quarta-feira, maio 28, 2008

O MISTÉRIO DA PRENDA COM PRENDA OCULTA [III]

Em que gastara eu cinquenta mil euros?! Mal sei: a maioria do dinheiro, suponho, foi-se quando tomei a imponderada decisão de encher o depósito com gasolina. O certo é que, pouco depois de umas comprinhas, estava com o sobrescrito vazio.

O baixote prendeu-me o cotovelo e conduziu-me à zona de cafés. «Temos de ter uma conversa muito séria!», rosnou-me ele. «Há coisas que não estás a compreender...» - ia mudando o tratamento, de um «você» que mantinha uma distância atemorizadora, para o «tu» que me reduzia, por antecipação, à insignificância a que me reduziriam, fisicamente, talvez dali a um momento...

Sentámo-nos.
Perguntou-me, com uma delicadeza fria, o que queria tomar. Pedi uma imperial. (Não devia, talvez, por causa do meu problema com a bebida!)

Na mesa ao lado, o cara-de-porquinho seguia-me atentamente, procurava-me, agora, com o mesmo olhar que tanto me escapara antes.
O baixote voltou, com duas imperiais.

Senti o meu nariz, demasiado grande para ficar fora do copo, mergulhar na cerveja fria. (Não sei se já tinha explicado que é nisso que consiste o meu problema com a bebida...)


CONTINUA

sexta-feira, maio 23, 2008

O MISTÉRIO DA PRENDA COM PRENDA OCULTA [II]

Muito nervoso, amedrontado mesmo, com a imaginação excitada, a mente a trabalhar num velocíssimo desfiar de hipóteses, a verdade é que no dia marcado, à hora exacta, lá estava eu no local que as coordenadas me indicavam.

Sentei-me no banco metálico, que era desconfortável, sem costas - e contra o qual, alguns segundos antes da minha chegada, um senhor idoso (e, possivelmente, com péssima visão) esbarrara, provocando um ruído horroroso, o qual me sobressaltara como o estampido de uma arma.
Agora, mais calmo mas, infelizmente, não muito mais calmo, ouvindo a mulher que ralhava ao senhor idoso, «És sempre o mesmo, cum camandro! Mas não viste o banco ó quê?! Precisas dum cão de guarda ó quê?», deixei-me estar sentado, de pernas juntas, joelhos unidos, como se estivesse de saia, e com o livro pousado no regaço.

Ainda nem um minuto passara, quando reparei em um rapaz que se me sentara ao lado. Cabelo armado num edifício de gel, nariz arrebitado, ar de porquinho. Não se tratava propriamente do género «facínora» que eu esperava e que a minha imaginação compusera. Num certo sentido, não sei dizer se me senti aliviado, se frustrado...
Tentei chamar-lhe discretamente a atenção.
Tamborilei insistentemente com um dedo sobre o livro. Depois, com os cinco dedos, um por um, de uma forma enervante: trrrlic, trrrlic. Sacudia a perna, num movimento nervoso. Sorri-lhe. Pisquei-lhe o olho, como num tique. Vi-o olhar-me fixamente. Mas sentia-o embaraçado, incomodado. A desviar os olhos. Quanto mais eu lhe procurava o olhar, mais o dele me fugia. E, finalmente, para minha estupefacção, o porquinho levantou-se e foi-se embora. Já só se avistava a poupa de gel lá na linha do horizonte, prestes a desaparecer...

Que fazer? Devia segui-lo? Começara até a desconfiar de que não se tratava da pessoa que eu tinha de encontrar, mas que ocorrera um terrível equívoco.

Nesse momento, a voz gutural soou-me nas costas.
- Traz o livro?
Voltei-me. Era um homem baixo, completamente calvo, de óculos extremamente graduados. A uma primeira impressão, não atemorizava. Mas a uma impressão mais detida, algo nele se tornava rapidamente aterrorizador: era um daqueles indivíduos exageradamente baixos que, por via de um preconceito politicamente incorrecto, imaginamos capazes de tudo, das piores violências, dos crimes mais hediondos.
Entreguei-lhe o livro, com as mãos a tremer.
Passou rapidamente as páginas, sem encontrar nada entre elas.
- Está a brincar? Quer brincar, é?
Eu sabia que ele queria o dinheiro - que diacho me passara pela cabeça quando o começara a gastar e, em poucas horas, percebera que já não tinha nada, rigorosamente, literalmente - nada..?!

