domingo, outubro 21, 2007

A LOJA DE BRINQUEDOS

Rolindo passara pela loja uma vez em que ia, cheio de pressa, levantar um bolo encomendado a uma pastelaria. Não tivera tempo para se deter nela, na dita loja, mas ficava-lhe na memória para uma visita, com o filho, em breve: ali estava, pois, uma curiosa alternativa aos «Toys "R" Us», às «Brincolândias», às casas brilhantes e chamativas dos centros comerciais, com luzes, lantejoulas e preços incomportáveis.
No fim-de-semana seguinte, pôs o Filipito - que fizera há poucos dias dois anos -, na cadeirinha do seu automóvel, «atado à vida», como lembravam anúncios mal conseguidos, por uma complicadíssima e demoradíssima teia de cintos de segurança, e rumou para a loja.

Era uma loja de brinquedos chamada, num arrojo de imaginação, «Loja de Brinquedos»: pequenina, último exemplar de comércio tradicional, sem luzes nem cores, muito degradada, tristonha, decadente. Poderia ser, se excluíssemos o pormenor do nome, em letras bem visíveis, uma agência funerária.
Filipito recusava-se a entrar. Chorava, agarrou-se às pernas de Rolindo, fazendo-o tropeçar várias vezes, irritando-o. «Anda, Fipo, vais ver que lá dentro é giro!»

Não era. O interior estava mergulhado numa penumbra inaceitável quando, lá fora, havia um sol tão amigo do mundo.

Aproximou-se deles uma figura sinistra, de óculos muito espessos nuns aros de massa, encavalitados sobre um nariz que tinha algo de assustador, não tanto pelas dimensões mas pela própria forma.
Arrastava-se lentamente, com algo de animal pré-histórico, com uma batida regular do sapato disforme sobre o soalho.
Quando viu Filipito, todavia, um sorriso metamorfoseou-lhe o rosto anguloso. Esticou em direcção à cabeça da criança um dedo comprido, torto, com marcas de nicotina.
«Olá-á-á!»
Filipito recomeçou a chorar, pedindo colo ao pai.

Mas como se a entrada de uma criança numa loja para crianças devolvesse um sentido esquecido àquele espaço tétrico, o vendedor abriu duas janelas rangentes, deixando, finalmente, que a luz iluminasse uma série de brinquedos antigos mas em bom estado, soldadinhos, carros, bonecos, ursos, tambores - nada de Action-men, nem mini-computadores, nem personagens de ficção científica auto-falantes.
A criança piscou os olhos. Como se acordasse. Ou como se a casa principiasse a acordar para ela.

Contudo, para o pai, o súbito entusiasmo do homem não deixava de ser alarmante: havia algo de louco, de profundamente nervoso no modo como ele exibia guindastes, como se infantilizava perante os brinquedos, agarrando, neurótico, num tambor ou numa corneta, abandonando-os imediatamente para se interessar por outras coisas, empurrando, aqui, febril, dando corda, ali, tremente, fazendo girar, sempre com inúmeros ruídos...

Filipito, porém, esse deixava-se ir. Saíra do colo do pai, seguia, completamente encantado, como um rato ao som de uma flauta mágica, o rasto dos carrinhos, sentava-se no chão, de pernas cruzadas, punha-se de pé, saltitava.

O homem não descansava. Ergueu então o menino, prendendo-o sob os braços. Colocou-o no interior de um estranho veículo muito vermelho, muito desprotegido, sem cintos que o atassem à vida, com rodas de plástico. Empurrou. Com uma velocidade cada vez maior, desmentindo as suas dificuldades físicas, a sua perna manca, como se quisesse ultrapassar a barreira do som. Filipito não estava menormente assustado. Ria.
O veículo embalou. O homem deixou-o ir. Zzzzzzzzzzzzzzzzzz, vertiginosamente.
O pai não teve tempo de gritar.

O carro embateu estrondosamente numa mesa.
Dando um corpo frágil e um grito aterrorizado ao movimento de inércia, Filipito continuou a sua viagem pelo ar, saindo por uma daquelas janelas que a sinistra figura abrira pouco tempo antes.

Rolindo saiu, correndo, chamando. O filho não lhe respondia. Não ouvira baque, não se ouvira nada senão o grito, cada vez mais longínquo, até se perder.

Até hoje.

Nunca mais soube do seu filho. Ainda hoje o procura, nas imediações da loja. Que, entretanto, fechou.

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