quinta-feira, dezembro 01, 2005

A ESCOLA É PROFUNDAMENTE DESTRUTIVA

A escola destrói. Sei do que falo: sou professor. Mais do que isso, sou pai - e o pai que sou não pode deixar de sentir um tremendo abalo interior, um desequilíbrio emocional, de cada vez que pára o automóvel à porta do gradeamento e, madrugada ainda, vê sair o seu filho para o frio, para o cinzento daquela casa, muito pequenino, muito fininho de pernas,ensonado, com o mundo já sobre as suas costas, sob a forma de uma mochila onde se acumulam dois volumes por disciplina. Recebo um beijo, acrescento, ao peso que ele carrega, umas últimas recomendações e arranco para não chorar. No espelho retrovisor vejo o vultozito tragado pelo sistema.
O meu filho estava, ainda há pouco, no infantário. Estava, ainda há pouco, na escola primária. Parece-me que saiu ontem mesmo do quarto ano. Entra agora, perdido, desintegradíssimo, num lugar imenso, em que tudo é enorme e se multiplica como num filme de ficção científica: diversos professores, meninos de vários anos, muito crescidos, de ar suspeito, com os seus skates. E estes professores que o esperam não percebem o salto que constitui saír-se do aconchego da professora única. Não percebem nada. Esperam-no, pois, cheios de si, esquecidos do que é ser-se criança, do que é evoluir, do que é verdadeiramente aprender. Do alto da sua exigência, tudo lhes parece mal: que falem nas aulas, que não tenham adquirido a motricidade fina, que escrevam com uma letra feia...! Ofendem-se. Penso, muito sinceramente, que lhes falta sensibilidade para o progresso. Que lhes custa que os alunos ali estejam para aprender, podendo sempre evoluir - não somente para serem testados. Não somente para provarem o que são já capazes de fazer.
Entendo, por outro lado, que os adolescentes normais e saudáveis são maus alunos: são poços de energia e vitalidade, desatentos e porcos, curiosos e tagarelas, prontos a rir e a distraírem-se por dá cá aquela palha. Não que todos os bons alunos sejam anormais, mas, em muitos casos, são meninos infelizes, com poucos amigos e pouca vitalidade física, que nunca dariam bons jogadores de bola.
A escola só deveria ter o direito de testar, se fosse capaz de os testar em múltiplos aspectos, tirando sempre partido de todos, reinventando-se para os melhorar naquilo em que eles podem ser melhores, em vez de os humilhar numa comparação perpétua com os outros.
Em vez disso, os professores planificam segundo objectivos. Vou fazer uma confissão: determinar objectivos é o que conheço de mais anti-pedagógico. Significa não me abrir à turma nem aos meninos, não ir ao encontro das suas capacidades, da sua imaginação, das suas carências, dos seus prazeres. Significa enfiá-los num corredor onde só conta o que eu exijo que conte, em direcção ao que eu estabeleci que deveriam saber, e testarei para ver se realmente sabem.
Estão enganados. Não ando a pregar novos métodos. Métodos «facilitistas». Não penso que que os alunos devam ser largados ao sabor da motivação. A escola deve assumir-se como um lugar de promoção de regras e de sacrifício. Os alunos devem estudar, devem ouvir. Devem registar, devem aperfeiçoar e aperfeiçoar-se: mas não pode ser um lugar do sacrifício acéfalo, que não procura tocar em cada um, que se reduza uniformemente a um saber único.
O meu filho chega a casa com imenso que estudar. Passa horas no sótão. Não tem tardes para ele. Anda fatigado e cheio de sono. Traz, na caderneta, queixas registadas pelos professores.
Como professor e como director de turma, que sou, exasperam-me os pais que se demitem e não compreendem que o problema não é, muitas vezes, do professor, mas dos meninos.
Como pai que se não demite, exasperam-me os professores que testam, testam, testam, fazem trabalhar, trabalhar, trabalhar, incapazes de fazer evoluir e de acreditar que se pode evoluir...
O meu filho vem com negativa a EVT. O professor lamenta-se de que ele não adquiriu motricidade fina: estava à espera de que a tivesse adquirido para não ter de lha treinar, de a educar?
O meu filho vem com negativa a português.
A insensibilidade, dizia a minha amiga Maria, é a burrice dos sentidos.
Nesta história, o burro não é, certamente, o meu filho.

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