(CONTINUA)

sábado, maio 17, 2008

O MISTÉRIO DA PRENDA COM PRENDA OCULTA [I]

Numa altura da minha vida em que o dinheiro escasseava (o que é vago: isto poderia, portanto, ter-se passado em qualquer ponto da minha vida...), uma tia de bom coração ofereceu-me certa prenda. Já vão ver que há aqui um mistério: interpretei-o do seguinte modo - como ela julgasse que eu nunca aceitaria uma oferta em «dinheiro» propriamente dito (ah, como as pessoas me conhecem mal), presenteava-me com um livro. Mas, eis o mistério, dentro do livro, discretamente, encontrava-se um pacote contendo... leiam com calma... cinquenta mil Euros.

Que raio teria passado pela cabeça à senhora minha tia? Que, quando eu viesse a descobrir, pensaria que era dinheiro meu, que não me lembrava de ter guardado ali?! Ou que me ocorreria que ela se esquecera ali das notas, e que acabasse ficando com elas para mim, em vez de as devolver...?! (Deus do céu! Como mesmo as pessoas que me conhecem mal em alguns aspectos me conhecem tão bem noutros...)

Seja como for, estas ou outras possíveis interpretações para o estranho facto só me surgiram muito mais tarde. Eu não dera logo pelo misterioso pacote! A verdade é que o livro nunca me interessou. Não o abri, sequer. Deixei-o em cima de uma estante, sujeito ao paciente trabalho do pó, da traça e das aranhas!

Bem via que a minha tia, visitando-me, me perguntava, de vez em quando, se eu gostara do livro. E em que parte ia. Ora eu mentia-lhe com quantos dentes possuo. Que era muito interessante, sim, e já estava quase no fim... falava-lhe de personagens recambolescas, de aventuras bizarras, na esperança de que a minha própria tia nunca tivesse lido o romance em causa.

Há precisamente uma semana, o livro abriu-se. Não o abri; abriu-se. Por acaso, por acidente. Na verdade, caiu ao chão, revelando-me pela primeira vez o sobrescrito e, no interior deste, os cinquenta mil Euros!

Fiquei interdito. Não compreendia. Peguei nas notas, contei-as, recontei-as.
Nesse momento, ou por coincidência ou porque me vigiavam, recebi um telefonema.
E uma voz gutural, que não era, certamente, a da minha tia, disse-me com rispidez:
- Trata de ir entregar o livro no Oeiras Parque. Ponto de encontro: a cadeirinha metálica em frente da perfumaria. Ao lado da Bulhosa. Domingo, às quinze. Não faltes!

(CONTINUA)

quinta-feira, maio 15, 2008

DESABAFO PESSIMISTA... OU ENTÃO, ENTENDAM-NO LÁ COMO QUISEREM!

ACERCA DAQUELA ESPÉCIE DE DISTRACÇÃO EM FACE DO QUE É PERFEITO

A perfeição não é tão difícil de se alcançar como isso: basta vigiar os pormenores e exigir que todos se ajustem numa exactidão relojoeira.

O problema da perfeição não é, pois, o da dificuldade no seu cumprimento: e sim o de que, uma vez feitas as coisas perfeitas, ninguém as note. Parecem tão certas, tão «como deviam ser», que nada nelas é notável.

Acreditem em mim: as pessoas só se dignam reparar nas coisas, quando lhes descobrem defeitos - e, então, acordam da sua distracção habitual, propõem-se emendar, dão conselhos e sugestões. Ah! Se fossem elas...!!!

Essa é uma das três razões pelas quais prefiro apostar na imperfeição.

