Dois erros haviam ocupado, por inteiro, a vida de Hermengarda.
Um, era o seu nome. Não é possível fugir-se a um nome de que se não gosta. Está em todo o lado, suavizado pelas vozes dos que amamos (e não imaginam o mal que nos fazem) ou atirado contra os nossos ouvidos pelas vozes dos outros, ou nas cartas, nos documentos oficiais, nos cheques que assinamos. Mesmo dormindo, mesmo nos sonhos, uma Hermengarda não deixa de ser uma Hermengarda.
O outro, era a sua sogra. Dona Luizita não era idosa - não teria mais do que sessenta e poucos anos -, mas comportava-se como tal, sempre muito queixosa, muito rodeada de medicamentos, muito sem fazer coisa alguma e, sobretudo, muito esperando, e exigindo, que Hermengarda lhe fizesse tudo. Viviam juntos, como um país com excesso de população, sua sogra, seu marido, seu horroroso nome e ela.
Hermengarda tinha um amante. Ou, melhor, «uma» amante. Mas não nos precipitemos. A sua amante era a solidão. E era uma amante, aliás, com quem pouco se cruzava. Em casa, sobretudo, a solidão não era visita frequente, porque Dona Luizita nunca dali despegava, enchendo-se de cafés.
«Isso não lhe faz mal, Dona Luizita?», perguntava-lhe.
Para o que existiam duas respostas possíveis. De resto, contrárias, mas ambas típicas da senhora, ora uma,ora outra, consoante a sua disposição:
a) «Faz. Mas é o meu único consolo, filha. É o prazer que tenho nesta vida...»
b) «Não faz, faz agora! Este café feito em casa não é como as bicas lá fora. Isto não tem nada, é uma água preta...»
Mas um dia, por um bizarro acaso do destino que é a fantasia destravada do autor desta história, calhou a Hermengarda, passando pelo estúdio onde vivera o seu irmão até emigrar, havia cerca de um mês, perceber que esse estúdio, um mero T-zero num bairro-dormitório, ainda não fora ocupado pelo senhor pintor que o comprara. Não teve dúvidas: a desocupação notava-se do exterior; tudo nas janelas, na varanda, cheirava a desabitação; mas chegou a perguntar: «Já mora alguém no 1-L, e tal» e, no cafezito da Dona Tina, entre galões e uma torrada, soube tudo, que o senhor Alfredo começara a transportar as suas telas, os seus pincéis, as tintas, a tralha, mas só dali a um mês faria a mudança definitiva. Pois já captaram, não captaram? Hermengarda trazia, no seu porta-chaves, a chave do apartamentozito, que, na altura em que o seu irmão lá morava, ela mesma se encarregava de limpar uma, duas vezes por semana. De modo que não levou mais do que um instante a tomar conta da sua mente, a mais absurda, perversa, tremenda, imoral das ideias...
(CONTINUA)
quinta-feira, novembro 01, 2007
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1 comentário:
oooooohhhh!!!
Não nos faças esperar muito, por favor;)
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