Nós, que nos ufanamos de ser do género «observador», gente perspicaz a quem nada falha, meticulosos sugadoiros do mundo em todos os seus aspectos, temos um pouco a noção (ou a mania) de que nunca somos observados: estamos do outro lado, como se fossemos de cristal; a nossa condição de pessoas que tudo vêem torna-nos, de certo modo, invisíveis.
Gosto de observar. Como aspirante a romancista (eterno e eternamente impublicado aspirante a romancista) tomo nota mental dos gestos e dos actos dos outros, sento-me numa mesa de café, meio encoberto por um jornal, oiço as conversas que me não dizem respeito, atento nas discussões, imagino histórias com que visto as pessoas que me passam ao lado, tornando-as personagens de futuros romances.
Observo, no comboio, os meninos prepotentes que fazem o que querem dos avós impotentes e indefesos: «Quero ir à janela! Com a janela aberta!», «Não, Quinzinho, não, não, é muito perigoso, olha lá, e se passa um comboio em sentido contrário...?», «Mas eu quero, eu quero, eu quero!!!», «Pronto, vá lá, só um bocadinho...»
Sei histórias dos carteiros, da porteira, da mulher-a-dias, do senhor que vende jornais no quiosque, dos vizinhos, dos bombeiros. De tentativas de suicídio ou de murros imprevistos, de cenas de ciúme e ódio; assisti por um triz à zanga da Elsa Raposo, à sua saída da casa do ex-namorado, cheia de malas, provocando um ajuntamento.
Tenho, na minha varanda, um posto privilegiado. Ao mínimo ruído de altercação, à noite, ao mínimo sinal de briga entre bêbedos, ao travar de uma ambulância que vem buscar alguém ao prédio da frente, assomo logo ao meu posto, seguro da minha invisibilidade, a coberto da escuridão.
Uma destas noites, precisamente, assomei atraído pelos gritos de uma velha prostituta que batia desapiedadamente num velho; partiu-lhe os óculos, partia-o todo, aos gritos de «Posso ser puta, mas pelo menos não sou tua mãe, que era pior!»
Na manhã seguinte, quando, por acaso, me cruzei com a mulher - eu a entrar para um café de onde ela saía -, rosnou-me, com uma agressividade que nunca lhe vira.
E já ela ia a dobrar a esquina, ainda lhe ouvi, obviamente para mim:
«E tu vais espreitar a tua prima lá da tua varanda, ó cabrão!»
Nunca me tinha falado antes. Fala-me, agora, sempre: e sempre com os mesmos modos desabridos, de quem me odeia, de quem me não perdoa o que eu vi nessa noite. Ela é que não perdoa o que eu vi, percebem? Porque ela sabe que a vi. Ela viu que eu vira tudo...
Foi, também, o fim de um mito: o do homem de cristal - o do observador invisível.
terça-feira, agosto 22, 2006
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