sábado, novembro 19, 2005

LUGARES-COMUNS DE ELITE

Para além dos lugares-comuns muito comuns, grosseiramente comuns, aqueles em que mergulha a nossa fala como se fosse o ar que respira (a expressão que vim de escrever, aliás, é um bom exemplo), há um outro tipo de lugar-comum, mais reservado, ou seja, menos comum - sem deixar de ser lugar-comum: trata-se, por exemplo, de uma certa expressão, ou de um tipo de frase, ou de uma ideia, circunscritos a uma esfera sofisticada de pessoas. É, portanto, um lugar-comum mais plástico, mais subtil; vem-nos às vezes sob a forma de um paradoxo, ou de uma pequena insensatez irónica, que nos soam inteligentíssimos, fulgurantemente incomuns, razão pela qual nem sempre nos apercebemos de um travozinho a «déjà-entendu». Eis um brevíssimo léxico:

À cabeça da lista, justamente, adequar-se-ia a seguinte ideia: «Por alguma razão os lugares-comuns são lugares-comuns», como se fizesse sentido atentarmos mais cuidadosamente no que há de, «afinal», interessante em qualquer lugar-comum... (Pacheco Pereira, por exemplo: «É uma banalidade. Mas as grandes banalidades contêm grandes verdades»; cito de memória)
Em segundo lugar, colocaria a expressão «politicamente correcto»: na acepção em que os cultos gostam de a usar, tem uma conotação crítica. O «politicamente correcto» é o pensamento virtuosamente básico contra o qual é bom ser-se «politicamente incorrecto». Ou seja, ser-se um «provocador». Aqui está já a terceira entrada deste léxico: «Isto é, no fundo, uma provocação», sublinha, todo satisfeito consigo, o «provocador» himself, como se dar-se a conhecer como tal não fosse, precisamente, um gesto apaziguador, que reintroduz a provocação no domínio do aceitável: Não te zangues, pá, isto é só a brincar...
Tão português! Mas eis que, assim, apresentamos outro lugar-comum fino e filosófico. O de observar as incongruências do falar ou do comportamento lusos. Podemos ser tão observadores nesse capítulo, e tão engraçados!: já repararam, por exemplo, que os portugueses usam a absurda expressão «tem de ser» para responderem a quase tudo? «Então, por aqui?» «Tem de ser...»; «Vai passear?» «Tem de ser...» Ora o lugar-comum sofisticado consiste em sublinhar inteligentemente o absurdo desta e de outras respostas típicas. (José Gil escreveu, como se sabe, «todo» um livro sobre Portugal, que é, fundamentalmente, isso mesmo).
A última pérola - mas esta soa inteligentíssima: já a ouvi à Maria do Céu Guerra, ao Gonçalo M. Tavares, enfim, a alguns dos nossos melhores intelectuais - é, com ténues variações, o seguinte pensamento: tal como há escritores - ou actores, ou o que seja - de talento, também se pode falar (mas talvez mais raramente) de leitores - ou públicos, ou que seja - talentosos.
Apetece dizer: Enfim, é a vida!

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