terça-feira, setembro 14, 2010

FUNERAL LONGÍNQUO

A ideia foi do Jorge, e este expô-la assim que saíram da agência funerária. Mas o problema é que Jorge sempre fora um cínico e, portanto, como é evidente, não o levaram a sério.
A sua mulher deve tê-lo admoestado, com um «Jorge!», entre dentes, que significava: «Querido, há mesmo coisas com que não se brinca!»
Alípio, por acaso, riu. Podia, às vezes, não apreciar o humor negro e corrosivo do seu irmão, mas, naquele momento, aceitou a piada como uma forma de, palavras suas, «desdramatizar a situação».

Porém, a ideia de Jorge não era brincadeira alguma. Na agência funerária haviam-lhes exigido centenas de euros para conduzir o corpo frio de dona Hermengarda até ao cemitério de Pedrão Velho do Sul, aonde a senhora queria ser enterrada, como sempre dissera, ao lado do defunto.

Centenas de euros, para lá de seiscentos, isso não podia ser. Não que dona Hermengarda não merecesse: mas, em vida, coitadita, viajara muito. Chegara a ir à Terra Santa, numa daquelas peregrinações, meio doidas, do Padre Dinis; fora de avião à Polónia, para observar a Virgem de Cszwicz, que chorava lágrimas autênticas; estivera muitas vezes em Paris («Para ver as igrejas», como repetia, ecoando, tardiamente, o Raposão de Eça de Queirós), de forma que, ao morrer, morria limpinha, como nascera. Não deixava um vintém. Os rapazes, por outro lado, não tinham dinheiro que se não esgotasse todo na família e na casa. (Alípio, aliás, estava desempregado). Seiscentos e tantos euros? Tirados de onde? Como?!

A estranha ideia de Jorge - enrolarem a senhora numa carpete e levá-la, na capota do automóvel - era uma solução que sempre permitia colocá-la no cemitério de Pedrão Velho do Sul. (Lá muito para o Norte!). A alternativa seria enterrá-la nos Prazeres. Coitada.

E, portanto, quando, não se sabe como nem porquê, a ideia começou a ser tratada a sério, Jorge dispôs-se de imediato a dirigir a operação.

E em certa manhã de Dezembro, já muito fria, arrancaram, muito cedo, num Fiat Panda, com uma respeitável e fúnebre carpete fixada ao alto.

Comeram chouriço no carro, durante a viagem. E água, beberam muita água. Só pararam às seis horas da tarde para fazer chichi e tomar café, numa estação de serviço. Choraram de saudades, comeram empadas, muito boas, aliás, a esposa de Jorge bebeu uma meia de leite e, refeitos e satisfeitos, prepararam-se para tornar ao automóvel.

O automóvel lá estava. A carpete, bonita, vistosa, não. Haviam-na levado. Escória. Se querem saber já o fim da história, devo dizer-vos que nunca, nunca, nunca mais voltaram a encontrar a carpete - ou o corpo!

Em si mesma, claro, está história é trágica.
Não impede que Alípio - e mesmo Rosa - tivessem soltado algumas gargalhadas, não muitas, mas uma ou duas, quando Jorge comentou, à laia de consolo:
«Eu só gostava de ver a cara dos larápios, quando desenrolaram a carpete e deram com o corpo da mãe!»

1 comentário:

miriam disse...

Como sempre é um prazer ler o que escreve!Talhado para a escrita. Cumprimentos. Elvira mãe