As outras duas? Vou silenciá-las. Também não ando a tentar escrever um texto perfeito...

quarta-feira, maio 14, 2008

ASSALTO À ESQUADRA

O Sargento Sintra - parente afastado da cançonetista Mónica Sintra, que aliás o não conhecia e nunca dele sequer ouvira falar, embora o Sargento tivesse, pelo contrário, um enorme orgulho nessa vaga ligação de sangue - não tinha nem profissão, nem aspecto de homem romântico. Quanto à profissão, era polícia: um digno agente da PSP; quanto ao aspecto, digamos que tinha cerca de dois entroncados metros de altura, nariz partido, cicatrizes no queixo - porque se lhe tornava difícil fazer a barba sem se ferir -, sobrancelhas hirsutas. E todavia, na alma deste homem de rosto e corpo poderosos, quase brutais, ressoavam fios e roldanas de uma delicadeza e de uma sensibilidade insuspeitadas; por tudo lhe vinham lágrimas aos olhos; a sua emoção era forte, constante, prestes a disparar ao menor pretexto...

Estava nesse dia sozinho na esquadra da Rua Alexandre Herculano, regando os seus gerânios, quando o jovem entrou por ali adentro.
O jovem vinha aflito. O Sargento Sintra teve de pousar o regadorzinho, contornar a secretária para se sentar e poder dar-lhe atenção.
- Boa noite. O que deseja?
- Eles bateram-me. Eu quero apresentar queixa!
- Calma, calma, calma! Vamos lá ver. «Eles». «Eles», quem? Hein? Quem são «eles»?

Entretanto, lá fora, principiava a ouvir-se um tumulto. Uma vozearia insistente. Gritos desrespeitosos. Talvez mesmo obscenidades.
- Pelo amor de Deus - gritava o jovem -, chame os seus companheiros. Reúna as forças da esquadra. Acho que vêm aí todos!
- Quais forças, homem? As forças da esquadra somos eu e as minhas flores. Não está cá mais ninguém!
- Mais ninguém?
- Mas o que é que aconteceu, afinal?
- Mais ninguém?
- Calma. Diga-me lá, então...
- Mais ninguém?!
«Mais ninguém», na verdade, foi a última coisa que o jovem pôde pronunciar. Porque uma vintena ou até uma trintena de rapazes, de uma agressividade a rebentar pelas costuras, com uma inacreditável desfaçatez, entrava pela esquadra, aos berros, batendo com os tacões, esmurrando paredes. Eram feios e porcos.
- Anda cá, maricão!
- Vens a fugir para a mamã?
- Mostra-te!
Eles não disseram algumas das palavras por que aqui optei, disseram outras que prefiro não escrever. Por exemplo: «maricão»! É evidente que não chamavam «maricão». Usaram outras expressões de que resguardo o meu textinho.
O polícia poeta não queria crer. Ali. Ali dentro. No santuário da Autoridade! Tentou fazer frente. Não podia. Nem os seus dois metros lhe serviram. Viu, meio oculto, o grupo segurar violentamente no jovem, bater-lhe, espremê-lo, desdentá-lo. Viu-os saindo, a arrastar a pobre criatura pelos pés.
- Não há direito! - exclamou, com lágrimas nos olhos, com lágrimas na voz. - Não respeitam nada. - E, por fim, olhando com uma piedade que lhe chegava do mais profundo do seu: - os meus gerânios!!!

terça-feira, maio 06, 2008

E TALVEZ ESTA MENSAGEM QUE EU DESCOBRI EXPLIQUE ALGUMA COISA...!

Aqui onde vivo, em S. Domingos de Rana, Huhuhuhuh, vou-me dedicando a alguma magia cinzenta. Definição: magia que não chega a ser negra, não provoca grandes danos nem males tremendos, é simplesmente embirrenta.
Volto-a sobretudo contra benfiquistas que passam pela rotunda a uma certa hora matinal.
Eu não devia. Os benfiquistas, coitados, já andam com demasiadas tristezas na vida, não precisavam disto. Mas que querem? É irresistível.
A rotunda está enguiçada. Soube que há quem entre em contacto com o Além. Com o Arthur C. Clark inclusivamente.
Deixá-los.
Tenho aqui um «matchbox» pequenino, com um bonequinho lá dentro: o boneco tem asas e umas botas novas. Quando chega a hora aprazada, zás! Prendo a direcção e os pneus.
E divirto-me assim.

Professor Karamba