domingo, dezembro 18, 2005

UMA PALAVRA

Todas as manhãs se levantava para levar o filho à escola.
Desciam ambos. Preparava o prato. Aquecia a água. Adicionava-lhe farinha. Mexia com um garfo, vendo a papa ganhar consistência. O menino comia depois, imitando vozes de super-heróis, enquanto o pai emborcava um breve copo de leite. Vestia-lhe, a seguir, o casacão. Carregava-lhe a mochila. Entravam no carro. Todos os dias.

A mãe ficava na cama, coitada, porque havia também uma outra criança, recém-nascida.
Todos os dias a mesma rotina. A saída. O prato, a papa, o casaco, «Estás pronto, filho? Então vamos. Não batas com a porta, para não acordares a mana e a mãe.»
Todos os dias da mesma maneira. A papa. A mochila. Não batas com a porta. O carro tentando pegar apesar do motor frio.

Mas nesse dia, por acaso, a mãe descera com eles. A menina dormia o sono dos justos. A mãe sentara-se à mesa, no seu roupão velho, grená, assistindo ao espectáculo. Não resistia, contudo. Interferia. Emendava.
- Só isso? Isso é pouca água. O menino tem dez anos. Assim fica com fome.
- Não é nada pouca água. Faço-lhe assim todos os dias.
- É pouca. Fica com fome. Deixa cá ver.
Levantou-se, arrancou o prato das mãos do homem, encheu-o com mais água, «Assim é que é», adicionou-lhe mais farinha, mexeu, entregou à criança que esperava, de colher na mão, o fim do confronto.
O menino começou a comer. «É muito, mãe. Já estou enjoado.» E ela, segura de si no seu roupão grená. «Comes, que te faz bem! Se não, ficas com fome...» «Mas ó mãe...» «Eu é que sei!»
A criança começou com vómitos
- Não puxes os vómitos, que me fazes zangar...
- Não estou a puxar, mãe.
Levantou-se, aflito. Correu para a casa de banho. Da cozinha, onde se encontravam, ouviam-no ribombar, despejar a papa, esvair-se inteiramente para a sanita.
O marido, sob a piedade e a preocupação com o seu filho, não conseguia deixar de, intimamente, mesquinhamente, gozar uma espécie de triunfo. Se não fosse tão mau que o garoto estivesse tão mal, era quase bom de mais. Pensou: Vou manter-me calado. É melhor. Se eu não disser nada a minha vitória é maior, mais espessa, mais brilhante. Que superioridade. Que dignidade. Vou somente ver se o miúdo está melhor. Não digo nada, não digo nada, não digo nada. Ela sabe que é a culpada. Ela sabe que se excedeu na papa. Eu calo-me. Silenciosamente superior. O absoluto triunfo no mais completo silêncio. Vou aguentar. Vou aguentar...
Mas era de mais. Já à porta, voltou-se para a mulher:
- Vês!?

Sem comentários: