segunda-feira, agosto 07, 2006

FALAS DE AZUL

Devo ter induzido pessoas em erro com um velho «post» em que elogiava o hip-hop que se fazia em Portugal: pus uns quantos leitores (não muitos, mas isso porque não tenho muitos leitores) a pensar que eu seria um grande apreciador do género. Na verdade, não sou: tenho o hip-hop por uma música preguiçosa, mais cantada do que falada, e falada, ainda por cima, sempre quase da mesma forma (embora não com o mesmo conteúdo), com tiques e vícios de estilo por todo o lado. No entanto, surpreendiam-me algumas letras - algumas das tais «falas». Pelo arrojo, pelo português seguro que as sustentava, por uma capacidade admirável de tornar poético um quotidiano suburbano, pela, pasmem!, criatividade!

Mesmo em grupos desconhecidos parecia-me detectar essa estranha criatividade, esse inesperado domínio das palavras, essa expressiva familiaridade com o surrealismo.

Havia, por exemplo, nos «Morangos com Açúcar», uma música cujo nome desconheço, cantada ou falada por um desses grupos, que me obrigava a deter-me diante destas palavras:

«Falas de azul/ Esquece azul... etc, etc.»

Era bonito. Não sabíamos bem o que significava, nem o meu filho nem eu, mas gostávamos da estranha magia daquele «azul», e procurávamos interpretá-lo. Para o meu filho, tratava-se de alguém que «falava (vestida) de azul»: «Falas de azul». E, acrescentava ele, «alguém» que esquecia (o quê, que esquecia ela? - qualquer coisa), mas esquecia-se ainda e sempre vestida de azul: «Esqueces (de) azul»... (Admito que esta segunda parte me parece menos plausível, sobretudo porque eu não ouvia «esqueces» mas «esquece», no imperativo. Mas paciência: o meu filho tem onze anos).

Para mim, era antes com a metáfora que havia que se jogar. Alguém falava acerca de azul, porventura de um ideal, ou de amor, ou de um mundo perfeito, ou seja, de tudo aquilo a que aspiramos e que podemos representar sob essa cor que evoca o céu, o mar....! E, ironicamente, o cantor respondia-lhe, «Esquece azul», como quem diz, deixa-te disso, não vale a pena, não te incomodes, eu já não acredito nos teus sonhos nem nas tuas palavras...
As discussões que esta letra desencadeou, o que ela exigiu do nosso poder de argumentação, do nosso espírito, a dialéctica hermenêutica a que nos obrigou.

Tornámos a ouvir a música, numa destas noites, no rádio do carro; ouvimo-la com uma esforçadíssima atenção. Pois bem: não há ali azul nenhum. Nenhum. O que se diz é simplesmente «Falas disso» (soando como: «Falas dissú!»), «Esquece isso!» («Esquece issú!»).

O meu filho e eu rimo-nos do nosso equívoco. Mas pouco. Era um riso levemente amargo.

Ora bolas!

1 comentário:

Better Planet disse...

Boa noite!

Desculpe invadir mas é que estou para aqui a rir sozinha!Só porque induzi ao mesmo erro com o senhor, pois estava a procurar a letra desta música e só me vinha o azul, e encontrei o seu blogue, e só no fim de ler o seu blog todo é que vi como afinal é a letra da música.!Portanto não foi o único!:D

Adeus.

Sofia Martins