O Sargento Sintra - parente afastado da cançonetista Mónica Sintra, que aliás o não conhecia e nunca dele sequer ouvira falar, embora o Sargento tivesse, pelo contrário, um enorme orgulho nessa vaga ligação de sangue - não tinha nem profissão, nem aspecto de homem romântico. Quanto à profissão, era polícia: um digno agente da PSP; quanto ao aspecto, digamos que tinha cerca de dois entroncados metros de altura, nariz partido, cicatrizes no queixo - porque se lhe tornava difícil fazer a barba sem se ferir -, sobrancelhas hirsutas. E todavia, na alma deste homem de rosto e corpo poderosos, quase brutais, ressoavam fios e roldanas de uma delicadeza e de uma sensibilidade insuspeitadas; por tudo lhe vinham lágrimas aos olhos; a sua emoção era forte, constante, prestes a disparar ao menor pretexto...
Estava nesse dia sozinho na esquadra da Rua Alexandre Herculano, regando os seus gerânios, quando o jovem entrou por ali adentro.
O jovem vinha aflito. O Sargento Sintra teve de pousar o regadorzinho, contornar a secretária para se sentar e poder dar-lhe atenção.
- Boa noite. O que deseja?
- Eles bateram-me. Eu quero apresentar queixa!
- Calma, calma, calma! Vamos lá ver. «Eles». «Eles», quem? Hein? Quem são «eles»?
Entretanto, lá fora, principiava a ouvir-se um tumulto. Uma vozearia insistente. Gritos desrespeitosos. Talvez mesmo obscenidades.
- Pelo amor de Deus - gritava o jovem -, chame os seus companheiros. Reúna as forças da esquadra. Acho que vêm aí todos!
- Quais forças, homem? As forças da esquadra somos eu e as minhas flores. Não está cá mais ninguém!
- Mais ninguém?
- Mas o que é que aconteceu, afinal?
- Mais ninguém?
- Calma. Diga-me lá, então...
- Mais ninguém?!
«Mais ninguém», na verdade, foi a última coisa que o jovem pôde pronunciar. Porque uma vintena ou até uma trintena de rapazes, de uma agressividade a rebentar pelas costuras, com uma inacreditável desfaçatez, entrava pela esquadra, aos berros, batendo com os tacões, esmurrando paredes. Eram feios e porcos.
- Anda cá, maricão!
- Vens a fugir para a mamã?
- Mostra-te!
Eles não disseram algumas das palavras por que aqui optei, disseram outras que prefiro não escrever. Por exemplo: «maricão»! É evidente que não chamavam «maricão». Usaram outras expressões de que resguardo o meu textinho.
O polícia poeta não queria crer. Ali. Ali dentro. No santuário da Autoridade! Tentou fazer frente. Não podia. Nem os seus dois metros lhe serviram. Viu, meio oculto, o grupo segurar violentamente no jovem, bater-lhe, espremê-lo, desdentá-lo. Viu-os saindo, a arrastar a pobre criatura pelos pés.
- Não há direito! - exclamou, com lágrimas nos olhos, com lágrimas na voz. - Não respeitam nada. - E, por fim, olhando com uma piedade que lhe chegava do mais profundo do seu: - os meus gerânios!!!
quarta-feira, maio 14, 2008
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