domingo, dezembro 18, 2005

O GRANDE EQUÍVOCO

Tenho para mim a teoria de que não existe a indiscutida simpatia entre Mário Soares e o povo português, o laço fundo afectivo que, durante anos a fio, nos parecia ser uma evidência: o político que despertava o sentimento das massas, com as suas bochechas infantis, as suas gafes constantes e perdoáveis, o seu tom compreensivo e carinhoso a que ninguém resistia, remetia secretamente, na verdade, para antigos ódios e ressentimentos vários. Ex-colonos e retornados que se queixaram sempre de que este homem foi o rosto visível de uma descolonização atabalhoada, que estragou muitas vidas; ou pessoas dos mais diversos estratos, que viam em Soares o traidor, constituíam uma massa recalcada mas gigantesca. Votou-se nele - para o governo ou para a presidência, mas nunca por convicção, muito menos por amor: era o voto possível, o voto útil à esquerda, o sapo que os comunistas engoliam para evitar pior. Não sei por que se cultivou essa imagem do único político genuino, cuja autenticidade o povo sentia. Julgo que foi uma ilusão que germinou à superfície, sobre ódios de estimação, raivas surdas, fúrias tremendas, que, inesperadamente, em momentos aparentemente de festa e romaria, explodiam em dramas mínimos: agressões na Marinha Grande, ou, agora, pela mão de um maluquinho de boina. Nunca se deu grande importância a estes actos tresloucados: uma andorinha não faz a Primavera, um doido à solta não faz o manicómio, não chega para definir um sentimento geral. Ora, em certos momentos,estes maluquinhos, estes actos inconsequentes, são a ponta do icebergue. Repito: Soares nunca foi amado - pelo menos, não como ele pensava, não como o PS acreditou. E é pena, para ele, que tenha de acordar bruscamente dessa doce ilusão, aos oitenta e não sei quantos anos, por causa de uma terceira candidatura em que se não devia ter metido. Ou muito me engano...

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