O slogan de campanha de Mário Soares: «Sempre presente nos momentos difíceis».
Minha teoria: Obrigado! Presente nos momentos difíceis, «porque» a criá-los!
sexta-feira, dezembro 23, 2005
domingo, dezembro 18, 2005
UMA PALAVRA
Todas as manhãs se levantava para levar o filho à escola.
Desciam ambos. Preparava o prato. Aquecia a água. Adicionava-lhe farinha. Mexia com um garfo, vendo a papa ganhar consistência. O menino comia depois, imitando vozes de super-heróis, enquanto o pai emborcava um breve copo de leite. Vestia-lhe, a seguir, o casacão. Carregava-lhe a mochila. Entravam no carro. Todos os dias.
A mãe ficava na cama, coitada, porque havia também uma outra criança, recém-nascida.
Todos os dias a mesma rotina. A saída. O prato, a papa, o casaco, «Estás pronto, filho? Então vamos. Não batas com a porta, para não acordares a mana e a mãe.»
Todos os dias da mesma maneira. A papa. A mochila. Não batas com a porta. O carro tentando pegar apesar do motor frio.
Mas nesse dia, por acaso, a mãe descera com eles. A menina dormia o sono dos justos. A mãe sentara-se à mesa, no seu roupão velho, grená, assistindo ao espectáculo. Não resistia, contudo. Interferia. Emendava.
- Só isso? Isso é pouca água. O menino tem dez anos. Assim fica com fome.
- Não é nada pouca água. Faço-lhe assim todos os dias.
- É pouca. Fica com fome. Deixa cá ver.
Levantou-se, arrancou o prato das mãos do homem, encheu-o com mais água, «Assim é que é», adicionou-lhe mais farinha, mexeu, entregou à criança que esperava, de colher na mão, o fim do confronto.
O menino começou a comer. «É muito, mãe. Já estou enjoado.» E ela, segura de si no seu roupão grená. «Comes, que te faz bem! Se não, ficas com fome...» «Mas ó mãe...» «Eu é que sei!»
A criança começou com vómitos
- Não puxes os vómitos, que me fazes zangar...
- Não estou a puxar, mãe.
Levantou-se, aflito. Correu para a casa de banho. Da cozinha, onde se encontravam, ouviam-no ribombar, despejar a papa, esvair-se inteiramente para a sanita.
O marido, sob a piedade e a preocupação com o seu filho, não conseguia deixar de, intimamente, mesquinhamente, gozar uma espécie de triunfo. Se não fosse tão mau que o garoto estivesse tão mal, era quase bom de mais. Pensou: Vou manter-me calado. É melhor. Se eu não disser nada a minha vitória é maior, mais espessa, mais brilhante. Que superioridade. Que dignidade. Vou somente ver se o miúdo está melhor. Não digo nada, não digo nada, não digo nada. Ela sabe que é a culpada. Ela sabe que se excedeu na papa. Eu calo-me. Silenciosamente superior. O absoluto triunfo no mais completo silêncio. Vou aguentar. Vou aguentar...
Mas era de mais. Já à porta, voltou-se para a mulher:
- Vês!?
Desciam ambos. Preparava o prato. Aquecia a água. Adicionava-lhe farinha. Mexia com um garfo, vendo a papa ganhar consistência. O menino comia depois, imitando vozes de super-heróis, enquanto o pai emborcava um breve copo de leite. Vestia-lhe, a seguir, o casacão. Carregava-lhe a mochila. Entravam no carro. Todos os dias.
A mãe ficava na cama, coitada, porque havia também uma outra criança, recém-nascida.
Todos os dias a mesma rotina. A saída. O prato, a papa, o casaco, «Estás pronto, filho? Então vamos. Não batas com a porta, para não acordares a mana e a mãe.»
Todos os dias da mesma maneira. A papa. A mochila. Não batas com a porta. O carro tentando pegar apesar do motor frio.
Mas nesse dia, por acaso, a mãe descera com eles. A menina dormia o sono dos justos. A mãe sentara-se à mesa, no seu roupão velho, grená, assistindo ao espectáculo. Não resistia, contudo. Interferia. Emendava.
- Só isso? Isso é pouca água. O menino tem dez anos. Assim fica com fome.
- Não é nada pouca água. Faço-lhe assim todos os dias.
- É pouca. Fica com fome. Deixa cá ver.
Levantou-se, arrancou o prato das mãos do homem, encheu-o com mais água, «Assim é que é», adicionou-lhe mais farinha, mexeu, entregou à criança que esperava, de colher na mão, o fim do confronto.
O menino começou a comer. «É muito, mãe. Já estou enjoado.» E ela, segura de si no seu roupão grená. «Comes, que te faz bem! Se não, ficas com fome...» «Mas ó mãe...» «Eu é que sei!»
