver com o assunto e só quase por coincidência e acidente me iam ocupando na mesma altura, irrompiam, decisivas. Às vezes, uma dessas ideias paralelas era precisamente o enfoque que me faltava.

Planificação? Deus do céu! Isto é um processo criativo e imprevisível. Certas vezes a faísca surgia já tarde, na própria aula, no momento em que eu começava a falar. Ou acontecia ser um aluno que o desencadeava, ao fazer uma pergunta que sugava numa determinada direcção tudo o que eu tinha lido, e pensado, e estudado sem ainda saber muito bem como expor. E não me lembro de uma aula - uma única - em que este processo não tenha funcionado perfeitamente. Tive aulas melhores e aulas piores, aulas com incidentes dramáticos e acidentes felizes. Mas em nenhuma senti que algo pudesse ser melhor do que era «se eu tivesse planificado»!

Ou seja: da mesma maneira que a escola pede a todos os alunos exactamente o mesmo, estabelecendo uma norma e uma normalidade em que não cabem os talentos alternativos nem as capacidades singulares, também aos professores se impõe uma norma de trabalho e um método de «preparação de aulas». Com mais computadores ou menos computadores, com mais ou menos «agendas do professor», mais ou menos matrizes disto ou daquilo, o que a escola exige e impõe, a professores e alunos, sob o nome de uniformização, é a mera adaptação à mediocridade.

sábado, março 19, 2011

SENTIDOS OCULTOS

Sou um excelente leitor de segundos sentidos nas frases. Modestamente.
Por exemplo, dizem-me que no meu romance «há páginas» muitíssmo bem escritas, do melhor que se fez nos últimos anos em literatura portuguesa, e eu, neste aparente elogio, leio: «As outras páginas, infelizmente, é que são fracotas!»
A propósito de algumas ideias em que me aventurava, quando era professor dos liceus, disseram: «Ah, sim, lá nisso o Gil é uma verdadeira máquina de ideias». E eu prendi-me ao «lá nisso», que significa: «O pior é», uma vez mais, estão a ver o mecanismo?, «o pior é no resto, nisso ele safa-se!»
Dizem-me «acho que sim» e eu detecto a incerteza desta afirmação. A falta de convicção.
Dizem-me «deixa-me pensar», e eu entendo o tempo necessário para se embrulhar a verdade em palavras que me não firam de mais. E por aí fora...

Se eu fosse polícia, seria um sucesso. Daqueles capazes de apanhar os assassinos nas entrelinhas, nos «lá nisso», nos «acho que». Como o Lightman é bom a compreender expressões faciais, sou eu bom a apreender os lapsus linguae, os deslizes, as ironias, os sinais dados pelas palavras deslocadas, desajustadas, reveladoras.

O problema é que não sou polícia. E, nesse caso, torno-me simplesmente um neurótico. Um dos mais chatos, portanto.

sábado, março 12, 2011

GERAÇÃO À RASCA

Para quem não se lembrava bem, aí está a sucessão de provas em catadupa: o capitalismo é absolutamente infame.

E para quem tinha dúvidas, aí está, em catadupa, a sucessão de provas: o Partido Socialista é tudo menos um partido socialista.

sábado, março 05, 2011

AUTOCONFIANÇA HETEROCRÍTICA

Daisy, lá atrás, do seu banco, no carro, para mim, travestido de condutor:

«Eu sou realmente muito esperta. Sou sim. E sou esperta em tudo, pai, sou muito esperta em tudo. Tu também és esperto, pai, mas tu és esperto só em algumas coisas.»

PACHECO, JOSÉ E DUARTE, GIL

Sabemos muito bem a diferença entre um pseudónimo e um heterónimo.

Um pseudónimo é um nome artístico. Um nome alternativo. A mesma pessoa assina assim quando passa um cheque, e assado quando pinta um quadro. Pronto. Ponto.
Um heterónimo é outra pessoa. Não se confunde com o autor. É um autor ficcional a que o autor real passa o testemunho. É uma personagem fora da obra, que a obra implica mas a que não se refere.