A criança começou com vómitos
- Não puxes os vómitos, que me fazes zangar...
- Não estou a puxar, mãe.
Levantou-se, aflito. Correu para a casa de banho. Da cozinha, onde se encontravam, ouviam-no ribombar, despejar a papa, esvair-se inteiramente para a sanita.
O marido, sob a piedade e a preocupação com o seu filho, não conseguia deixar de, intimamente, mesquinhamente, gozar uma espécie de triunfo. Se não fosse tão mau que o garoto estivesse tão mal, era quase bom de mais. Pensou: Vou manter-me calado. É melhor. Se eu não disser nada a minha vitória é maior, mais espessa, mais brilhante. Que superioridade. Que dignidade. Vou somente ver se o miúdo está melhor. Não digo nada, não digo nada, não digo nada. Ela sabe que é a culpada. Ela sabe que se excedeu na papa. Eu calo-me. Silenciosamente superior. O absoluto triunfo no mais completo silêncio. Vou aguentar. Vou aguentar...
Mas era de mais. Já à porta, voltou-se para a mulher:
- Vês!?
IDEIAS DE POUCAS PALAVRAS
Muitas vezes, a perfeita sintonia não é mais do que um equívoco de que não damos conta. O amor da minha vida, o livro ou o filme que mais me tocaram, as palavras que me consolaram na hora em que delas precisava, poderão ter tido esse estatuto, não porque eram realmente o que neles vi, mas por não ter visto o que realmente eram. Tal como uma fala que me comove porque não a interpreto como irónica...
O GRANDE EQUÍVOCO
Tenho para mim a teoria de que não existe a indiscutida simpatia entre Mário Soares e o povo português, o laço fundo afectivo que, durante anos a fio, nos parecia ser uma evidência: o político que despertava o sentimento das massas, com as suas bochechas infantis, as suas gafes constantes e perdoáveis, o seu tom compreensivo e carinhoso a que ninguém resistia, remetia secretamente, na verdade, para antigos ódios e ressentimentos vários. Ex-colonos e retornados que se queixaram sempre de que este homem foi o rosto visível de uma descolonização atabalhoada, que estragou muitas vidas; ou pessoas dos mais diversos estratos, que viam em Soares o traidor, constituíam uma massa recalcada mas gigantesca. Votou-se nele - para o governo ou para a presidência, mas nunca por convicção, muito menos por amor: era o voto possível, o voto útil à esquerda, o sapo que os comunistas engoliam para evitar pior. Não sei por que se cultivou essa imagem do único político genuino, cuja autenticidade o povo sentia. Julgo que foi uma ilusão que germinou à superfície, sobre ódios de estimação, raivas surdas, fúrias tremendas, que, inesperadamente, em momentos aparentemente de festa e romaria, explodiam em dramas mínimos: agressões na Marinha Grande, ou, agora, pela mão de um maluquinho de boina. Nunca se deu grande importância a estes actos tresloucados: uma andorinha não faz a Primavera, um doido à solta não faz o manicómio, não chega para definir um sentimento geral. Ora, em certos momentos,estes maluquinhos, estes actos inconsequentes, são a ponta do icebergue. Repito: Soares nunca foi amado - pelo menos, não como ele pensava, não como o PS acreditou. E é pena, para ele, que tenha de acordar bruscamente dessa doce ilusão, aos oitenta e não sei quantos anos, por causa de uma terceira candidatura em que se não devia ter metido. Ou muito me engano...
segunda-feira, dezembro 12, 2005
IDEIAS DE POUCAS PALAVRAS (I)
Há pessoas que, mesmo quando estão de acordo, conseguem está-lo sob a forma de discórdia
IDEIAS DE POUCAS PALAVRAS (II)
Na verdade, os acordos não têm de ser expressão de compreensão mútua: já não é mau, por vezes, que sejam acertos relativamente ao modo de as pessoas mutuamente se incompreenderem
REVELAÇÃO
O menino Jesus está de novo entre nós. E já o reconheci: só pode ser o Avô Cantigas. Também já notaram como ele ressuscita em cada Natal dos Hospitais?
sexta-feira, dezembro 02, 2005
LE BLOGUE C'EST MOI
Sempre li na célebre frase de Luís XIV, «L'État c'est moi», o mais extremo exemplo de arrogância absolutista, a ilustração perfeita do poder egocêntrico ao qual tudo e todos serão sacrificados. Neste momento, de cabeça solitariamente tombada sobre o meu blogue, que ninguém comenta, que talvez ninguém leia, ou que, porventura, uma ou outra alma venha rapidamente a aflorar, numa espécie de zapping de blogues, antes de passar de imediato ao seguinte, consigo interpretar de outro modo o L'État c'est moi. Porque me reconheço - com leves diferenças - nessa ideia de coincidir, inteira, absoluta e solitariamente, com qualquer coisa. Neste caso, com o meu blogue. Não há um eco, não há uma resposta. Não há um aceno ao longe. Por esse universo infinito deslizo, montado no sótão de uma casa em S. Domingos de Rana, dentro de um planeta em vias de extinção, teclando em vão num computador, como em busca de sinais de vida inteligente - que não vêm, que não vêem, que não me lêem! Na frase de Luís XIV percebo, hoje, um grito de solidão, um desespero sem remissão. Ninguém quer ser, sozinho, o Estado. Ninguém quer ser, sozinho, um blogue inteiro. Ninguém quer ser sozinho. E dou por mim a pensar: não é possível que nada do que vou escrevendo interesse a ninguém mais senão a mim próprio, e às vezes nem mesmo a mim mesmo. E dou por mim a pensar: como pode ter acontecido esta espécie de erro genético que é, no meu caso, até um blogue, caramba!, até esse privilegiado instrumento de comunicação e comércio de ideias, que é um blogue, ter-se transformado em mais uma forma de solidão. Como se, para continuar a pensar de mim para mim, para continuar falando comigo, fizesse qualquer sentido a mediação da internet. Porra!
quinta-feira, dezembro 01, 2005
A ESCOLA É PROFUNDAMENTE DESTRUTIVA
A escola destrói. Sei do que falo: sou professor. Mais do que isso, sou pai - e o pai que sou não pode deixar de sentir um tremendo abalo interior, um desequilíbrio emocional, de cada vez que pára o automóvel à porta do gradeamento e, madrugada ainda, vê sair o seu filho para o frio, para o cinzento daquela casa, muito pequenino, muito fininho de pernas,ensonado, com o mundo já sobre as suas costas, sob a forma de uma mochila onde se acumulam dois volumes por disciplina. Recebo um beijo, acrescento, ao peso que ele carrega, umas últimas recomendações e arranco para não chorar. No espelho retrovisor vejo o vultozito tragado pelo sistema.
O meu filho estava, ainda há pouco, no infantário. Estava, ainda há pouco, na escola primária. Parece-me que saiu ontem mesmo do quarto ano. Entra agora, perdido, desintegradíssimo, num lugar imenso, em que tudo é enorme e se multiplica como num filme de ficção científica: diversos professores, meninos de vários anos, muito crescidos, de ar suspeito, com os seus skates. E estes professores que o esperam não percebem o salto que constitui saír-se do aconchego da professora única. Não percebem nada. Esperam-no, pois, cheios de si, esquecidos do que é ser-se criança, do que é evoluir, do que é verdadeiramente aprender. Do alto da sua exigência, tudo lhes parece mal: que falem nas aulas, que não tenham adquirido a motricidade fina, que escrevam com uma letra feia...! Ofendem-se. Penso, muito sinceramente, que lhes falta sensibilidade para o progresso. Que lhes custa que os alunos ali estejam para aprender, podendo sempre evoluir - não somente para serem testados. Não somente para provarem o que são já capazes de fazer.
Entendo, por outro lado, que os adolescentes normais e saudáveis são maus alunos: são poços de energia e vitalidade, desatentos e porcos, curiosos e tagarelas, prontos a rir e a distraírem-se por dá cá aquela palha. Não que todos os bons alunos sejam anormais, mas, em muitos casos, são meninos infelizes, com poucos amigos e pouca vitalidade física, que nunca dariam bons jogadores de bola.
A escola só deveria ter o direito de testar, se fosse capaz de os testar em múltiplos aspectos, tirando sempre partido de todos, reinventando-se para os melhorar naquilo em que eles podem ser melhores, em vez de os humilhar numa comparação perpétua com os outros.
Em vez disso, os professores planificam segundo objectivos. Vou fazer uma confissão: determinar objectivos é o que conheço de mais anti-pedagógico. Significa não me abrir à turma nem aos meninos, não ir ao encontro das suas capacidades, da sua imaginação, das suas carências, dos seus prazeres. Significa enfiá-los num corredor onde só conta o que eu exijo que conte, em direcção ao que eu estabeleci que deveriam saber, e testarei para ver se realmente sabem.
Estão enganados. Não ando a pregar novos métodos. Métodos «facilitistas». Não penso que que os alunos devam ser largados ao sabor da motivação. A escola deve assumir-se como um lugar de promoção de regras e de sacrifício. Os alunos devem estudar, devem ouvir. Devem registar, devem aperfeiçoar e aperfeiçoar-se: mas não pode ser um lugar do sacrifício acéfalo, que não procura tocar em cada um, que se reduza uniformemente a um saber único.