«Gil Duarte» é um heterónimo porque algumas características suas não coincidem com as do senhor José Pacheco.
Em primeiro lugar, na idade. Não sinto que Gil Duarte possa ter mais do que 35 anos.
Por outro lado, se Gil Duarte tem filhos, como José Pacheco, é um pai desses filhos muito mais interessante e completo do que José Pacheco: para este, sobram as agruras, as tristezas, as frustrações, as zangas e os gritos, o desespero de se ser pai.

Gil Duarte é uma encarnação - não que JP tenha morrido, lagarto, lagarto, lagarto, mas no sentido de que em Gil se concentram [e encarnam] os «irrealizados»de José: Gil Duarte viajou certamente mais do que José Pacheco. Conhece, por exemplo, muito bem a Itália, que visita regularmente. Preserva,aliás, uma relação italiana - e, sobre isto, mais não digo.

Gil Duarte está longe da perfeição: se querem saber dos seus problemas, tentou suicidar-se duas vezes (embora haja quem diga que a primeira não passou de uma encenação, com o intuito de se tornar famoso); é um bipolar não diagnosticado e não assumido.

Há, abstraindo das incoincidências, outras coincidências, para além das referidas inicialmente, entre ele e José Pacheco? Mas sem dúvida. Ambos nasceram em Moçambique e ambos trouxeram Moçambique com eles. Para os dois, Moçambique, que é maior do que Portugal, tem cabido mal e com dificuldades no novo espaço. E, já agora, pormenor curioso: ambos são de Inhambane. (Por que não terei conseguido ficcionar o pormenor? Por que raio não poderia ser Gil Duarte da Itália?)

Profissionalmente, são mais diferentes do que se poderia imaginar. José Pacheco é um professor do ensino secundário. Gil Duarte deu aulas durante um certo período da sua vida (basta ver como muitos dos seus posts falam de «alunos»...), mas rompeu decidida e decisivamente com o ensino quando as sucessivas ministras de Sócrates iniciaram a liquidação de tudo o que respeite a «ensinar»; está, actualmente, na carreira diplomática. Como é muito jovem, não passou por postos importantes: é um cônsul menor, num país menor. Não se importa porque, mais do que tudo a que deite mão por razões de sobrevivência, Gil Duarte escreve.

José Pacheco também escreve. Mas um pouco pior do que Gil Duarte.

LIBERTAR DIONÍSIO

O que é politicamente correcto, oh minhas duas seguidoras e alguns leitores avulso, o que é politicamente correcto é dizer que se não gosta do carnaval. Que se odeia o carnaval. E as máscaras, e as brincadeiras idiotas, a indisciplina invadindo e corroendo, que nojo!

Esperando não perder, com isto, as minhas duas seguidoras e os leitores avulso, amo o carnaval. Amo a própria ideia da partida e do logro, amo a euforia e a permissividade que nos permitem recarregar baterias, amo a libertação do lado dionisíaco, amo poder mascarar-me e não ser reconhecido. E até penso que é delicioso que não dure mais do que os três míseros dias que dura - porque, se não, não se constituiria como o contraste que é: em relação às regras do dia-a-dia.

Mais do que isto tudo, considero o carnaval absolutamente essencial ao equilíbrio social. Sim: é o pontual e brevíssimo desequilíbrio indispensável ao equilíbrio da sociedade. E, para terminar: na minha perspectiva, foi o «caso carnaval» que deitou abaixo, há anos já, o governo do senhor doutor Aníbal Cavaco Silva.

quinta-feira, março 03, 2011

CRIMES DIVINOS

Cito, do relatório de um aluno:

«A nossa razão pergunta se há Deus porque precisa de imaginar um culpado de tudo o que existe».

Detenho-me naquele «culpado»; pergunto-lhe: «esta frase é para ser lida ironicamente?»
Não. Não entende sequer a pergunta. «Culpado», no seu vocabulário, significa simplesmente «causador», «o que deu origem a». Sem qualquer conotação negativa.
Que pena.