O meu filho chega a casa com imenso que estudar. Passa horas no sótão. Não tem tardes para ele. Anda fatigado e cheio de sono. Traz, na caderneta, queixas registadas pelos professores.
Como professor e como director de turma, que sou, exasperam-me os pais que se demitem e não compreendem que o problema não é, muitas vezes, do professor, mas dos meninos.
Como pai que se não demite, exasperam-me os professores que testam, testam, testam, fazem trabalhar, trabalhar, trabalhar, incapazes de fazer evoluir e de acreditar que se pode evoluir...
O meu filho vem com negativa a EVT. O professor lamenta-se de que ele não adquiriu motricidade fina: estava à espera de que a tivesse adquirido para não ter de lha treinar, de a educar?
O meu filho vem com negativa a português.
A insensibilidade, dizia a minha amiga Maria, é a burrice dos sentidos.
Nesta história, o burro não é, certamente, o meu filho.
O meu filho estava, ainda há pouco, no infantário. Estava, ainda há pouco, na escola primária. Parece-me que saiu ontem mesmo do quarto ano. Entra agora, perdido, desintegradíssimo, num lugar imenso, em que tudo é enorme e se multiplica como num filme de ficção científica: diversos professores, meninos de vários anos, muito crescidos, de ar suspeito, com os seus skates. E estes professores que o esperam não percebem o salto que constitui saír-se do aconchego da professora única. Não percebem nada. Esperam-no, pois, cheios de si, esquecidos do que é ser-se criança, do que é evoluir, do que é verdadeiramente aprender. Do alto da sua exigência, tudo lhes parece mal: que falem nas aulas, que não tenham adquirido a motricidade fina, que escrevam com uma letra feia...! Ofendem-se. Penso, muito sinceramente, que lhes falta sensibilidade para o progresso. Que lhes custa que os alunos ali estejam para aprender, podendo sempre evoluir - não somente para serem testados. Não somente para provarem o que são já capazes de fazer.
Entendo, por outro lado, que os adolescentes normais e saudáveis são maus alunos: são poços de energia e vitalidade, desatentos e porcos, curiosos e tagarelas, prontos a rir e a distraírem-se por dá cá aquela palha. Não que todos os bons alunos sejam anormais, mas, em muitos casos, são meninos infelizes, com poucos amigos e pouca vitalidade física, que nunca dariam bons jogadores de bola.
A escola só deveria ter o direito de testar, se fosse capaz de os testar em múltiplos aspectos, tirando sempre partido de todos, reinventando-se para os melhorar naquilo em que eles podem ser melhores, em vez de os humilhar numa comparação perpétua com os outros.
Em vez disso, os professores planificam segundo objectivos. Vou fazer uma confissão: determinar objectivos é o que conheço de mais anti-pedagógico. Significa não me abrir à turma nem aos meninos, não ir ao encontro das suas capacidades, da sua imaginação, das suas carências, dos seus prazeres. Significa enfiá-los num corredor onde só conta o que eu exijo que conte, em direcção ao que eu estabeleci que deveriam saber, e testarei para ver se realmente sabem.
Estão enganados. Não ando a pregar novos métodos. Métodos «facilitistas». Não penso que que os alunos devam ser largados ao sabor da motivação. A escola deve assumir-se como um lugar de promoção de regras e de sacrifício. Os alunos devem estudar, devem ouvir. Devem registar, devem aperfeiçoar e aperfeiçoar-se: mas não pode ser um lugar do sacrifício acéfalo, que não procura tocar em cada um, que se reduza uniformemente a um saber único.
O meu filho chega a casa com imenso que estudar. Passa horas no sótão. Não tem tardes para ele. Anda fatigado e cheio de sono. Traz, na caderneta, queixas registadas pelos professores.
Como professor e como director de turma, que sou, exasperam-me os pais que se demitem e não compreendem que o problema não é, muitas vezes, do professor, mas dos meninos.
Como pai que se não demite, exasperam-me os professores que testam, testam, testam, fazem trabalhar, trabalhar, trabalhar, incapazes de fazer evoluir e de acreditar que se pode evoluir...
O meu filho vem com negativa a EVT. O professor lamenta-se de que ele não adquiriu motricidade fina: estava à espera de que a tivesse adquirido para não ter de lha treinar, de a educar?
O meu filho vem com negativa a português.
A insensibilidade, dizia a minha amiga Maria, é a burrice dos sentidos.
Nesta história, o burro não é, certamente, o meu filho.
Subscrever:
Mensagens (Atom)